Opinião e Análise

Rodrigo Becker

Victor Trigueiro

Prezados leitores do JOTA,
O benefício da assistência judiciária gratuita (AJG), consistente na possibilidade de a parte com insuficiência de recursos ter acesso ao judiciário, independentemente do pagamento de custas, está previsto na Lei 1.060/1950. Tal lei garantiu aos menos favorecidos o direito ao acesso à justiça e à tutela jurisdicional em situação material de igualdade, isentando-os das despesas do processo, na linha do que dispõe o art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal[1].
Como se pode observar, a ideia de prestar assistência judiciária pelo Estado está regulamentada desde 1950, e teve como fundamento a primeira onda renovatória do processo civil (assistência jurídica integral aos necessitados) e a armenrecht (lei dos pobres) do direito alemão[2].
Com a Constituição Federal, e sua disciplina mais ampla acerca da assistência jurídica integral, a Lei 1.060/50 foi recepcionada e os direitos nela previstos ecoados em diversas outras normas, dentre as quais o próprio Código de Processo Civil de 1973, que, muito embora não a tratasse de forma explícita, reconhecia a sua existência em diversos artigos (arts. 232, § 2 e 475-A, § 3º são alguns exemplos).
O novo CPC inovou no tratamento do benefício e, de forma expressa, em seção própria, regulamentou em 5 artigos o procedimento para obtenção da assistência judiciária gratuita no processo civil, revogando uma parte da Lei 1.060/50.    
A AJG foi regulada pelos arts. 98 a 102 do CPC/2015, com detalhes e profundidade, de forma mais extensiva que a Lei 1.060/50. Não é por menos que o art. 1072, III, do novo código, revogou alguns dispositivos da referida lei, exatamente porque é o diploma processual que agora estabelece o procedimento para a concessão do benefício.
Algumas regras que já eram consolidadas na doutrina, na jurisprudência e até mesmo na Lei 1.060/50, foram taxativamente estabelecidas no código, como: a) possibilidade de concessão do benefício a pessoas jurídicas; b) presunção de veracidade da declaração de pobreza fornecida pela parte pessoa física; c) suspensão por 5 anos das obrigações decorrentes da sucumbência do detentor do benefício; d) possibilidade de concessão do benefício mesmo se a parte for representada por advogado particular; e) desnecessidade de recolhimento do preparo, se o pedido de assistência for deduzido na interposição de recurso.
Outras situações são novidades no CPC/2015, valendo transcrever as seguintes: a) possibilidade de parcelamento de despesas processuais que o beneficiário tiver que adiantar no curso do processo; b) extensão da assistência aos estrangeiros não residentes no país; e c) cabimento de concessão parcial do benefício.
Todavia, mesmo com todo o esforço do Código, uma questão permaneceu omissa: o benefício da assistência judiciária gratuita, concedido no curso do processo, pode retroagir?
Conforme o art. 99, § 1º, do CPC/15, pode-se requerer o benefício da gratuidade da justiça tanto no ato de demandar quanto no curso de processo, desde que não esgotada a prestação jurisdicional, estabelecendo a doutrina, ainda, que nesse último caso, fica impossibilitada a extensão retroativa da assistência judiciária.
Como afirma Ticiano Alves e Silva, “o deferimento do pedido posterior de justiça gratuita não tem efeitos retroativos, noutras palavras, não alcança as despesas processuais anteriores ao pedido”[3]. No mesmo sentido:
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O Superior Tribunal de Justiça (STJ), na mesma linha, decidiu que o benefício da assistência judiciária gratuita, ainda que possa ser requerido a qualquer tempo, tem efeitos ex-nunc, ou seja, não retroage para alcançar encargos processuais anteriores.
Veja-se, dentre vários, o seguinte julgado:
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AGRAVO   INTERNO NO AGRAVO (ART.  544 DO CPC/73) -  PLEITO = DE RESTITUIÇÃO DAS CUSTAS PROCESSUAIS ANTE O DEFERIMENTO DOS BENEFÍCIOS DA GRATUIDADE DE JUSTIÇA - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO DOS BENEFICIÁRIOS DA GRATUIDADE.
<ol>
<li>  A jurisprudência desta Corte Superior firmou o entendimento de que o benefício da assistência judiciária gratuita, conquanto possa ser requerido = a qualquer tempo, tem efeitos ex nunc, ou seja, não retroage para alcançar encargos processuais anteriores. Logo, não há que se falar em restituição de valores pagos a título de custas e despesas processuais face o posterior deferimento da benesse. Precedentes.</li>
<li> Agravo interno desprovido. (AgInt no AREsp 909.951/SP, Rel. Min. MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, DJe 01/12/2016)</li>
</ol>
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Uma das justificativas para esse entendimento é que isentar alguém das despesas já adiantadas pela outra parte implicaria ver frustrado legítimo direito a reembolso, existente na oportunidade de realização daquele ato. Ademais, a extensão retroativa da gratuidade infringiria o art. 9º da Lei no 1.060/50, segundo o qual o benefício só compreende os atos "até a decisão final do litígio, em todas as instâncias". 
Há, ainda, forte argumento no sentido de que, caso se admitisse a retroação dos efeitos da concessão do benefício, a parte que estivesse na iminência de ser derrotada, poderia pedir a assistência gratuita com o intuito de se ver liberada do pagamento dos ônus da sucumbência[4].
Vale, por fim, trazer a lição de Araken de Assis, acerca da impossibilidade de a AJG retroagir, caso concedida posteriormente à extinção do processo:
