Opinião e Análise

Marco Aurélio Peixoto

Rodrigo Becker

Prezados leitores do JOTA, na coluna desta semana, tomaremos por base recente acórdão do plenário do STF[1], em que se reafirmou o entendimento de que o relator pode negar seguimento, monocraticamente, ao recurso extraordinário, por ausência de repercussão geral, mas com eficácia limitada ao caso concreto.
No processo analisado, cuidou-se de agravo interno contra decisão que havia negado seguimento ao recurso extraordinário com agravo, baseada no art. 326, §1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, o qual autoriza o relator a negar repercussão geral com eficácia apenas para o caso concreto. A parte recorrente houve por se insurgir contra a decisão, sustentando que teria notoriamente demonstrado que o tema possuía relevância para além dos limites subjetivos da ação.
O acórdão do agravo concluiu, à unanimidade, em julgamento realizado no Pleno daquela Corte, que o relator do recurso extraordinário havia adotado a sistemática adequada – também chamada de circuito processual[2] –, ao compreender pela ausência de repercussão geral, negando-se seguimento ao recurso, por se cuidar de tema específico, de efeito restrito e aplicação limitada ao caso concreto. Mais ainda, fundamentou seu voto no fato de que não foram apresentados elementos concretos e objetivos que revelassem a transcendência do tema recursal, razão pela qual se manifestou pela negativa de provimento ao agravo interno.
Essa sistemática, que permite ao relator negar seguimento ao Recurso Extraordinário, por ausência de repercussão geral, com eficácia limitada ao caso concreto, está contida no Regimento Interno do <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a> desde 2020, mas ainda é conhecida por poucos, causando espécie em advogados não tão acostumados à militância junto às Cortes Superiores. Em outras palavras e de forma resumida, o regimento interno do STF permite hoje tanto a análise de repercussão geral da tese debatida no caso, com eficácia de precedente para outros casos semelhantes, quanto a repercussão geral apenas do caso concreto. 
Como se sabe, a Emenda Constitucional 45/2004 incluiu o § 3º ao art. 102 da CF/88, para prever que, no recurso extraordinário, o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de 2/3 de seus membros.
O tema é disciplinado pelo art. 1.035 do CPC e pelo Regimento Interno do STF. Segundo bem ressalta Osmar Mendes Paixão Côrtes, por mais que tenha tentado o legislador (e no mesmo sentido é o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal), é difícil objetivamente se definir repercussão geral[3]. O que há é a necessidade de se ultrapassar os interesses subjetivos da causa e a possibilidade de se ver reconhecida a repercussão pelo fato de a decisão recorrida contrariar súmula ou jurisprudência dominante do STF, ou se a decisão tiver reconhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal.
Conforme ressalta Marco Antonio Rodrigues, o recurso extraordinário é submetido a duplo juízo de admissibilidade, por força do art. 1.030 do CPC, sendo o primeiro realizado pela presidência do tribunal em que interposto o recurso e o segundo no próprio STF, se admitido no primeiro juízo.[4] No entanto, esse requisito específico da repercussão geral não pode ser objeto de análise pelo tribunal local. Não compete, pois, ao presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido deliberar sobre a presença ou a ausência da repercussão geral, visto que a Constituição é clara ao estabelecer que tal exame somente poderá se dar no STF, que pode recusá-la com o voto de 2/3 dos membros. 
E é assim, com base nessa eficácia acima mencionada que, de acordo com os arts. 1.030, I, “a” e 1.035, §8º do CPC, uma vez negada a repercussão geral, por voto de 2/3 dos ministros do STF, o presidente ou vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos extraordinários que versarem sobre matéria idêntica. De acordo com Vinicius Lemos, a decisão do STF, sobre a inexistência da repercussão geral, é irrecorrível, sendo incabível a interposição de qualquer recurso, sobretudo agravo interno[5]. Tal irrecorribilidade decorre do ato judicante ser do pleno do STF, ainda que virtual, sendo inócua uma manifestação de todo o colegiado sobre uma decisão do próprio colegiado.
O que poucos sabem, como acima já nos referimos, é que o ministro relator, no STF, pode negar seguimento monocraticamente a recurso extraordinário, por ausência de repercussão geral. A Emenda Regimental n. 54, de 01/07/2020, introduziu o §1º ao art. 326 do Regimento Interno daquela corte, estabelecendo que poderá o relator negar repercussão geral, mas com eficácia apenas para o caso concreto.
Dessa forma, quando o relator recebe o recurso, se entender que a matéria não transcende à esfera meramente subjetiva, pode negar seguimento por ausência de repercussão geral, cabendo agravo interno ao pleno da corte. Ao julgar o recurso, faz-se necessário que 2/3 dos ministros confirmem a decisão do relator, para que de fato seja recusada a repercussão geral. Não se atingindo os 2/3, vão os autos ao relator, para que proceda ao juízo de admissibilidade recursal. Nessa última hipótese, o recurso extraordinário será julgado, contudo, sem qualquer eficácia transcendente ao próprio caso concreto. É o que Paulo Mendes denomina de “procedimento comum”, pelo qual tramita a larga maioria dos recursos extraordinários e que se difere do “procedimento especial”, denominado de “regime de repercussão geral”.[6]
Importa reforçar que a decisão, nestes casos de “procedimento comum” ou de “repercussão geral no caso concreto”, não gera efeitos vinculantes, restringindo-se ao processo em julgamento. Dessa forma, se negada monocraticamente a repercussão geral, e essa decisão não for impugnada pela parte, ou se mantida a negativa por 2/3 no julgamento de recurso, não se forma entendimento vinculativo para as situações idênticas, não sendo possível ao presidente ou vice-presidente dos tribunais de segundo grau passar a rejeitar novos recursos extraordinário que lhe cheguem sobre o tema, com base naquele julgamento.
De outra sorte, se no julgamento do agravo interno não for obtida a votação de 2/3 dos membros do STF para afastamento da repercussão geral, tampouco se pode falar em reconhecimento automático da repercussão geral para outros casos. Nessa situação, de acordo com o STF, o recurso prossegue para julgamento, como anteriormente ocorria, sendo analisados os demais requisitos de admissibilidade e julgado, se for o caso, o seu mérito, sem qualquer efeito vinculante. 
Naquele mesmo ano de 2020, quando alterado o Regimento Interno do STF, dita Corte julgou recurso, o qual foi apontado como precedente-base para o disciplinamento da sistemática introduzida pela Emenda Regimental n. 54/2020 (julgamento monocrático da ausência de repercussão geral).[7]
No julgado, compreendeu-se a sistemática como constitucional, já que não se criou um novo requisito recursal, porquanto se conferiu a possibilidade de a parte recorrente levar a matéria à consideração do plenário, oportunidade na qual se pode ratificar a necessidade de atingimento do quórum de 2/3 dos membros, para confirmação da decisão monocrática do relator.
Assentou-se ainda o entendimento de que, já que não se criou um novo fator de admissibilidade, mas apenas delineada uma nova técnica de julgamento, não haveria qualquer obstáculo à aplicação imediata das novas disposições regimentais, inclusive para recursos pendentes. Parece-nos equivocada a decisão do STF, tomada em setembro de 2020, e ora reafirmada no julgado a que se referiu de agosto de 2022. De fato, a novel sistemática veio propiciar uma evolução na atuação de nossa Corte Suprema, a fim de que possa se dedicar verdadeiramente a dar a última palavra em questões que sejam de impacto constitucional relevante à sociedade brasileira.
Todavia, e isso é importante que se diga, é uma construção procedimental que não encontra abrigo na Constituição Federal. O § 3º do inciso III do art. 102 estabelece que, no recurso extraordinário, a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, deve ser demonstrada pelo recorrente, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, “somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”. 
Não há autorização para que a repercussão geral seja afastada monocraticamente por um ministro relator, ainda que possa ser submetida ao crivo do pleno, com a interposição de um agravo interno. E se o agravo não for interposto? A última palavra será de um ministro, individualmente, contrariamente ao que estabelece a Constituição.
Isto porque, da forma que se estabeleceu, o exame de admissibilidade do recurso extraordinário pelo plenário, para conformação do quórum constitucional, somente haverá de se dar quando do julgamento do recurso contra a decisão monocrática.  A valer esse entendimento, poderia se estabelecer a hipótese de um ministro individualmente declarar a inconstitucionalidade de uma norma no mérito (sem precedente sobre a matéria), e depois, se houvesse recurso, estaria conformada a determinação constitucional de julgamento de controle de constitucionalidade pelo plenário da corte (art. 97 da CF/88).
O primeiro passo do relator é, portanto, a análise da presença ou não da repercussão geral, sem analisar as inúmeras questões processuais que representam barreiras à admissão do recurso excepcional e que, por conseguinte, gerariam outros recursos, que estatisticamente são rejeitados colegiadamente em sua grande maioria. Rejeitada a repercussão geral pelo relator, a eficácia estará limitada ao caso concreto, e o recurso tem o seguimento negado. Para ter prosseguimento, e passar – aí sim – ao juízo de admissibilidade naquela instância superior, o recorrente necessitará agravar da decisão monocrática e torcer para que não seja a decisão confirmada por 2/3 do plenário do STF.
Repete-se: este é o problema. O circuito processual escolhido pelo regimento interno do STF, para as hipóteses de repercussão geral do caso concreto, não foi idealizado pela Constituição, que fez a escolha de apenas afastar a repercussão geral por 2/3 dos membros da corte. Não alcançado esse quórum, o caso tem repercussão geral. E aí entra um segundo problema. É que essa análise individual pelo relator é autorizada apenas para o caso concreto, diferentemente da análise pelo plenário, que leva a uma eficácia geral da decisão, conforme determina, nessa hipótese, o § 8º do art. 1035 do CPC/15.  
