Opinião e Análise

Rodrigo Becker

Marco Aurélio Peixoto

Prezados leitores do JOTA,
Um dos princípios que regem a teoria geral dos recursos é o da fungibilidade recursal, segundo o qual um recurso equivocadamente interposto pode ser admitido como correto, atendendo ao pressuposto da adequação (admissibilidade) recursal.
Apesar da inexistência de previsão legal expressa acerca desse princípio no CPC/15 e no CPC/73, o CPC/39 dispunha do tema em seu art. 810, tratando-o de forma taxativa, ao estabelecer que “salvo a hipótese de má-fé ou erro grosseiro, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro, devendo os autos ser enviados à Câmara, ou turma, a que competir o julgamento”.
Desde então, para que tal princípio seja admitido, faz-se necessária a conjugação de alguns fatores, que podem ser entendidos como requisitos próprios de sua admissão: inexistência de erro grosseiro e interposição do recurso equivocado dentro do prazo do recurso devido.
Wambier e Talamini tratam do tema de forma didática, afirmando que se trata da possibilidade de um recurso poder ser admitido no lugar de outro, quando houver dúvida objetiva a respeito de qual o instrumento adequado para a hipótese<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>.
Cuida-se, nesse ponto, do requisito da inexistência de erro grosseiro, que pode ser qualificado como subjetivo, na medida em que depende de uma avaliação individual do Juiz, baseada em critérios por ele desenvolvidos no caso concreto.
Quanto à dúvida, que configura (ou não) erro grosseiro, precisas são as palavras de Wambier e Talamini:
Deve haver um cenário de incerteza quanto ao recurso adequado, que seja objetivamente demonstrável por divergências no plano doutrinário e (ou) jurisprudencial. A dúvida deve ser objetiva no sentido de não derivar da mera insegurança ou despreparo pessoal do recorrente. Deve pôr-se igualmente para toda a comunidade jurídica.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>
Em relação ao requisito do prazo, trata-se de espécie objetiva, porquanto basta uma verificação simples de compatibilidade do termo do recurso equivocado ao do recurso devido. Nessa linha, para o STJ, o prazo do recurso próprio (aquele que a lei considera como correto) deve ser seguido na interposição do recurso erroneamente protocolado<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>.
Por outro lado, há quem defenda ser desnecessário tal requisito, pois “se existe dúvida objetiva sobre a interposição dos recursos, o prazo não pode ser um limitador à aplicação da fungibilidade recursal”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>.
Acertadamente, ainda, o Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC), em seu Enunciado nº 104, dispôs que “o princípio da fungibilidade recursal é compatível com o CPC e alcança todos os recursos, sendo aplicável de ofício”.
Muito embora inexista no CPC/15 expressa previsão legal acerca da aplicação da fungibilidade recursal, fato é que o código prevê, expressamente, três situações nas quais, por discricionariedade do julgador, aplicar-se-á tal fungibilidade: no conhecimento dos embargos de declaração como agravo interno (art. 1.024, §3º)<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote5sym" name="sdfootnote5anc">5</a>, na encaminhamento de recurso especial ao STF, para ser analisado como recurso extraordinário (art. 1.032)<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote6sym" name="sdfootnote6anc">6</a> e no encaminhamento de recurso extraordinário ao STJ, para ser admitido como recurso especial (art. 1.033)<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote7sym" name="sdfootnote7anc">7</a>.
Com efeito, nas duas primeiras hipóteses, assegura-se à parte recorrente o direito de complementar/adequar suas razões recursais, evitando-se, assim, sua inadmissibilidade por ausência das formalidades legais, garantindo-se o contraditório.
De tudo, se extrai que o princípio da fungibilidade é plenamente admitido, aplicado e, ainda que de modo incipiente, autorizado legislativamente, em hipóteses específicas.
O fato inquestionável é que, privilegiando-se o princípio constitucional da primazia do mérito (art. 4º, CPC/2015, e art. 5º, inciso XXXV, CF), bem como os ditames da instrumentalidade das formas<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote8sym" name="sdfootnote8anc">8</a> e do aproveitamento dos atos processuais<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote9sym" name="sdfootnote9anc">9</a>, a fungibilidade recursal possui o escopo de buscar o máximo proveito da interposição recursal, primando pelo bom desenvolvimento e celeridade processual.
Recentemente, indo além na delimitação da fungibilidade, o Superior Tribunal de Justiça incluiu novo fundamento na conceituação de dúvida objetiva, de modo a garantir às partes a boa-fé na interpretação dos atos processuais.
Nesse sentido, a Corte entendeu que o conceito de "dúvida objetiva", para a aplicação do princípio da fungibilidade recursal, pode ser relativizado, excepcionalmente, quando o equívoco na interposição do recurso cabível decorrer da prática de ato do próprio órgão julgador.
A ementa do julgado foi lavrada nos seguintes termos:
“PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIVERGÊNCIA ENTRE AS TURMAS DA 2ª SEÇÃO EM CASOS IDÊNTICOS, INCLUSIVE ENVOLVENDO AS MESMAS PARTES E ÓRGÃOS JUDICIAIS DE 1ª E 2ª INSTÂNCIAS. EXCEPCIONALIDADE DO CASO CONCRETO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. EXCLUSÃO DE EXECUTADO DO POLO PASSIVO. INTERPOSIÇÃO DE APELAÇÃO AO INVÉS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. INEXISTÊNCIA DE MÁ-FÉ. INDUÇÃO A ERRO PELO JUÍZO. RELATIVIZAÇÃO DA DÚVIDA OBJETIVA NA RESTRITA HIPÓTESE DOS AUTOS. PRINCÍPIO DA FUNGIBILIDADE. APLICABILIDADE. PRECEDENTES. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA A QUE SE DÁ PROVIMENTO.”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote10sym" name="sdfootnote10anc">10</a>
No caso concreto, o Tribunal entendeu que há situações em que os termos em que é redigida a decisão pelo julgador são determinantes para a interposição equivocada do recurso. Na hipótese dos autos, afirmou que, embora a decisão do juiz singular não tenha colocado termo ao processo de execução, o magistrado deu a ela verdadeiro tratamento de sentença, porque assim a denominou e registrou, além de receber e processar o recurso de apelação interposto pela parte.
Dessa forma, o entendimento do STJ foi de que o juízo colaborou diretamente para o surgimento da dúvida quanto ao recurso cabível, afastando-se a eventual má-fé na interposição da apelação, e autorizando a aplicação do princípio da fungibilidade.
Observa-se, assim, que nem sempre o equívoco recursal é decorrente de incerteza ou dúvida do patrono: a “dúvida objetiva” pode originar-se da prática de ato do próprio órgão julgador.
E foi exatamente esta a decisão do caso em epígrafe. A posição do Superior Tribunal de Justiça é louvável e adequa-se ao critério estabelecido anteriormente para o que se entende por erro grosseiro. Veja-se que o erro se deu por influência do juiz, que, equivocadamente, nomeou a decisão como sentença.
A partir de uma leitura da boa-fé processual, em conjunto com o princípio da cooperação, extrai-se que ambas as figuras colorem a essência da decisão do Superior Tribunal de Justiça, ainda que não mencionadas expressamente por aquela Corte.
É que a boa-fé (objetiva), insculpida no art. 5º da CPC/15, traz a ideia de que todos aqueles que participam do processo devem agir a partir de condutas previamente estabelecidas, em conformidade com padrões ajustados, para impedir que se utilizem do processo de maneira ilícita ou imoral. Tal atitude é um dever da parte não só em relação ao seu adversário, mas em relação ao próprio judiciário e a ela própria enquanto sujeito da relação processual.
Assim é que, ao se deparar com uma decisão (lato sensu) nominada como sentença e registrada nos autos como sentença, a parte, ao idealizar o recurso cabível, deve agir confiando na proteção que o processo confere a ela, a partir de uma leitura garantista, calcada num viés de boa-fé na prestação jurisdicional entregue pelo estado-juiz.
Uma das funções da boa-fé objetiva, conforme Fábio Monnerat, é proibir comportamento incoerente<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote11sym" name="sdfootnote11anc">11</a>, daí por que, sendo ela um princípio aplicável a todos os participantes do processo, sejam eles as partes, sejam os juízes, não se pode admitir que o judiciário nomine e registre um ato judicial como sentença, e depois entenda equivocada a interposição de apelação contra esse ato.
André Luiz Maluf acrescenta que se “impõe a todos que intervêm em juízo (litigantes, terceiros, juiz e auxiliares) um compromisso robusto com os interesses que atende a administração de uma boa justiça”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote12sym" name="sdfootnote12anc">12</a>. Por boa justiça certamente se entende a devida condução do processo e a correta aplicação do direito.
No mesmo passo, o princípio da cooperação, também previsto no CPC/15 (art. 6º), confere aos sujeitos do processo (partes e juiz) o dever de auxílio e informação mútuos, no sentido de impedir vícios e óbices processuais que prejudiquem a adequada prestação jurisdicional, buscando, em última análise, a resolução do mérito.
Como assevera Lúcio Grassi, quanto à participação do juiz na cooperação processual, “o dever de auxílio consiste no dever de auxiliar as partes da remoção das dificuldades ao exercício dos seus direitos e faculdades e no cumprimento de ônus e deveres processuais”.<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote13sym" name="sdfootnote13anc">13</a>
No mesmo sentido, Eduardo Madruga e Rinaldo Mouzalas trazem luzes sobre o tema, principalmente no tocante à responsabilização do juiz ante a falta de cooperação para o bom caminhar do processo:
“O novo Código apresenta, como marco estrutural do processo a cooperação intersubjetiva, que almeja a figura de um juiz colaborante, que personifica os anseios democráticos e participativos de um Estado Democrático de Direito, de modo a transformar o processo civil em uma comunidade de trabalho (arbeitsgemeinschaft) e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados.” <a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote14sym" name="sdfootnote14anc">14</a>
Destarte, o juiz do caso em análise, ao deixar de nominar adequadamente a decisão proferida, além de promover equivocada expectativa na parte, quanto ao recurso adequado a ser interposto, deixou de cooperar para o correto desenvolvimento do processo, pavimentando um indevido caminho a ser percorrido pela parte recorrente.
Se tal cooperação deixa de ocorrer, ou, ainda, se a atuação do magistrado induz uma cooperação indevida, deve o Estado-Juiz, personificado na figura do magistrado corrigir o equívoco.
