Banner Top JOTA INFO

A nulidade da revisão de lançamentos do “ISS-Habite-se” pelo município de São Paulo

Uma análise do Artigo 149 do Código Tributário Nacional

O presente texto tem por pano de fundo a revisão de lançamentos tributários relativos ao chamado “ISS-Habite-se” levada a cabo pelo município de São Paulo, que teve como estopim a Portaria Intersecretarial 1/13 – SF/CGM, promulgada no contexto das denúncias sobre supostas irregularidades ocorridas na apuração do ISS incidente sobre construção civil.

Diante da situação amplamente veiculada pelos meios de comunicação, segundo a qual havia fortes indícios de irregularidades na apuração do mencionado tributo, gerando recolhimentos significativamente inferiores ao efetivamente devido, foi instaurado um grupo de trabalho para averiguar as ocorrências que teriam levado a esse desfecho.

Constatados vários recolhimentos em valor insuficiente, as empresas construtoras/incorporadoras foram notificadas a apresentar documentos que respaldassem a apuração então contestada pelo Fisco.

O labor do mencionado grupo de trabalho culminou com a revisão dos lançamentos efetuados à época da emissão dos certificados de quitação do ISS, documento necessário para a obtenção do certificado de conclusão da obra, sob os fundamentos legais previstos no art. 149, III e VIII do CTN.

Pois bem, como já mencionado, a possibilidade de alteração de um lançamento vem disciplinada, inicialmente, no artigo 145 do Código Tributário Nacional[1].

Assim, temos que, diante do que dispõe o caput do artigo, a revisão de um lançamento somente pode ocorrer nas hipóteses ali delineadas, não cabendo à administração pública qualquer margem de discricionariedade.

Em que pesem algumas manifestações no sentido de que, enquanto não decorrido o prazo decadencial a administração está autorizada a rever seus atos, exercendo um dito poder de autotutela, nosso entendimento vai no sentido de que o texto legal em apreço é absolutamente fechado, esgotando as possibilidades nas quais tal ato é admissível.

Na mesma linha segue nossa doutrina, conforme excertos abaixo colacionados:

 

“Revisibilidade do lançamento. A chamada irrevisibilidade do lançamento é matéria essencialmente de direito positivo. Diz o art. 145 que o lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude da impugnação do sujeito passivo, de recurso de ofício, ou pela autoridade administrativa de ofício nos casos retrocomentados, previstos neste artigo. É o direito positivo, portanto, que, ao definir os casos em que é possível a revisão do lançamento, estabelece a regra implícita de que, nos demais casos, o lançamento é irreversível. Não é, pois, da própria natureza do lançamento que se haverá de deduzir a sua imodificabilidade, mas da lei.” (Sakakihara, Zuudi: “Código Tributário Nacional Comentado, art. 149”, Coordenação Vladimir Passos Freitas, Editora Revista dos Tribunais, 4ª edição, 2007, São Paulo, pág 684)

“As regras-matrizes de invalidação do ato-norma de lançamento, regras de estrutura, defluem, no Código Tributário Nacional, dos artigos 145, 146 e 149.

Prescreve o art. 145 da Lei 5.172/66 que “O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de:  impugnação do sujeito passivo (inciso I); recurso de ofício (inciso II); e iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no art. 149 (inciso III)”. Neste preceptivo, depreende-se três regra-matrizes de invalidação do ato-norma de lançamento. A primeira tem como pressuposto – integrativo do suporte fáctico suficiente do ato-norma invalidador – a conformação do fato jurídico da impugnação do sujeito passivo, realizado por ato-fato deste. Na segunda, o suposto fundamental do suporte fáctico é o fato jurídico consubstanciado pelo recurso de ofício, que supõe ato-fato da autoridade competente. Na terceira regra-matriz de invalidação, o suporte fáctico para formação do ato-norma invalidador exige que a iniciativa de ofício da autoridade esteja fundada numa das hipóteses do art. 149.

Nas três regras-matrizes relacionadas, os fatos jurídicos destacados não são conditio suficiente para produção do ato-norma invalidador, mas condição necessária de sua expedição.” (De Santi, Eurico Marcos Diniz: “Lançamento Tributário”, Editora Max Limonad, 1ª edição, 1996, São Paulo, pág. 210)

 

Essas transcrições vinculam a revisão ou alteração de lançamento exclusivamente às hipóteses expressamente previstas em lei, afastando de todo a possibilidade de autotutela da administração por critérios de conveniência e oportunidade.

