Opinião e Análise

Marco Aurélio Peixoto

Rodrigo Becker

Na coluna desta semana, analisaremos o contexto motivador da edição do Enunciado 111, do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, fruto da VI Jornada de Direito da Saúde, ocorrida em Cuiabá em junho.
Segundo o Enunciado, salvo concordância da parte contrária, viola o art. 329 do Código de Processo Civil pedido de alteração da tecnologia de saúde após o saneamento, devendo, no caso de necessidade de alteração do tipo de tratamento, ser proposta nova demanda.
É importante explicar o que motivou a proposta, que se originou da Advocacia-Geral da União (AGU), como foram os debates e como tem se dado a interpretação do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>) acerca da temática.
A judicialização da saúde é uma realidade presente e marcante na atuação do Poder Judiciário, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública, do Ministério Público e da advocacia privada. Proliferam-se as demandas e as discussões giram em torno não apenas de questões de direito material ou fáticas, mas atingem também questões de caráter processual.
Um dos temas que se discute na atualidade reside na possibilidade – ou não – de alteração do pedido em demandas de saúde. Explica-se. Boa parte das demandas que envolvem saúde pública dizem respeito a pedido de obrigação de fazer, a fim de que o poder público forneça determinado medicamento, para tratar doenças específicas, normalmente oncológicas, quando esses medicamentos não foram incorporados pelos órgãos competentes para aquelas doenças, ou quando ainda não foram objeto do devido registro.
Não raramente também, ainda que tenha sido concedida a tutela antecipada, o médico prescritor muda de ideia, passando a compreender que uma outra medicação ou tratamento passa a ser mais adequado ao seu paciente assistido, razão pela qual se peticiona ao magistrado, anexando nova receita ou novo laudo médico, pugnando pela alteração do pedido, para que seja substituído o medicamento ou o tratamento por outro.
Deparando-se com esse requerimento, fica o magistrado diante do seguinte dilema: tal solicitação é de ser atendida sem necessidade de que seja ouvida a parte adversa – no caso, o Poder Público –, ou haverá a necessidade de prévia anuência do réu?
É sabido que os pedidos constantes da petição inicial balizam a atuação do julgador. O princípio da congruência ou da adstrição, consagrado no art. 492 do CPC, veda ao juiz proferir decisão de natureza diversa da pedida, assim como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.
No tocante à alteração do pedido, o art. 329 do CPC estabelece os limites temporais. Até a citação, a alteração é livre, de modo que o autor pode requerer a modificação do pedido independentemente da anuência do réu. Após a citação, e até o saneamento do processo, a alteração do pedido ou da causa de pedir somente ocorrer com a anuência do réu, e desde que seja assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifestação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.
A nosso ver, requerimentos de troca da medicação ou do tratamento perseguido configuram mudança do objeto da ação, o que é vedado pela legislação processual, configurando afronta também aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, insculpidos no art. 5º, LIV e LV, da Constituição Federal, ao se promover modificação dos rumos da ação.
Ora, se o pedido constante da exordial foi certo e delimitado, de compelir o poder público ao fornecimento de um medicamento “X”, na dosagem prescrita e pelo tempo que fora indicado pelo médico prescritor, ao modificar o medicamento/tratamento, no curso da ação, há violação do princípio da estabilização da demanda, decorrência lógica do princípio constitucional do devido processo legal e do contraditório e da ampla defesa.
Parece-nos que, em situações como tais, em que o médico opta por modificar o medicamento ou o tratamento, adequado seria a desistência da ação, com a propositura de nova demanda, de modo a viabilizar que o réu tivesse a chance de apresentação de nova contestação, no tempo e forma devidos.
Como se não bastasse, é de se afirmar que aceitar indiscriminadamente uma modificação do pedido contraria o diálogo entre demanda e tutela jurisdicional, ultrapassando os limites da ação. Se os limites são propostos pelas partes, como bem se afirma no art. 141 do CPC, não há razões para modificações no pedido no curso do feito, o que pode gerar prejuízo irreparável à demandada, notadamente no direito de defesa. Se não se pode renunciar ao devido processo legal, não é dado ao autor modificar indefinidamente os seus pedidos, ao longo da demanda.
Parece-nos que a atitude correta seria a de vedar, em estrito respeito ao art. 329 do CPC, alterações no pedido após a estabilização da demanda, que se dá com a concretização da citação da parte ré.
