Opinião e Análise

Alexandre Bartilotti

Marco Aurélio Peixoto

Prezados leitores do JOTA, nesta primeira coluna de 2020, analisaremos recente entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no âmbito do Recurso Especial 1.631.846/DF, atinente ao não conhecimento de recurso especial contra acórdão que inadmitiu a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas.
Na hipótese que originou o acórdão objeto do Recurso Especial, a Defensoria Pública do Distrito Federal requereu junto ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios – TJDFT, a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas – IRDR, previsto entre os arts. 976 e 987 do Código de Processo Civil, em razão de múltiplas decisões emanadas do Juiz da 4ª Vara de Família, Órfãos e Sucessões de Ceilândia/DF, o qual determinou em vários processos a emenda à petição inicial para inclusão no polo ativo das ações de divórcio consensual, os filhos menores do casal como beneficiários de prestação alimentícia.
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<li>+JOTA <a href="https://www.jota.info/degustacao/contato-poder" target="_blank" rel="noopener noreferrer" data-saferedirecturl="https://www.google.com/url?q=https://www.jota.info/degustacao/contato-poder&amp;source=gmail&amp;ust=1580491895979000&amp;usg=AFQjCNH7y1HOluSrdlavzyGgACYkH0mWjg">Sua organização está preparada para 2020? Com o JOTA PRO, milhares de profissionais antecipam o impacto de decisões judiciais no seu planejamento do ano. Entre em contato e faça um diagnóstico!</a></li>
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No âmbito do TJDFT, não se houve por admitir a instauração do IRDR, por não existir naquele tribunal processo sobre o tema, mas tão somente decisão de primeira instância de um único juiz. Aplicou-se, na situação concreta, a teoria da causa-piloto, supostamente escolhida pelo legislador brasileiro no CPC/2015, em que uma ou algumas causas são selecionadas no Tribunal respectivo para julgamento, havendo unidade cognitiva, isto é, o mesmo órgão que aprecia a questão comum julga o processo originário. Em tal sistema, faz-se indispensável a existência de, no mínimo, uma causa pendente no tribunal, para fins de admissão e julgamento do mérito do IRDR<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a><a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Contra a decisão de inadmissão, foi interposto pela Defensoria Pública recurso especial, sob o argumento de que teria havido afronta ao artigo 976, incisos I e II do CPC, já que o diploma processual não condicionaria a admissão do incidente à pendência de julgamento de qualquer recurso sobre a matéria.
Na Terceira Turma do STJ, o julgamento foi recheado de interrupções, fruto de sucessivos pedidos de vista, com debates acerca dos requisitos de admissibilidade do recurso e também sobre o mérito recursal, qual fosse, a admissibilidade ou não do IRDR sem a existência de causa pendente do tribunal.
O Ministro Relator, Paulo de Tarso Sanseverino, em seu voto negou provimento ao recurso por entender que, em relação à competência dos tribunais de justiça, o legislador ordinário pode criar incidentes processuais para causas originárias e recursais que tramitem nos próprios tribunais, não lhe competindo, no entanto, criar novas competências originárias para os tribunais. Ademais, em relação à exigência de recurso pendente de julgamento, entendeu que, para a instauração do incidente, é necessária a existência de pelo menos um recurso ou ação de competência originária em tramitação no tribunal local, versando sobre a questão de direito objeto do IRDR. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vistas da Ministra Nancy Andrighi.
No voto-vista, que houve por prevalecer, a Ministra Nancy Andrighi trouxe para o julgamento uma questão não enfrentada pelo Relator, pertinente à inadmissibilidade do recurso especial contra acórdão que delibera sobre a (in)admissibilidade da instauração de IRDR, por ausência de interesse de recorrer.
O voto condutor do acórdão defendeu o não cabimento de recurso especial utilizando como principal premissa a ausência de interesse de recorrer, fruto da previsão do art. 976, §3º do CPC. Isso porque o referido artigo estabelece a possiblidade da parte suscitar a instauração de novo incidente sanando do vício do primeiro requerimento, apresentando ou corrigindo o requisito de admissibilidade faltante.
Em outras palavras, o juízo de admissibilidade do incidente não preclui, e diante de tal situação não existiria interesse em recorrer. Ainda de acordo com tal voto, o cabimento do recurso especial ou extraordinário se dá contra o acórdão de mérito do incidente, aquele que fixa a tese, conforme se verifica no disposto no art. 987 do CPC. Sendo assim, diferentemente do Relator, a Ministra votou pelo não conhecimento do Recurso Especial. No mérito, negou provimento em virtude da ausência do requisito da efetiva repetição de processos contendo a mesma questão de direito.
Houve um novo pedido de vistas, desta feita do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Em seu voto, também pelo não conhecimento, defendeu que as hipóteses de cabimento de recurso especial devem ser interpretadas no sentido mais amplo, entendendo que a expressão “causa decidida em última instância” é sinônimo de “questão jurídica controvertida” que deve ser apreciada e definida pelo STJ relativamente à extensão da aplicação dos dispositivos de lei federal com abrangência nacional, caso contrário estar-se-ia abdicando da função precípua exercida pelo STJ conforme previsão constitucional. No mérito, negou provimento ao recurso por entender que diante da natureza jurídica de incidente faz-se necessário a existência de um processo pendente para a admissão do IRDR.
O Ministro Marco Aurélio Belizze acabou por acompanhar o entendimento da Ministra Nancy Andrighi, votando pelo não conhecimento do recurso especial por entender que o sentido da expressão “causas decididas em única ou última instância” contém a exigência do caráter definitivo da decisão recorrida, o que não ocorre na decisão que inadmite o IRDR devido a possibilidade de instauração de novo incidente. No mérito negou provimento ao recurso especial pela ausência de efetiva repetição de processos contendo a mesma questão de direito.
Na sequência, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva procedeu a uma retificação de seu voto, acompanhando o relator no ponto relativo à necessidade de causa pendente no próprio tribunal para o processamento e admissão do IRDR. Houve uma nova interrupção do julgamento, seguida do voto-vista do Ministro Moura Ribeiro, que desempatou a questão atinente à admissibilidade do recurso especial, acompanhando a Ministra Nancy Andrighi e o Ministro Marco Aurélio Bellizze. O principal fundamento utilizado em seu voto, para não conhecer do recurso, foi a previsão do art. 976, §3º do CPC, no sentido de que a decisão de inadmissibilidade do IRDR não preclui, pois há a possibilidade de nova propositura do incidente desde que preenchidos os requisitos faltantes.
Como pudemos observar, o julgamento em comento apresentou uma interessante peculiaridade. De início, a discussão era sobre a exigência ou não de recurso ou ação originária no tribunal, para a admissão do IRDR, isto é, a tão falada dicotomia entre causa-modelo e causa-piloto. Tal debate acabou prejudicado, em função dos entendimentos acerca da admissão ou não do próprio recurso especial para atacar tal decisão.
<blockquote class="jota-article__eye">A tese vencedora, fruto do voto da Ministra Nancy Andrighi, vitoriosa em apertada votação, disse respeito à inadmissibilidade do recurso especial contra decisão que analisa os requisitos de admissibilidade do IRDR. Na doutrina, a temática é controvertida, do mesmo modo que se deu no STJ.</blockquote>
Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da Cunha<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> entendem, com base no art. 976, §3º do CPC, que a decisão que admite ou inadmite o IRDR é irrecorrível, salvo embargos de declaração, pois caso haja juízo de admissibilidade negativo, não há preclusão, bastando suscitar novamente o incidente quando da superveniência de fato para preencher o requisito ausente. O voto condutor do acórdão encampou tal tese como seu fundamento principal. Dessa forma, o fato de não haver a preclusão, ou seja, sendo possível reiterar a instauração do incidente, desta feita com o preenchimento do requisito de admissibilidade faltante, retiraria o interesse de recorrer do juízo de admissibilidade do IRDR.
Com a devida vênia e todo o respeito as opiniões em contrário, entendemos que esta não é a interpretação mais adequada.
Alcides de Mendonça Lima já atribuía aos recursos uma necessidade psicológica, visando à satisfação de uma tendência natural do gênero humano que é o inconformismo com um julgamento desfavorável, sendo mais comum a manifestação desse impulso a quem exerce ascendência daquele que se pronunciou contra o recorrente.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Além da inequívoca função psicológica, os recursos estão diretamente atrelados em seu juízo de admissibilidade ao interesse de recorrer, que em lição clássica deve ser compreendido mediante a conjugação de dois fatores, quais sejam: i) a espera de um resultado que corresponda a uma situação mais vantajosa, do ponto de vista prático, do que emerge da decisão recorrida; e ii) que lhe seja necessário usar o recurso para alcançar tal vantagem. É o famoso binômio utilidade e necessidade<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Sob nossa ótica, ambos os requisitos se encontram presentes na situação ora em análise. Na decisão sobre a admissibilidade do IRDR, sempre haverá interesse em recorrer de uma das partes, pois aquele que pleiteou a instauração do incidente e teve decisão contrária poderá, através do recurso, obter situação prática mais vantajosa, que seria justamente a reversão da decisão e a determinação de instauração do incidente. Da mesma forma, tal interesse estaria presente para a parte que defendeu a inadmissibilidade do incidente e eventualmente não teve sucesso perante o tribunal local.
