O Brasil tem gastado um bocado de tempo discutindo, sob vários aspectos, a instituição de um novo sistema tributário. O tema tem sido debatido sob o ponto de vista dos estados e dos municípios, dos diversos setores empresariais e das pequenas, médias e grandes companhias. Mas e do ponto de vista das mulheres?
É possível pensar em um modelo de reforma tributária que reduza – ou que, pelo menos, não aumente – a desigualdade entre homens e mulheres no Brasil? Especialistas apontam que sim, porém não há uma solução única para essa questão.
Antes de passarmos à discussão sobre reforma tributária, é preciso lembrar onde tributação e gênero se conectam. Quando falamos em tributação sobre o consumo, um dos principais problemas é a famigerada regressividade do nosso sistema, ou seja, o fato de proporcionalmente os pobres pagarem mais tributos do que os ricos.
O cenário torna-se mais gravoso às mulheres (especialmente às mulheres negras) à medida que constatamos que são elas a maior parte das pessoas mais pobres do Brasil. De acordo com dados do IBGE, no 4º trimestre de 2022 o rendimento médio dos homens a partir de 14 anos de idade por todos os trabalhos realizados era de R$ 3.099. As mulheres, por outro lado, receberam em média R$ 2.416, 77,9% em relação aos homens.
Isso sem falar nos benefícios fiscais que privilegiam mais os homens do que as mulheres, como a isenção na distribuição dos lucros e dividendos, e do chamado pink tax, a tributação superior dos produtos tidos como femininos.
A reforma do sistema tributário é um bom momento para o debate sobre um modelo que seja menos gravoso às mulheres. Porém, segundo pesquisadoras ouvidas pelo JOTA, a discussão não está se fazendo presente no Congresso e no Executivo. A título de exemplo, não há, no cronograma do Grupo de Trabalho da reforma na Câmara dos Deputados, previsão de debates sobre o assunto. O GT, por sinal, é composto apenas por homens.
Alíquotas diferenciadas
Um dos temas mais comuns quando o assunto é tributação sobre o consumo e gênero é a carga tributária incidente sobre itens tipicamente femininos, como absorventes, ou itens comprados majoritariamente por mulheres, como fraldas descartáveis.
Há consenso sobre a necessidade de garantir que esses itens não sejam tributados demasiadamente, prejudicando mais as mulheres do que os homens.
De acordo com o documento Reforma tributária e desigualdade de gênero: contextualização e propostas, elaborado pelo grupo de estudos Tributação e Gênero, do Núcleo de Direito Tributário do Mestrado Profissional da FGV São Paulo, dados da Receita Federal dão conta que a carga tributária incidente sobre absorventes higiênicos é de 27,5%. Do total, há uma média de 18% referente ao ICMS, 1,65% de PIS e 7,60% de Cofins. “Assim, a título de exemplo, um pacote de absorvente higiênico que custa R$ 2,28 contém, aproximadamente, R$ 0,62 somente de tributos”, descreve a publicação.
Além disso, pensar na tributação da cesta básica e de outros itens essenciais também é pensar nas mulheres, já que é sobre elas que recai a função de cuidado. Para Tathiane Piscitelli, professora da FGV Direito SP, é essencial pensar em um modelo tributário em que não haja o risco de maior carga sobre esses itens, o que poderia levar a um aumento do preço.
“São as mulheres que majoritariamente vão ao supermercado e gastam seu salário, que em geral é menor do que o dos homens, adquirindo bens de consumo imediato para toda a família. São elas as cuidadoras das casas. Então essa tributação maior pode reverberar negativamente inclusive no que se refere ao acúmulo de renda”, afirma.
A resposta para essa questão, porém, não é simples. Para parte das pesquisadoras ouvidas pelo JOTA, a solução seria criar alíquotas diferenciadas para esses e outros produtos. “Os benefícios fiscais são instrumentos do sistema tributário para a correção das distorções socioeconômicas, entre elas as distorções de gênero”, defende Lana Borges, procuradora da Fazenda e mestre em Direito e Políticas Públicas.
Para Borges, outra solução para a redução da desigualdade entre gêneros seria a concessão de benefícios fiscais a empresas que contratarem mais mulheres, que as colocarem em cargos de gestão ou que empregarem vítimas de violência doméstica.
Sob esse ponto de vista, propostas que vedam qualquer tipo de benefício fiscal, como a PEC 45/2019, seriam mais prejudiciais à igualdade de gênero.
Não há, porém, um consenso em torno da efetividade da concessão de benefícios fiscais para redução da desigualdade entre homens e mulheres. Para Rita de La Feria, professora catedrática de Direito Tributário na Universidade de Leeds (Reino Unido), é preciso evitar que, ao tentar corrigir a desigualdade de gênero, não se aumente a desigualdade de renda.
“Às vezes, para tentar diminuir a desigualdade de gênero, podemos tentar dar benefícios tributários a mulheres, mas ao dar benefícios tributários a mulheres estamos beneficiando mulheres que são mais ricas. Por exemplo, mulheres que estão empregadas e que têm uma renda superior ao invés de mulheres que não trabalham e que estão cuidando dos filhos em casa”, diz.
De La Feria questiona ainda o argumento relacionado à necessidade de conceder incentivos aos absorventes. Ela cita estudos que mostram que, no Reino Unido, a medida não reduziu o preço dos produtos às consumidoras. Para ela, uma forma de pensar em igualdade por meio da tributação é garantir que as mulheres não tenham que se afastar do mercado de trabalho ao serem mães. Deduções de valores gastos com creches, por exemplo, vão nesse sentido.
Piscitelli, por outro lado, entende que o risco de que benefícios fiscais não reduzam o preço “na ponta” não deve ser impeditivo para que medidas que abaixem a carga tributária de produtos tipicamente femininos sejam implementadas. “Pode ser que isso aconteça. No entanto, partindo-se desse risco, de que não haja redução na ponta, mas simplesmente aumento do lucro do produtor, podemos cogitar, no desenho normativo que vai prever a redução dessa carga tributária, um mecanismo de controle e que obrigue que haja o repasse no preço”, defende.
Cashback
Pelo menos um ponto cogitado para a reforma tributária no Brasil é bem avaliado pelas pesquisadoras ouvidas pelo JOTA: a devolução do imposto pago por famílias de baixa renda. O mecanismo tem sido apelidado de “cashback” pelos envolvidos na reforma brasileira, como o secretário especial da reforma tributária no Ministério da Fazenda, Bernard Appy.
Para Lana Borges, apesar de ser importante pensar em como o mecanismo funcionará, a iniciativa é relevante. “Se pensamos em uma devolução [do imposto pago] para as pessoas vulneráveis economicamente, pensamos em mulheres, principalmente mulheres negras”.
Piscitelli concorda, mas alerta que a forma como essa devolução será feita não está clara. “O problema é que não temos o desenho do que seria esse mecanismo de devolução e quem seriam as pessoas elegíveis”, afirma.