Veja-se que nem a Constituição, nem a lei regulamentadora (Lei 11.418/2006), tampouco o CPC de 2015, autorizaram essa dicotomia entre repercussão geral de caso concreto e de tese, com efeitos distintos. Desde que implementada pela EC/45, e regulamentada pelo CPC de 1973, o objetivo da repercussão geral sempre foi levar a uma eficácia plena e geral para os outros recursos com a mesma tese analisada.
A mudança para um regime híbrido de repercussão geral ocorreu tão somente com o regimento interno em 2020, em desconformidade, a nosso ver, com a regra constitucional, que autoriza unicamente o afastamento dessa repercussão por 2/3 dos membros da corte, e em oposição à regra estabelecida pelo CPC/15  de que, tal afastamento reflete nos demais casos com a mesma tese.
Outra foi, a nosso ver, a escolha constitucional para o regime da relevância do recurso especial. Ao estabelecer as hipóteses de presunção absoluta, no art. 105, § 3º, a CF regulamentou hipóteses de relevância para o caso concreto, como ações penais e aquelas cujo valor ultrapasse 500 salários-mínimos. Assim, pode-se afirmar, que houve uma escolha constitucional para separar relevância de caso concreto de relevância de tese.
No ponto, pela teoria dos poderes implícitos[8], se a Constituição outorgou poderes para o STJ reconhecer relevância para alguns casos concretos, nada impede que outros casos possam ter a relevância reconhecida. Mas isso não confere ao STJ, assim como não foi conferido ao STF, poder para afastar a relevância – ou a repercussão geral – por decisão monocrática. Destarte, seja porque não há autorização constitucional para o afastamento de repercussão geral por decisão monocrática, seja porque o texto da Constituição não estabelece regra de repercussão geral para o caso concreto, entendemos que a previsão regimental do STF que autoriza essas duas situações não deveria subsistir. 
Todavia, e reconhecemos a importância do debate, é certo que a carga de trabalho e o número de recursos extraordinários que aportam ao Supremo Tribunal Federal praticamente inviabilizam a análise de repercussão geral em todos os recursos pelo plenário, ainda que no modo virtual. Dessa forma, a solução encontrada pelo STF é importante nesse aspecto, muito embora entendamos que deveria ter sido feita mediante alteração do texto constitucional.
Por fim, tomando por base a norma regimental posta e considerando que o STF a entende constitucional (do que discordamos), parece-nos, ao menos, adequada a previsão de eficácia limitada da decisão de repercussão geral no caso concreto. A Constituição, por si só, não estabeleceu a eficácia genérica para os processos que tratem da mesma temática cuja repercussão geral foi negada. Foi o CPC de 2015 que assim previu, a fim de gerar impactos em demandas repetitivas. Como bem ressalta Carlos Alberto Carmona, se a decisão de ausência de repercussão geral se refere a discussões que não ultrapassam os interesses subjetivos do processo, a decisão negativa de repercussão geral deve ter os seus efeitos limitados ao caso dos autos em que proferida.[9]
A questão é polêmica e envolve um debate constitucional mais profundo, que escapa ao espaço desta coluna. Tentamos aqui apenas lançar algumas luzes sobre a questão, sabendo que, dificilmente, na prática, esse tema será revisitado pelo Supremo Tribunal Federal.
<hr />
[1] Ag. Reg. No Recurso Extraordinário com Agravo 1.385.423/RJ, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, julgado em dia 22 de agosto de 2022.
[2] Paulo Mendes chama de circuitos processuais as distintas rotas procedimentais que podem ser adotadas no trâmite do recurso extraordinário. Sobre o tema, vale conferir: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/recurso-extraordinario-e-seus-circuitos-processuais-15102022
[3] CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Recursos para os tribunais superiores: recurso extraordinário, recurso especial, embargos de divergência e agravos. 5. Ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2021, pp. 123/124.
[4] RODRIGUES, Marco Antonio. Manual dos Recursos, Ação Rescisória e Reclamação. 1. Ed. São Paulo: Atlas, 2017, p. 267.
[5] LEMOS, Vinicius Silva. Recursos e Processos nos Tribunais. 4. Ed. Salvador: Jus Podivm, 2020, p. 686.
[6] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/recurso-extraordinario-e-seus-circuitos-processuais-15102022
[7] Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo 1.273.640/DF, julgado por maioria em Sessão Virtual finalizada em 08/09/2020, sob a relatoria do Ministro Alexandre de Moraes.
[8] A doutrina dos poderes implícitos foi construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos no célebre caso McCulloch v. Maryland (1819) – enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral 
realização dos fins que lhe foram atribuídos. Essa mesma doutrina já foi reconhecida pelo STF, em diversos casos, como na ADC 12 e no MS 24510.
[9] CARMONA, Carlos Alberto. Repercussão Geral – uma releitura do direito vigente. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2019, p. 221.

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JOTA

STF reafirmou tese de que ministro relator tem poder, mas eficácia se restringe ao caso concreto; isso é constitucional?

O relator pode reconhecer individualmente a ausência de repercussão geral?

Não há autorização para que a repercussão geral seja afastada por um ministro relator, ainda que submetida ao crivo do pleno.