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“Finalmente, a concessão da gratuidade, extinto o processo, inibiria eficácia própria da sentença, infringindo a autoridade de coisa julgada (art. 467 do CPC). Mercê do transito em julgado, as despesas e os honorários se transformaram em dívida do vencido, conquanto originada pelo processo. Corolário desse raciocínio é a possibilidade de o vencido interpor recurso em caráter autônomo ou subordinado (art. 500 do CPC) para obter a gratuidade. A interposição do recurso impedirá a extinção do processo, provocando seu prolongamento, e, portanto, a ação ainda tramita, consoante reza o art. 6o, primeira parte, da Lei no 1.060/50.”[5]
&nbsp;
Muito embora os robustos argumentos doutrinários e jurisprudenciais, o Código de Processo Civil permaneceu silente sobre o tema. Algumas considerações, contudo, são necessárias sobre esse silêncio.
A primeira é que, ainda que não tenha regulado a hipótese, há julgados recentes do Superior Tribunal de Justiça, mantendo a posição anterior, mesmo sob a égide do novo código, ainda que não o mencionando expressamente. É o caso do acórdão citado anteriormente, bem como dos seguintes arestos proferidos: AgInt no AREsp 905.246/MG, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, DJe 06/09/2016 e AgInt no AgRg no AREsp 38.549/SP, Rel. Min. NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, DJe 21/02/2017.
A outra questão a se considerar é a redação do art. 98, § 5º, do CPC/15, que, inovando em relação ao código anterior, estabeleceu que a gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais. Veja-se a redação do dispositivo:
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Art. 98, § 5º - A gratuidade poderá ser concedida em relação a algum ou a todos os atos processuais, ou consistir na redução percentual de despesas processuais que o beneficiário tiver de adiantar no curso do procedimento.
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O objetivo da norma, como ensina Ticiano Alves e Silva, é aplicar a proporcionalidade como balizadora do benefício, fixando a extensão da gratuidade, e assim evitando que aquele que tem algum recurso para pagar as despesas do processo usufrua desse benefício integralmente[6].
Poder-se-ia questionar, a partir da leitura, se essa concessão pode abranger atos passados, na medida em que a norma não faz juízo temporal sobre os referidos atos passíveis de serem alcançados pelo benefício.
A nosso juízo, a resposta é negativa.
Com efeito, mesmo que a redação do § 5º não tenha sido clara, entendemos que o legislador quis se referir aos atos futuros do processo, que poderão ser indicados individualmente para fins de abrangência da assistência judiciária gratuita.
Isso porque, permanecem as razões que fizeram a doutrina e a jurisprudência entender que não é possível a retroação dos efeitos do benefício, sobretudo porque os atos foram praticados quando não se tinha notícia de que o requerente pleitearia a concessão da assistência.
Trata-se, ainda, de questão de boa-fé processual, agora inserida taxativamente no código[7], porquanto a parte contrária, que poderia ter a expectativa de se ver ressarcida pelas despesas efetuadas no curso do processo, caso saia vitoriosa, não mais poderá se aproveitar da regra processual oriunda da sucumbência. O pedido de assistência, deferido retroativamente, funcionará, assim, como uma surpresa para a parte contrária, que se verá impossibilitada de ser ressarcida como antes.
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça continua afirmando não ser possível, de forma ampla, a concessão de efeitos retroativos ao pedido de assistência judiciária. Se assim é, não pode ser concedido, seja genérica, seja especificamente, para algum ato do processo.
Ressalte-se, por oportuno, que o art. 9º da Lei 1.060/50, citado acima, é expresso em fazer um decote temporal em sentido único. Diz o dispositivo, referindo-se a “atos processuais”, que “os benefícios da assistência judiciária compreendem todos os atos do processo até decisão final do litígio, em todas as instâncias”. A interpretação da norma leva a crer que diz respeito aos atos praticados daquele momento (decisão de concessão) até o final do processo.
Por fim, há a questão de uma eventual operacionalização da concessão retroativa, pois se assim fosse concedida a assistência, a parte requerente teria direito ao reembolso daquilo já despendido no curso do processo. Surgiria, assim, uma situação atípica: a parte tinha condições para arcar com as despesas, efetivamente arcou, mas posteriormente, por conta da perda dessa condição, terá direito ao reembolso. Certamente, essa solução levará ao locupletamento ilícito.
Essas são as razões pelas quais entendemos que, muito embora tenha sido deficiente o CPC/2015 em não prever a impossibilidade de retroação dos efeitos da concessão AJG, permanece válido e aplicável o entendimento do STJ e da doutrina acerca dessa impossibilidade. Além disso, a disposição do art. 98, § 5º, do código, apesar de ter dito menos do que deveria, não autoriza que se defira o benefício em relação a atos já praticados no processo. 
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[1] Art. 5º, LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. 
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, volume II, 4ª edição, p. 671.  
[3] SILVA, Ticiano Alves e. O benefício da justiça gratuita no novo Código de Processo Civil in Coleção Novo CPC – Doutrina Selecionada. Salvador: Jus Podivm, 2ª edição, 2016, p. 994. 
[4] DIDIER JR. Fredie e OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Benefício da justiça gratuita, 5ª edição. Salvador: Juspodivm, 2012, p. 49-50. 
[5] ASSIS, Araken. Benefício da gratuidade. Ajuris 73/162, biênio 1998-1999, p. 178-180. 
[6] SILVA, Ticiano Alves e. Ob. cit., p. 990. 
[7] Art. 5o Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

Justitia

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Benefício retroage se concedido durante o processo?


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Benefício retroage se concedido durante o processo?