A jurisprudência do STJ sempre foi firme neste sentido da vedação, quando não houver consentimento do requerido. A respeito, podemos referir, para citar julgados recentes, o AgInt no AREsp 2184025/SP, Rel. Min. João Otávio Noronha, Quarta Turma, DJE 16/03/2023; o AgInt no AREsp 1556908/SP, Rel. Min. Manoel Erhardt (convocado do TRF/5), Primeira Turma, DJE 02/12/2022; o AgInt no AgInt no AREsp 1910187/RO, Rel. Min. Antônio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJE 18/03/2022; o AgInt nos EDcl no AREsp 1529863/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJE 21/09/2020; e o AgInt no AgRg no AREsp 66.291/RJ, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, DJE 02/05/2019.
E vamos além. A rigor, nessas situações, estamos também diante de verdadeira alteração na causa de pedir, já que está é inevitavelmente relacionada à prescrição do medicamento e ao relatório ou laudo médico acostados como prova documental. Dessa forma, quando há uma tentativa superveniente de substituição da medicação ou tratamento, revela-se situação estranha à causa de pedir, a qual deveria ser rechaçada pelo magistrado, na hipótese de não se ter a concordância do réu.
Concretamente, no entanto, talvez pelo clamor social que reclamam as demandas, muitos magistrados têm ignorado as prescrições dos arts. 141, 329 e 492 do CPC e também deixado de lado garantias constitucionais, para deferir, sem a ouvida e a concordância da Fazenda Pública, a substituição da medicação ou do tratamento, a partir de um novo relatório ou laudo médico. Por vezes, observa-se a aceitação da modificação já no cumprimento provisório da sentença, isto é, estando o processo em grau de recurso de apelação desprovido de efeito suspensivo.
Curiosamente, o STJ tem julgados<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> admitindo esses pedidos de modificação após a citação do réu, por entender que a substituição de um medicamento por outro para tratar a mesma doença não constitui novo pedido, pois os objetos imediatos e mediatos não restariam alterados. Fundamenta-se que o provimento jurisdicional buscado (fornecimento do medicamento para tratar a moléstia e manter a sua saúde e uma vida digna) não estaria sendo modificado.
Ousamos discordar. Não parece correta a interpretação de que o objeto é apenas o fornecimento de medicamento para tratar a moléstia. Não se trata de afirmar que é o medicamento X,  mas que poderia ser o Y, o Z ou o W. A linha de argumentação da defesa muda, e muito, a depender da medicação prescrita pelo médico. Ser ou não incorporado pela <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/conitec">Conitec</a>, ser ou não registrado pela Anvisa, ser ou não off label, ter ou não análise do custo-efetividade, haver ou não outros tratamentos indicados no SUS, com eficácia reconhecida... São muitas as variantes, razão pela qual, insiste-se, o adequado seria, inexistindo a concordância do réu, que o autor desistisse da ação originária e propusesse uma nova demanda.
No último Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde (Fonajus), realizado em Cuiabá, editou-se, como já dito linhas atrás, o Enunciado 111, que afirma que, salvo concordância da parte contrária, viola o artigo 329 do Código de Processo Civil pedido de alteração da tecnologia de saúde após o saneamento, devendo, no caso de necessidade de alteração do tipo de tratamento, ser proposta nova demanda.
Foi o ideal? Não, mas inegavelmente um avanço. A proposta original que a AGU apresentou sugeria o respeito estrito ao art. 329, na linha de que se deveria exigir a concordância para pedidos formulados após a contestação. Como se depreende da redação do enunciado, a vedação à modificação do pedido se deu apenas após o saneamento.
Sob nossa ótica, o teor do enunciado confere uma elasticidade ao art. 329 que não foi desejada pelo legislador. De todo modo, considerando que, apesar de os enunciados do Fonajus não guardarem qualquer caráter vinculante, mas meramente argumentativo, estes são corriqueiramente seguidos pelos juízes que lidam com questões de saúde.
E, assim sendo, apaziguar-se-ão vários cenários que hoje inquietam os que defendem a Fazenda Pública, já que após o saneamento do feito, a tendência é que os magistrados não mais aceitem ditos requerimentos de modificação do fármaco ou do tratamento, de forma que o autor tenha que propor uma nova demanda.
De todo modo, insta que o tema seja pacificado na jurisprudência do STJ. É relevante que aquela Corte enfrente a questão, preferencialmente em sede de recurso repetitivo, de modo que se defina, formando precedente obrigatório, qual o limite temporal no processo, para que venha a ocorrer o pedido de alteração do medicamento ou do tratamento pretendido.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Nesta linha, podem ser citados os seguintes julgados: REsp 1.195.704/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/11/2010, DJe 17/11/2010); AgRg no REsp 1.496.397/RS, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015; AgInt no REsp 1973649/MG, Rel. Ministra Regina Helena Costa, PRIMEIRA TURMA, julgado em 13/03/2023, DJE 16/03/2023.

superior tribunal de justica stj

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JOTA

O recém-editado enunciado do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde

Em demandas de saúde, é possível alterar o pedido após o saneamento?

O recém-editado enunciado do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde