Opinião e Análise

Ana Beatriz Presgrave

Há tempos que estava para escrever sobre esse tema, mas acabava deixando para depois. Instada pelo texto de um colega da ABPC<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> sobre a preclusão consumativa<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, constatei que não poderia mais postergar este texto.
A preclusão tem uma função importantíssima no processo, pois assegura que o seu curso regular e devido, sem abusos, retrocesso e com respeito à segurança e previsibilidade<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. É elemento fundamental para o proceder dos atos processuais.
Nesse sentido, afirma Didier Jr. que “não há dúvida de que a preclusão é instrumento para evitar abusos e retrocessos e prestigiar a entrega de prestação jurisdicional de boa qualidade. A preclusão atua em prol do processo, da própria prestação jurisdicional, não havendo qualquer motivo para que o juiz não sofra seus efeitos, pelo menos na maioria das situações.”
Praticamente todos os manuais de direito processual, ao abordarem o tema “preclusão”, apontam três tipos: preclusão temporal, preclusão lógica e a preclusão consumativa<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Vou me ater a esta última, que é o objeto deste texto: a preclusão consumativa. Definida como a perda do direito de praticar um determinado ato por já tê-lo praticado, ainda que o prazo regulamentar para a prática do ato não tenha se escoado totalmente<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, a doutrina costuma utilizar a previsão contida no art. 200 do CPC para fundamentar a sua aplicabilidade em nosso sistema jurídico<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, que assim dispõe:
Art. 200. Os atos das partes consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais.
Parágrafo único. A desistência da ação só produzirá efeitos após homologação judicial.
Assim, nos termos defendidos pela doutrina absolutamente majoritária, numa ação de indenização, por exemplo, em que se pleiteia condenação por danos morais e materiais, proferida sentença condenando a parte no pagamento de danos morais e danos materiais, se a parte sucumbente interpõe recurso de apelação no sexto dia (o prazo para a interposição do recurso de apelação é de 15 dias), deixando, por descuido de recorrer com relação à condenação por danos morais, restaria preclusa a possibilidade de recorrer com relação a esta condenação.
Em outras palavras, a parte não poderia “corrigir” o recurso, mesmo que o prazo para a prática do ato ainda não tenha transcorrido completamente, por força da ocorrência da preclusão consumativa. Essa é a explicação que se ouve na quase totalidade das vezes.
Ocorre que os dispositivos legais não podem ser lidos isoladamente, como se fossem suficientes para a total compreensão das situações que tratam. E isso vale também para o art. 200 do CPC.
O fato de que os atos praticados pelas partes produzirem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais não implica dizer que esses mesmos atos não podem ser corrigidos a tempo e modo. Fosse assim, não caberia falar em correção de erro material em decisões judiciais, tampouco em emenda da petição inicial.
Note-se que com relação à emenda da petição inicial<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, o CPC prevê duas hipóteses, cada qual considerando um momento processual diverso: a emenda à inicial antes da citação – independente da anuência da parte contrária - e a emenda à inicial até o saneamento – dependente da anuência do réu.
Com relação à possibilidade de emenda aos atos em geral, também há previsão expressa no CPC, em seu art. 223, que assegura às partes a possibilidade de praticar ou emendar o ato processual enquanto não decorrido o prazo, assim:
Art. 223. Decorrido o prazo, extingue-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de declaração judicial, ficando assegurado, porém, à parte provar que não o realizou por justa causa.
<ul>
<li>1º Considera-se justa causa o evento alheio à vontade da parte e que a impediu de praticar o ato por si ou por mandatário.</li>
<li>2º Verificada a justa causa, o juiz permitirá à parte a prática do ato no prazo que lhe assinar.</li>
</ul>
O dispositivo trata de duas situações distintas: atos tempestivos, que podem ser praticados ou emendados dentro do prazo; e atos intempestivos, para os quais a parte deverá demonstrar a justa causa (definida no §1º) para que lhe seja assinalado novo prazo pelo juízo para a prática do ato (art. 223, caput, parte final e §2º).