Entre as possíveis situações que autorizam a revisão do lançamento pela autoridade administrativa, no presente caso interessa-nos, particularmente, aquela prevista no art. 145, III do CTN, especialmente os incisos III e VIII do artigo 149.[2]

Parece-nos espanque de dúvidas que a revisão do lançamento não pode ocorrer ao arbítrio da autoridade administrativa, sendo fundamental que esteja lastreado em uma das hipóteses do artigo 145 do CTN, no presente caso aquela do seu inciso III (art. 149 do CTN).

Isso torna fundamental, como veremos, a vinculação direta, a título de motivação do ato de revisão (novo lançamento), da hipótese do art. 149 (um de seus incisos) com a falha apontada no lançamento original, fruto da ocorrência de uma dessas situações legalmente previstas.

Destarte, causa estranheza o fato de que, a teor dos dispositivos infralegais mencionados, que determinaram a reavaliação dos lançamentos relativos ao “ISS-Habite-se”, a operação tenha sido deflagrada por suspeita de fraude na apuração do tributo e a motivação para a revisão do lançamento aponte, como fundamentos legais, os incisos  III  (“quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade”) e VIII ( “quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior”).

Esclarecendo: se a administração deflagrou operação para reanalisar e, possivelmente, revisar os lançamentos por suspeita de fraude, um novo lançamento deverá ter por fundamento, necessariamente, a comprovação da ocorrência, no caso concreto, do ilícito até então apenas suposto.

Ora, quer-nos parecer que, sob esse prisma, os lançamentos revisionais estão inquinados pelo vício insanável da nulidade, já que a fraude supostamente ocorrida deveria, no procedimento de reavaliação da situação, ter sido cabalmente comprovada e, então, apontada como fundamento da revisão no caso concreto.

Aqui, portanto, duas são as situações que maculam a higidez do lançamento revisional: a) a fundamentação da possibilidade de revisão difere daquela que embasou o novo lançamento; b) a fraude, real motivo do pedido de reanálise da situação, não restou comprovada, ou melhor, sequer foi aventada no bojo do processo que culminou com a revisão do lançamento.

Passemos, então, a uma sucinta análise da adequação dos incisos do art. 149 do CTN, apontados como fundamentos da revisão do lançamento, ao caso que ora se nos apresenta.

Conforme já mencionado, a revisão foi deflagrada em razão da suposta ocorrência de fraudes na apuração do “ISS – Habite-se”.

Entretanto, o ato administrativo que invalidou o lançamento anterior teve por fundamento o inciso III do art. 149 do CTN, que prescreve ser possível a revisão do lançamento “quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade”.

Nos casos analisados, que serviram de base para o presente trabalho, ficou constatado que a inserção desse inciso na fundamentação do lançamento revisional decorre do fato de que o Fisco, tendo recebido toda a documentação solicitada ao contribuinte, discordou do modo como foi calculado o valor constante do lançamento original, identificando diversos possíveis erros naquela apuração.

Ora, não é esse o alcance do referido dispositivo legal.

A melhor interpretação da norma é a que abre a possibilidade de revisão em razão de os documentos/esclarecimentos não terem sido apresentados ou o tenham sido de maneira insatisfatória, impossibilitando à fiscalização a correta averiguação da situação.

Tal situação dá azo ao arbitramento pela autoridade fiscal, em consonância com o art. 148 do Código Tributário Nacional.

Porém, o que depreendemos da análise do caso concreto é que a autoridade administrativa aproveitou o ensejo da reavaliação do procedimento que culminou no ato administrativo de lançamento original para sanar eventuais defeitos oriundos da atuação do agente administrativo, sem produzir provas que a qualificassem como fraudulenta.

Desse modo, verificamos que houve apenas e tão-somente a invalidação do ato administrativo já atingido pela definitividade, e sua substituição por outro que supriu falhas decorrentes da eventual má-atuação do agente fiscal, para agravar a situação do contribuinte, informados erroneamente pela ideia de que a revisibilidade do lançamento é sempre ampla.