Ora, o fato da inadmissibilidade do IRDR, por expressa autorização legal (art. 976, §3º do CPC), não precluir, não retira por si só o interesse na interposição de recurso. A decisão de inadmissibilidade deve analisar a ausência de um ou mais requisitos necessários para a instauração do IRDR, elencados no art. 976 e incisos do CPC/2015. O argumento utilizado para afastar o interesse recursal seria a possibilidade de a parte valer-se de novo pedido de instauração apresentado o requisito faltante supervenientemente.
Ocorre que nem sempre existirá a possibilidade dessa rediscussão dos requisitos de admissibilidade. Imagine-se o seguinte exemplo: determinado plano de saúde requer a instauração de IRDR para dirimir tese jurídica a respeito da obrigatoriedade ou não das operadoras em dar cobertura a tratamento de musicoterapia a crianças autistas. O tribunal local inadmite o incidente sob o fundamento de se tratar de questão de fato, pois demandaria prova pericial para verificar se o tratamento realmente traz melhoras no combate à doença. Já o plano de saúde defende se tratar de questão de direito, pois na sua visão a musicoterapia não é um procedimento de apoio medicinal, mas sim educacional, e pelo fato de tais procedimentos não se encontrarem inseridos no rol obrigatório da legislação de regência. Pergunta-se, em discussão dessa natureza, como o plano conseguiria de forma superveniente modificar tal entendimento? Se viesse a suscitar outro IRDR, não restaríamos diante de uma sucessão de decisões pela inadmissibilidade? Como reverter essa decisão?
Apenas reforçando o argumento, a competência para o juízo de admissibilidade do IRDR é sempre de órgão colegiado e indicado no regimento interno dentre aqueles responsáveis pela uniformização de jurisprudência do tribunal, ou seja, é um único órgão. Se este órgão já analisou a questão e enfrentado os argumentos do plano de saúde, tenha deliberado pela inadmissibilidade por ser tratar de questão de fato, repita-se, não há fato superveniente que altere este entendimento, daí a necessidade do recurso para que tal questão seja reanalisada por outra instância.
Como bem realçado nos votos divergentes, resta imperiosa a necessidade de o STJ exercer a função precípua que lhe foi dada pelo legislador constituinte, qual seja, analisar a correta aplicação ou não da legislação federal em nível nacional, verificado a melhor interpretação do art. 976, incisos I e II do CPC. Dita função somente poderá ser exercida através do recurso especial. Retirar esse direito da parte prejudicada com a decisão de (in)admissibilidade do IRDR é simplesmente afastá-la do duplo grau de jurisdição.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Sobre a dicotomia entre causa-piloto e causa-modelo, já se houve por abordar nesta coluna anteriormente, em 20 de abril de 2017 (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/o-irdr-e-os-juizados-especiais-20042017">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/o-irdr-e-os-juizados-especiais-20042017</a>) e em 13 de setembro de 2018 (<a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/irdr-originado-de-processo-em-curso-no-ambito-dos-juizados-especiais-13092018">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/irdr-originado-de-processo-em-curso-no-ambito-dos-juizados-especiais-13092018</a>).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ainda sobre o tema, BECKER, Rodrigo Frantz; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; Peixoto, Renata Cortez Vieira. A natureza jurídica do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas oriundo de processos dos Juizados Especiais. In: Augusto Vinícius Fonseca e Silva; Frederico Augusto Leopoldino Koehler; Renata Cortez Vieira Peixoto. (Org.). Coleção Repercussões do Novo CPC - Juizados Especiais da Fazenda Pública e Juizados Especiais Federais. 1ed.São Paulo: Jus Podivm, 2019, v. 18, p. 343-360.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> DIDIER Jr, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil. Meio de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. Vol. 3. 13ª. ed. Salvador: Jus Podivm. 2016. p. 629.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> LIMA, Alcides de Mendonça. Introdução aos recursos cíveis. 2. Ed. São Paulo: Revista dos tribunais. 1976. p. 127.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao código de processo civil. 11. Ed. Vol. V (arts. 476 a 565). Rio de Janeiro: Forense. 2003. p. 297.

TJDFT

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JOTA

Retirar esse direito da parte prejudicada com a decisão é afastá-la do duplo grau de jurisdição

A (in)admissibilidade de Resp contra acórdão que inadmitiu a instauração de IRDR

Retirar esse direito da parte prejudicada com a decisão é afastá-la do duplo grau de jurisdição