Ou seja, para a emenda da petição inicial há uma regra específica, que estabelece como limites a ocorrência de outros atos processuais (citação e saneamento, bem como a necessidade de anuência do réu nessa última hipótese). Para os demais atos processuais, o limite é o prazo estabelecido para a prática daquele ato.
Alguns atos processuais, entretanto, são praticados com o objetivo de colocar fim ao processo, de modo que a prática de tais atos, por constituírem atos de disposição e não possuírem propriamente um prazo, não se adequam à hipótese legal que permite a emenda. Em outras palavras, pode-se afirmar que a possibilidade de produção imediata de efeitos é própria da prática de qualquer ato processual. Há atos, entretanto, que são compatíveis com a sua alteração dentro do prazo atribuído para a sua prática e atos que são com ela incompatíveis.
A desistência de um recurso ou da própria ação, por exemplo, ou a renúncia à prática de determinado ato processual, são atos incompatíveis com a regra que permite a sua emenda, pois não há um prazo próprio para a prática de tais atos, tampouco possuem eles conteúdo passível de correção (salvo, evidentemente, se decorrentes de algum vício do consentimento). Atos como a renúncia e a desistência fazem nascer automaticamente um direito subjetivo à parte contrária.
Outros atos praticados pelas partes, de outro lado, possuem conteúdo amplo, prazo definido em lei ou pelo juízo para sua prática e têm o escopo de promover o diálogo necessário ao devido processo legal (atos como a manifestação das partes no processo, a contestação, a petição de recurso, a petição de informação das provas que pretendem produzir dentre outros). Esses atos são totalmente compatíveis com a previsão legal que permite que a parte promova a emenda do ato já praticado, desde que dentro do prazo assegurado para a sua prática.
A prática efetiva desses atos não faz nascer para a outra parte, automaticamente, um direito subjetivo. Tais atos são manifestações de uma parte que têm por escopo o prosseguimento regular do processo, com o prosseguimento da prática de atos pelos demais sujeitos da relação jurídica processual.
Também corrobora essa conclusão os princípios gerais do processo, reconhecidos pelo CPC nos primeiros artigos do código, dentre os quais destacamos a boa-fé dos participantes do processo (art. 5º<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>) e a primazia do julgamento de mérito de forma rápida e justa (art. 6º<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>).
Destaco, por último, o quanto previsto no art. 8º<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>, que determina ao juízo o atendimento aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
Os prazos processuais são um direito das partes, que têm assegurado pelo art. 223 o direito de praticar e de emendar atos processuais antes que transcorram em sua totalidade. Existe, sim, previsão expressa na lei que permite a emenda de atos processuais dentro do prazo.
E o art. 223 vai além, permite a prática ou emenda de ato processual fora do prazo quando houver razão, fundamento suficiente para o não cumprimento do prazo legal. Mas esse ponto desborda o objeto desse texto, que se limita à possibilidade de prática ou emenda de ato processual dentro do prazo, ou seja, tempestivamente (dentro do prazo previsto pela lei ou pelo juízo para a prática do ato).
Por força dessas razões, e compreendendo que não há qualquer ofensa à regra da preclusão e ao respeito à segurança jurídica e estabilidade das relações processuais com a possibilidade de emenda tempestiva de ato processual que não encerre, por si só, um direito subjetivo à parte contrária (como a renúncia ou desistência), conforme acima colocado, entendo que não há, no Brasil, um fundamento legal suficiente para se afirmar que o nosso sistema efetivamente adota a “preclusão consumativa”.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Associação Brasiliense de Processo Civil.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Texto disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2024-abr-01/processo-civil-preclusao-consumativa-resp-2-075-284-sp-e-recado-aos-advogados/">https://www.conjur.com.br/2024-abr-01/processo-civil-preclusao-consumativa-resp-2-075-284-sp-e-recado-aos-advogados/</a> - consultado em 02/04/2024.