Nesse sentido, tenhamos presente a lição de Sacha Calmon Navarro Coelho, que enfaticamente rechaça tal possibilidade:

“Sendo a obrigação tributária ex lege, se o lançamento é privativo da autoridade administrativa e se o autocontrole dos atos administrativos existe, a revisibilidade é ampla. Agora, o que não se admite é a revisão de lançamento já definitivo, por erro de qualquer espécie imputável à Administração. Nesse caso, mesmo que ainda não ocorrida a preclusão dos lançamentos suplementares retificadores, a Fazenda encontra-se peada. O lançamento irrevisível equivale à decisão judicial transitada em julgado (coisa julgada material e formal)” (Coelho, Sacha Calmon Navarro“ -Curso de Direito Tributário Brasileiro”, Editora Forense, 2ª edição, 1999, Rio de Janeiro, pág. 663)

No mesma linha é o escólio de Gilberto de Ulhôa Canto que, citado por Sacha Calmon Navarro Coelho, com a costumeira precisão assevera:

“A lei não se pode admitir ignorada dos funcionários fiscais encarregados de proceder ao lançamento, e, assim, o erro de direito que estes cometem no exercício de suas atribuições não justifica a alteração da situação individual criada pelo lançamento em favor do contribuinte, pois é presumido que os agentes do fisco tivessem presentes todos os elementos jurídicos em vigor ao tempo em que o efetuaram”. (Coelho, Sacha Calmon Navarro, op. Citado, pág. 664)”.

No que tange o inciso VIII do art. 149, também não merece melhor sorte.

Como já dito, a afirmação de que as supostas fraudes ocorridas na apuração do “ISS-Habite-se” implicaram na reavaliação dos procedimentos que resultaram em lançamentos possivelmente espúrios, não legitima a edição de atos administrativos invalidadores baseados em outro fundamento.

O fato novo ou não provado a ser considerado, nesse caso, é a fraude.

Assim, resta imprescindível a comprovação da fraude (já que fraude não se presume) e mais, que ela resultou em ausência de cobrança ou cobrança de tributo a menor, afetando diretamente a regra-matriz tributária.

Nesse sentido também se manifesta a nossa melhor doutrina:

“9. FATO DESCONHECIDO OU NÃO PROVADO

No inciso VIII, o CTN, art. 149, prevê a ocorrência de fato não conhecido da autoridade fiscal ou não provado ao tempo do lançamento. Fato que seja juridicamente idôneo, relevante e suficiente para autorizar ou justificar a revisão do lançamento. Não qualquer fato, mas o relevante e eficaz, porque, se conhecido ou provado àquele tempo, teria alterado a base do lançamento”. (Derzi, Misabel de Abreu Machado, atualização de “Direito Tributário Brasileiro”, de Aliomar Baleeiro, editora Forense, 11ª edição, Rio de Janeiro, 2001, pág. 824)

Note-se que, reiteramos, não há fato novo, mas fato que foi diversamente considerado na apuração inicial, o que, como já afirmado, não autoriza revisão de lançamento, instaurando a hipótese versada no artigo 146 do CTN, qual seja a alteração de critério jurídico, que só admite a sua utilização (novo critério jurídico) para fatos futuros.

E tal assertiva não se infirma pelo fato de que a conduta ou a diretriz da administração à época seguia em outra direção.

Ora, não se pode advogar a tese do desconhecimento da legislação pelo agente fiscal. Afora tal possibilidade, somente poderíamos admitir a ocorrência de fraude, que não foi comprovada (e fraude não se presume).

Portanto, quer-nos parecer que a revisão de lançamento, nas hipóteses ora versadas, deveria ter tido como fato jurídico desencadeador do novo ato a ocorrência da situação descrita na lei que foi utilizada para motivar/autorizar a sua execução, sob pena de nulidade.

------------------------------------
[1]  “Art. 145. O lançamento regularmente notificado ao sujeito passivo só pode ser alterado em virtude de:

I – impugnação do sujeito passivo;

II – recurso de ofício;

III – iniciativa de ofício da autoridade administrativa, nos casos previstos no art. 149".

[2]  “Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos:

(...)   

III - quando a pessoa legalmente obrigada, embora tenha prestado declaração nos termos do inciso anterior, deixe de atender, no prazo e na forma da legislação tributária, a pedido de esclarecimento formulado pela autoridade administrativa, recuse-se a prestá-lo ou não o preste satisfatoriamente, a juízo daquela autoridade;

 (...)

 VIII - quando deva ser apreciado fato não conhecido ou não provado por ocasião do lançamento anterior;”logo-jota

Tags CTN