Banner Top JOTA INFO
TJSP

"A juíza Kenarik jamais atuou contra prisões ilegais", diz Amaro Thomé

Desembargador do TJSP explica motivos de representação contra juíza

Laura Diniz, Luis Viviani,
03/02/2016|17:11
Atualizado em 24/01/2018 às 12:38
Daniela Smania/TJ-SP

Nas últimas semanas, o Tribunal de Justiça de São Paulo tem estado às voltas com seu mais famoso estigma: o da severidade. Uma das juízas paulistas mais aclamadas por movimentos ligados aos Direitos Humanos e ativistas do Direito Penal, Kenarik Boujikian, é alvo de uma reclamação de natureza disciplinar que contrapõe sua história à da Corte. O embate tem sido apresentado de forma alegórica, como o caso da juíza libertária perseguida por pares conservadores. A história, como se poderá notar, não comporta explicação tão simplista.

A representação que deu origem ao imbróglio é assinada pelo desembargador Amaro Thomé, profissional que fez carreira no Ministério Público e chegou ao TJSP pelo quinto constitucional há cerca de dois anos. Dono de uma respeitável trajetória, teve participação decisiva na investigação do caso Celso Daniel, afastando a primeira hipótese de que a morte do então prefeito petista de Santo André (SP) era apenas um crime comum.

Thomé resolveu romper o silêncio pós-representação porque está indignado. "Minha honra está sendo atacada porque a linha de defesa é no sentido de que ela estaria apenas atuando contra prisões ilegais e isso é mentira. Ela jamais atuou contra prisões ilegais. Se tivesse atuado, teria meu total apoio. Eu jamais fui e jamais serei condescendente com prisões ilegais."

+ JOTA: Pedidos de vista adiam decisão sobre juíza Kenarik Boujikian

Ao longo da entrevista abaixo, concedida com exclusividade ao JOTA, o desembargador explica tecnicamente os casos que o levaram a representar e, mais do isso, faz sérias críticas ao comportamento da colega.

Ao final da entrevista, está o posicionamento do advogado da juíza Kenarik, Igor Tamasauskas.

 

Leia os destaques da entrevista:

 

Como o senhor começou a trabalhar com a dra. Kenarik?

Como juíza substituta em segundo grau, ela foi designada pela Presidência da Sessão de Direito Criminal para auxiliar nos trabalhos dos desembargadores titulares da 7ª Câmara, onde eu trabalhei até o ano passado. O desembargador Roberto Mortari, que era o mais antigo da câmara e integrava o Órgão Especial, ficou com ela para auxiliá-lo full time. Ele foi passando os processos gradativamente para ela. Todo juiz substituto de segundo grau tem uma cota mensal de 150 processos por mês. Ela não dava vazão a esse trabalho e, por conta disso, responde a um procedimento por falta de produtividade.

 

"Ela não dava vazão ao trabalho e, por conta disso, responde a um procedimento por falta de produtividade"

 

O senhor tem detalhes desse procedimento?

Fui ouvido como testemunha porque eu era o revisor natural nos casos em que o Mortari era relator. Como ela não dava vazão ao trabalho, no final de 2014, ela tirou três meses de licença para poder liquidar com tudo. No começo de 2015, recebi 562 processos de uma vez, contendo os votos que ela proferiu pela cadeira do desembargador Mortari. Desses 562 votos dela, eu cadastrei 495 divergências de entendimento. Desses 495, o Fernando Simão, que era o terceiro juiz, concordou comigo em pelo menos 490. Só manteve a decisão dela, no máximo, com muita boa vontade, nuns cinco casos.

 

A divergência era para agravar a situação réu?

Não em todos os casos. Eu divergi também para absolver. Eu divergi, por exemplo, para afastar agravação pela reincidência em um caso de homicídio. Ao julgar um caso de 2006, ela usou uma certidão de 2008 como prova de reincidência para exasperação da pena. A juíza Kenarik trata os casos com uma ideologia seletiva. Por um lado, ela tem essa postura de achar que faca não é arma, para o fim de considerar um roubo como qualificado – ela considera como simples. Por outro, é muito rigorosa com casos de violência doméstica, crimes contra a vida e a dignidade sexual.

 

O senhor pode dar um exemplo disso que chama de “ideologia seletiva”?

Sim. Um exemplo que é um verdadeiro paradoxo. Ela anulava vários casos de tráfico apurados pela Guarda Civil Metropolitana porque considerava ilícita a prova produzida pela GCM. Anulava o processo inteiro, mesmo com flagrante, tudo. Ela anulava, mas não mandava soltar ninguém. Esperava o colegiado, que anulava a decisão dela. Ora, mas se, na avaliação dela, era prova ilícita, a prisão seria ilícita e ela poderia conceder habeas corpus de ofício. Isso ela nunca fez.

Bom, mas se, de acordo com o entendimento dela, a GCM não poderia atuar em crime, não importa a natureza desse crime, certo? Ou ela pode atuar, constitucionalmente, ou não. Mas houve caso de a mesma guarda ser responsável pela apuração de crime contra dignidade sexual e a dra Kenarik não só concordar com a condenação mas elogiar o trabalho da GCM. De qualquer forma é só uma ilustração, não faz parte da representação feita à Corregedoria.

 

"Ela deixava o acórdão nulo por falta de fundamentação"

Antes dos fatos que o levaram a representar na Corregedoria, algum comportamento da dra. Kenarik chamou sua atenção?

Tem um outro, sobre o qual até fui questionado quando testemunhei na falta de produtividade. Antes de eu ser o revisor dos processos do desembargador Mortari, o desembargador Jairo Martins figurava nessa posição. E já estava em vias de se aposentar, cansado. