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Metodologia

Um pequinês, um mastiff tibetano e a luta contra a simplicidade

A complexidade e sua prole (o obscurantismo, a superstição, as falácias) são os inimigos da ciência.

Marcelo Guedes Nunes
24/03/2020|13:59
Flickr / Ambra Galassi

Lenio Streck retorna à sua luta contra a simplificação, a eficiência e a popularização do direito em um artigo com o gongórico título “O negacionismo epistêmico e a cirurgia com médico tranquilão". E em outro texto chamado “O coronajúris e por que gostamos tanto de simplificar o Direito?".

Em resumo, os textos defendem a ideia de que o direito muito facilitado, resumido e mastigado é qualquer coisa menos direito. Aquilo que, na tradição da navalha de Occam, é o objetivo primeiro de todo estudioso, reduzir e simplificar o mundo, para os dois textos é um mal a ser evitado. O verdadeiro direito tem de ser pelo menos um pouco complicado, prolixo e cru.

Negacionismo epistêmico, pelo que entendi, é o nome dado a afirmações que o autor dos textos discorda. Aquilo que eu chamo de bobagem, ele chama de negacionismo epistêmico. Apenas para complicar, claro. Por exemplo, um dos textos afirma que quem diz que Kelsen separou o direito da moral pratica negacionismo epistêmico. O problema é que Kelsen tentou sim distinguir o direito de um conceito único e absoluto de moral. Há uma parte inteira do Teoria Pura dedicada a esse problema. Ou seja, para mim quem comete um grande negacionismo epistêmico é o autor dos textos. Mas esse não é o ponto aqui.

O ponto é como distinguir o que é negacionismo epistêmico do que não é negacionismo epistêmico. E como distinguir o mau do bom profissional. Segundo um dos textos, isso pode ser feito pelas capas e títulos dos livros que ele usou para estudar. Ali seu autor questiona se você, leitor, se operaria com um médico ou contrataria um advogado que estudou com livros que se propusessem a ensinar “cirurgia mastigada e facilitada”, ou que tenham na capa uma sombrinha, uma praia.

Olha, não sei. Talvez sim, dependendo do histórico do sujeito. Talvez eu já tenha feito isso, até porque nunca me preocupei em pedir cópias das capas dos livros de graduação do meu cardiologista. (Amit, me aguarde). Mas a pergunta é outra. Você se operaria com um médico só porque ele (diz que) leu Nietzsche ou Dostoiévski? Ou Hipócrates? Ou porque ele escreve complicado? Ou porque o professor dele era italiano? Ou por que ele gosta de neologismos e gracejos?

Não, claro. As pessoas escolhem seus médicos e advogados não por critérios literários, mas por avaliação pragmática. Você quer saber quantos processos por erro seu médico responde; quantos anos de experiência ele tem; se o hospital dele tem acesso a equipamentos tecnológicos de última geração; se ele lidera pesquisas de ponta na sua área.

Falo de pesquisas de verdade, com estudos populacionais, grupos de controle e de interesse, regressões, experimentos controlados. Falo de ciência. Não do halterofilismo bibliográfico, das falácias narrativas e da pseudo-erudição que encontramos na maioria dos trabalhos jusfilosóficos.

São esses os critérios capazes de distinguir o bom do mau profissional: a sua capacidade de produzir resultados práticos mensuráveis. E a boa formação é aquela que leva um estudante a descobrir sua vocação e que o aparelhe a produzir esses resultados. Sem afetações estéticas, eruditices, gracejos e outros subterfúgios que, no mais das vezes, apenas ocultam algum grau de analfabetismo científico.

Quero deixar claro que a qualidade dos livros didáticos importa para mim e que certo charlatanismo acadêmico com o qual nos deparamos me incomoda. Não declarei guerra à doutrina. Estou apenas dizendo que a qualidade do ensino na área das humanidades (incluindo o direito) aumentará não pelas imagens das capas dos livros ou pela articulação de citações eruditas, mas pelo maior rigor metodológico e pela capacidade dos professores em combinar teoria robusta com pesquisa empírica, dados e tecnologia.

E esse rigor metodológico, esse alinhamento da teoria com a pesquisa empírica e com a tecnologia infelizmente não poderá ser entregue por quem não apenas não tem formação para operar esse ferramental, mas ainda se orgulha do seu próprio desconhecimento. A complexidade e sua prole (o obscurantismo, a superstição, as falácias) são os inimigos da ciência. Temos de combatê-las, o que não é trivial. Afinal, qualquer néscio é capaz de complicar as coisas. Coisa de gênio é simplificar e reduzir.

PS.: Me diverti com o Lenio falando que discorda do NN Taleb em muitos pontos. É tipo um pequinês latindo para um mastiff tibetano.logo-jota