Opinião e Análise

Rodrigo Becker

Victor Trigueiro

“O processo deve dar, quando for possível praticamente, a quem tenha um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir” (Chiovenda)[1]. 
Prezados leitores do JOTA,
Em 2008, seguindo as premissas estabelecidas por Chiovenda, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça já bradava a importância do processo civil como forma de se alcançar decisões de mérito. Naquela oportunidade, assim se manifestou a Turma:
“O Processo Civil foi criado para possibilitar que se profiram decisões de mérito, não para ser, ele mesmo, objeto das decisões que proporciona. A extinção de processos por meros óbices processuais deve ser sempre medida de exceção.” (REsp 802.497/MG, Rel. Min. NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, DJe 24/11/2008)
O Código de Processo Civil de 2015, em seu art. 4º, reproduziu a ideia acima, estabelecendo o princípio da primazia do mérito, ao estatuir que “as partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa” (destaque nosso).
Comentando tal princípio, Nunes, Cruz e Drummond afirmam que “é possível verificar uma série de comandos normativos no Código orientando para uma nova concepção do direito processual, na qual se extraia a primazia de mérito e máximo aproveitamento, balizados pelo modelo constitucional de processo”[2]. 
De tudo isso, extrai-se um viés principiológico-normativo do novo Código, acompanhado pela doutrina e pela jurisprudência, no sentido de prestigiar a resolução do mérito da questão discutida no processo, evitando-se que problemas processuais menores sejam óbices à busca por uma solução do litígio.
Não obstante a diretriz do código, da doutrina e da sua própria jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, em sessão do dia 09/05, andou na contramão da tendência processual-constitucional. 
A 1ª Turma daquela Corte, por maioria de votos, negou provimento a um agravo interno (AResp 1004793/MS), que pretendia fazer valer a regra de que, uma vez ausente a comprovação de feriado local na peça de interposição do recurso, poderia o recorrente corrigir o defeito, com base no disposto no art. 932, parágrafo único, do CPC/2015[3].
Decidiu a turma que, com a previsão expressa do § 6º do art. 1.003 do CPC/15, ficou superada a jurisprudência do STJ[4], firmada ainda sob a égide do CPC/73, que admitia a comprovação da tempestividade do recurso, em se tratando de contagem de tempo com feriado local, por meio de agravo interno contra a decisão monocrática que tivesse decidido pela intempestividade do recurso.
Confira-se a redação do dispositivo citado: “o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso”.
O relator, Min. Gurgel de Faria, destacou que, em tal hipótese, não se aplica a regra do art. 932, parágrafo único, do CPC/15, na medida em que o legislador, de forma expressa, vetou a possibilidade de correção posterior do vício relativo à intempestividade do recurso quando da existência de feriado local no transcurso do prazo.
Afirmou, ainda, que a segunda turma do STJ também possui julgado no mesmo sentido, como se verifica do seguinte aresto:
IV. O CPC/2015 não possibilita a mitigação ao conhecimento de recurso intempestivo. De fato, nos casos em que a decisão agravada tenha sido publicada já na vigência do novo CPC, descaberia a aplicação da regra do art. 932, parágrafo único, do CPC/2015, para permitir a correção do vício, com a comprovação posterior da tempestividade do recurso. Isso porque o CPC/2015 acabou por excluí-la (intempestividade) do rol dos vícios sanáveis, conforme se extrai do seu art.  1.003, § 6º ("o recorrente comprovará a ocorrência de feriado local no ato de interposição do recurso"), e do seu art. 1.029, § 3º ("o Supremo Tribunal Federal ou o Superior Tribunal de Justiça poderá desconsiderar vício formal de recurso tempestivo ou determinar sua correção, desde que não o repute grave)". (AgInt no REsp 1638816/PE, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, DJe 06/04/2017)
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Com o devido respeito ao Tribunal, trata-se de um retrocesso na compreensão do direito processual, que não encontra abrigo nem no CPC/2015, muito menos nos princípios que norteiam o processo civil, a partir de um novo modelo constitucional de acesso à justiça.
Inicialmente, não se encontra nas disposições do art. 1003, § 6º, do CPC/15 nenhuma norma expressa, determinando que a comprovação do feriado local deve ser realizada “única e exclusivamente” na interposição do recurso. O que o dispositivo regula é que a comprovação deve ser feita, como regra, no momento em que a parte interpõe o recurso.
Ademais, e no mesmo sentido, o código possui outras regras recursais que, apesar de estarem expressas no diploma processual, comportam exceções, a saber: i) a juntada de peças no agravo de instrumento deve ser feita na interposição, podendo, contudo, ser corrigido o vício de ausência dessas peças, em cinco dias (art. 932, parágrafo único, c/c 1017, § 3º, do CPC/15); ii) o preparo deve ser comprovado quando o recorrente interpõe o recurso, podendo tal comprovação ser realizado em cinco dias (art. 1007, caput, e § 3º do CPC/15).
Nem se diga que, nesses casos, só se aplica o parágrafo único do art. 932 porque a lei expressamente manda aplicar. Pensar dessa forma o dispositivo seria dizer que ele só se aplica quando houver outro dispositivo mandando aplicá-lo. Tal interpretação seria completamente desarrazoada, pois retiraria a força normativa autônoma do dispositivo, para torná-lo dependente de outra regra expressa, sem que houvesse, frise-se, qualquer determinação nesse sentido.
Vale ressaltar, no ponto, que o próprio Superior Tribunal de Justiça, interpretando o artigo em comento, afirmou que “o saneamento previsto pelo art. 932, parágrafo único do CPC/2015, está limitado aos vícios estritamente formais de recursos interpostos após a vigência do CPC/2015”[5]. Em outro julgado, aduziu, ainda, que a intimação para correção de vício formal somente pode ser levada a efeito se não for inócua[6].
Há que se destacar também o Enunciado Administrativo nº 6 daquela Corte, que assim estatui:
Nos recursos tempestivos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016), somente será concedido o prazo previsto no art. 932, parágrafo único, c/c o art. 1.029, § 3º, do novo CPC para que a parte sane vício estritamente formal.
Destarte, conjugando esses dois julgados e o enunciado administrativo com o caso em análise neste texto, percebe-se não haver nenhuma razão lógica para deixar de se aplicar art. 932, parágrafo único do CPC/2015 nos casos de comprovação de feriado local. Além de se tratar de vício estritamente formal, a correção geraria efeitos concretos, possibilitando a aferição de sua tempestividade e o seu consequente conhecimento pelo STJ.
Portanto, a distinção pretendida pelo Superior Tribunal de Justiça não encontra respaldo na lei, nem na própria coerência interna de sua jurisprudência.
É que a ideia de primazia do mérito vem sendo colhida da Constituição Federal, conforme explica Alexandre Freitas Câmara:
“O direito fundamental de acesso à justiça, evidentemente presente no ordenamento jurídico brasileiro (por força do inciso XXXV do art. 5º da Constituição da República), assegura, porém, o acesso aos resultados efetivos do processo, notadamente a resolução do mérito (nos procedimentos cognitivos, aí incluídos os recursos) e a satisfação prática do direito substancial (nos procedimentos executivos, inclusive naquele que no Brasil se convencionou chamar de cumprimento de sentença, e que nada mais é do que a execução de decisões judiciais). Para dar efetividade a este direito fundamental, o Código de Processo Civil de 2015 fez constar do rol (não exaustivo) de normas fundamentais do processo civil o princípio da primazia da resolução do mérito, objeto deste breve estudo.”[7]
Vale ressaltar, por sua vez, que o Código de Processo Civil trouxe como diretriz principiológica, o princípio da primazia do mérito, pelo qual, o juiz deve “determinar o suprimento de pressupostos processuais e o saneamento de outros vícios processuais” (art. 139, IX), em conformidade com os arts. 4º e 6º do mesmo diploma processual, que dispõe taxativamente acerca do direito de obterem, no processo, uma decisão de mérito.
Em outras passagens, o CPC é enfático ao estabelecer a necessidade de o juiz suprir vícios formais para decidir o mérito do processo:
a) Nos termos do § 1º do art. 485, a parte será intimada pessoalmente para suprir os vícios dos incisos II e III[8] do mesmo artigo, no prazo de 5 (cinco) dias.
b) De acordo com o art. 488, “desde que possível, o juiz resolverá o mérito sempre que a decisão for favorável à parte a quem aproveitaria o pronunciamento nos termos do art. 485”. 
 
c) No âmbito recursal, “constatada a ocorrência de vício sanável, inclusive aquele que possa ser conhecido de ofício, o relator determinará a realização ou a renovação do ato processual, no próprio tribunal ou em primeiro grau de jurisdição, intimadas as partes” (art. 938, § 1º).
De tudo o que foi exposto, surge a pergunta: por que apenas nos casos de comprovação de feriado local não pode haver a correção do vício formal, posteriormente, no prazo de 5 dias, como se permite em todos os demais de casos da mesma natureza?
Como já afirmado acima, a “taxatividade” do art. 1003, § 6º, não se justifica por não haver, exatamente, tal “taxatividade”.
Além disso, teríamos uma exceção a todo o regramento relativo às correções de vícios formais, que não possui amparo no sistema processual, conforme anteriormente destacado, na medida em que a diretriz do novo CPC é efetivamente superar tais vícios em prol de um julgamento de mérito.
Muito embora a existência desses dois julgados citados, a questão em debate está submetida à Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, no Agravo em Recurso Especial 957821/MS (Rel. Min. Raul Araújo), em que se iniciou o julgamento, e logo após o voto do relator, houve pedido de vista da Min. Nancy Andrighi.
Entendeu o relator que a orientação do novo CPC, desde o primeiro grau até a apreciação de recursos nos Tribunais Superiores, é no sentido de prestigiar o julgamento de mérito, da mesma forma que entendemos, por ser a interpretação mais justa, razoável e compatível com o código.
Esperamos, assim, que o Superior Tribunal de Justiça deixe de lado a ideia de jurisprudência defensiva, com a interpretação restritiva e excessivamente formalista acerca da não aplicação do art. 932, parágrafo único às hipóteses de comprovação de feriado local, para dar aplicação coerente e sistemática à norma, harmonizando-a com o novo CPC, seguindo a linha do voto do Min. Raul Araújo, acima citado, que certamente definirá a questão.
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[1] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Bookseller: Campinas, 1998, vol. I.  
[2] NUNES, Dierle; CRUZ, Clenderson Rodrigues da; DRUMMOND, Lucas Dias Costa. A regra interpretativa da primazia do mérito e formalismo processual democrático in Coleção Novo CPC – Doutrina Selecionada, V. I. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 168. 
[3]Art. 932.  Incumbe ao relator:
(...)
Parágrafo único. Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado vício ou complementada a documentação exigível.
[4] “A comprovação da tempestividade do recurso especial, em decorrência de feriado local ou de suspensão de expediente forense no Tribunal de origem que implique prorrogação do termo final para sua interposição, pode ocorrer posteriormente, em sede de agravo regimental. Precedentes do STF e do STJ. (AgRg no AREsp 137.141/SE, Rel. Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, CORTE ESPECIAL, DJe 15/10/2012)
[5] AgInt no REsp 1399534/RS, Rel. Min. MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DJe 04/10/2016.
[6] AgInt na Pet 11.375/SP, Rel. Min. RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, DJe 17/06/2016.
[7] CÂMARA, Alexandre Freitas. O princípio da primazia da resolução do mérito e o Novo Código de Processo Civil. Disponível em <a href="http://genjuridico.com.br/2015/10/07/o-principio-da-primazia-da-resolucao-do-merito-e-o-novo-codigo-de-processo-civil">http://genjuridico.com.br/2015/10/07/o-principio-da-primazia-da-resolucao-do-merito-e-o-novo-codigo-de-processo-civil</a>
[8]Art. 485.  O juiz não resolverá o mérito quando:
(...) 
II - o processo ficar parado durante mais de 1 (um) ano por negligência das partes;
III - por não promover os atos e as diligências que lhe incumbir, o autor abandonar a causa por mais de 30 (trinta) dias;

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A comprovação do feriado local no âmbito recursal

E o princípio da primazia do mérito