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> No mesmo sentido: “A preclusão constitui a perda, extinção ou consumação de uma posição jurídica processual em face do decurso do tempo (preclusão temporal), da adoção de comportamento contraditório (preclusão lógica) e do efetivo exercício da posição processual (preclusão consumativa). Dirige-se às partes e ao juiz. A preclusão é elemento ordenador que assegura o caráter evolutivo e dinâmico do processo. Ao pautar o procedimento, serve conjuntamente com ele como verdadeira espinha dorsal do formalismo processual. A preclusão fundamenta-se na segurança jurídica. E isso por uma razão muito simples - ao precluir a prática de determinado ato ou ao encerrar o debate a respeito de determinada questão, torna-se certa e estável dentro do processo a situação jurídica consolidada, outorgando expectativa legítima às partes no não retrocesso do procedimento e direito à observância do resultado da preclusão. Processo seguro, portanto, é processo em que as regras de preclusão são devidamente dimensionadas pelo legislador infraconstitucional e observadas pelo juiz na condução do processo.” (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: teoria do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 1 v.)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> V.g. Tradicionalmente, a preclusão é classificada em três espécies: a consumativa, a lógica e a temporal. A preclusão consumativa se verifica sempre que realizado o ato processual. Dessa forma, somente haverá oportunidade para realização do ato uma vez no processo e, sendo esse consumado, não poderá o interessado realizá-lo novamente e tampouco complementá-lo ou emendá-lo. Essa espécie de preclusão não se preocupa com a qualidade do ato processual, limitando-se a impedir a prática de ato já praticado, ainda que de forma incompleta ou viciada.  Diz-se preclusão temporal, quando um ato não puder ser praticado em virtude de ter decorrido o prazo previsto para sua prática sem a manifestação da parte. Ao deixar a parte interessada de realizar o ato dentro do prazo previsto, ele não mais poderá ser realizado, já que extemporâneo.” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. p. 853)
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Neste sentido: “A preclusão consumativa consiste na perda de faculdade/poder processual, em razão de essa faculdade ou esse poder já ter sido exercido, pouco importa se bem ou mal. Já se praticou o ato processual pretendido, não sendo possível corrigi-lo, melhorá-lo ou repeti-lo. A consumação do exercício do poder o extingue. Perde-se o poder pelo exercício dele. Essa preclusão decorre da ideia de que não se deve repetir ato processual já praticado, encontrando fundamento normativo, para as partes, no art. 200 do CPC, que se refere à produção de efeitos imediatos com a prática atos processuais pela parte, exaurindo-se o exercício do respectivo poder. É o que ocorre, por exemplo, quando a parte oferece sua contestação ou interpõe seu recurso de apelação no quinto dia do prazo (que é de quinze dias), mas esquece de deduzir um argumento importante; como já exerceu e consumou seu direito de recorrer, não pode, nos dez dias restantes do prazo, corrigir, melhorar ou repetir a contestação/recurso. É o que se dá, ainda, quando a decisão judicial é publicada. Exaure-se o ofício jurisdicional, não podendo o magistrado emendar, incrementar ou refazer a decisão, salvo nos casos excepcionais previstos em lei (art. 494, CPC).”  (DIDIER JUNIOR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil: introdução ao direito processual civil. 17. ed. Salvador: Jus Podivm, 2015).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “Os atos das partes produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais (art. 200). Essa é a regra da eficácia imediata dos atos processuais das partes, cujos corolários são: I) a desnecessidade de qualquer ato judicial ulterior para outorgar-lhe eficácia e lI) a adoção da regra da preclusão consumativa (uma vez praticado o ato, consome-se a possibilidade de fazê-Io outra vez). Apenas excepcionalmente se exige para eficácia da desistência da ação a homologação do ato por sentença (art. 200, parágrafo único). A desistência do recurso, porém, independe de homologação (art. 998). (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: tutela dos direitos mediante procedimento comum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. 2 v).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Art. 329. O autor poderá: I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu; II - até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar. Parágrafo único. Aplica-se o disposto neste artigo à reconvenção e à respectiva causa de pedir.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Art. 6º Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

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JOTA

Questionando a aplicabilidade e a possibilidade de emenda da preclusão consumativa dentro do prazo processual

Preclusão consumativa: verdade ou mito?

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