No caso concreto, essa correção deveria se dar, ou com a prolação de nova decisão, corretamente nominada, ou, em respeito à celeridade processual, com a admissão do recurso interposto equivocadamente, como correto, em atenção ao princípio da fungibilidade, porque inexistente erro grosseiro, e, por que não dizer, existente efetiva dúvida objetiva quanto ao recurso devido.
Não se trata apenas de cooperar para a resolução do mérito; o juiz deve, ainda, cooperar para o perfeito desenvolvimento da marcha processual, impedindo deslizes das partes, que advenham de manifestações e atitudes do próprio Poder Judiciário.
Portanto, pode-se concluir que o princípio da fungibilidade, a partir da decisão do Superior Tribunal de Justiça, deve ter uma nova leitura, que conduza a sua aplicação, orientada pelos princípios da boa-fé e da cooperação processual.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> WAMBIER, Luiz Rodrigues e TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado de Processo Civil, vol. 2. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 16ª edição, p. 475. 
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> Ibidem, p. 475. 
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> Dentre vários, REsp 1631873/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 13/12/2016. 
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; ROQUE, André Vasconcelos; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Execução e Recursos – Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2017, p. 929. 
</div>
<div id="sdfootnote5">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote5anc" name="sdfootnote5sym">5</a> § 3o O órgão julgador conhecerá dos embargos de declaração como agravo interno se entender ser este o recurso cabível, desde que determine previamente a intimação do recorrente para, no prazo de 5 (cinco) dias, complementar as razões recursais, de modo a ajustá-las às exigências do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm#art1021%C2%A71">art. 1.021, § 1o</a>.
</div>
<div id="sdfootnote6">
<a name="art1032p"></a> <a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote6anc" name="sdfootnote6sym">6</a> “Art. 1.032.  Se o relator, no Superior Tribunal de Justiça, entender que o recurso especial versa sobre questão constitucional, deverá conceder prazo de 15 (quinze) dias para que o recorrente demonstre a existência de repercussão geral e se manifeste sobre a questão constitucional. Parágrafo único.  Cumprida a diligência de que trata o caput, o relator remeterá o recurso ao Supremo Tribunal Federal, que, em juízo de admissibilidade, poderá devolvê-lo ao Superior Tribunal de Justiça.”
</div>
<div id="sdfootnote7">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote7anc" name="sdfootnote7sym">7</a> “Art. 1.033.  Se o Supremo Tribunal Federal considerar como reflexa a ofensa à Constituição afirmada no recurso extraordinário, por pressupor a revisão da interpretação de lei federal ou de tratado, remetê-lo-á ao Superior Tribunal de Justiça para julgamento como recurso especial.”
</div>
<div id="sdfootnote8">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote8anc" name="sdfootnote8sym">8</a> “Art. 277.  Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade”.
</div>
<div id="sdfootnote9">
<a name="art283p"></a> <a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote9anc" name="sdfootnote9sym">9</a> “Art. 283.  O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo ser praticados os que forem necessários a fim de se observarem as prescrições legais.Parágrafo único.  Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte.”
</div>
<div id="sdfootnote10">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote10anc" name="sdfootnote10sym">10</a> EAREsp 230.380/RN, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe 11/10/2017. 
</div>
<div id="sdfootnote11">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote11anc" name="sdfootnote11sym">11</a> MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Introdução ao estudo do direito processual. São Paulo: Saraiva, 2ª edição, 2017, p. 218. 
</div>
<div id="sdfootnote12">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote12anc" name="sdfootnote12sym">12</a> ARAÚJO, André Luiz Maluf. A boa fé processual. Conceito. Deveres de veracidade e colaboração. Reflexões in https://www.academia.edu/28035486/A_BOA_FÉ_PROCESSUAL._CONCEITO._DEVERES_DE_VERACIDADE_E_COLABORAÇÃO._REFLEXÕES.
</div>
<div id="sdfootnote13">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote13anc" name="sdfootnote13sym">13</a> GOUVEIA, Lúcio Grassi de. A função legitimadora do princípio da cooperação intersubjetiva no processo civil brasileiro in Revista de Processo RePro 172, ano 34, junho/2009, p. 34.
</div>
<div id="sdfootnote14">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote14anc" name="sdfootnote14sym">14</a> FIGUEIREDO FILHO, Eduardo Augusto Madruga de e MOUZALAS, Rinaldo. Cooperação e vedação a decisões por emboscada (“ambush decisions”) in Coleção Novo CPC – Doutrina Selecionada, vol. 1 – Parte Geral. Salvador: Jus Podivm, 2ª edição, 2016. 
</div>

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JOTA

Princípio deve ter uma nova leitura a partir da decisão do STJ

Fungibilidade recursal, boa-fé e cooperação processual

Princípio deve ter uma nova leitura a partir da decisão do STJ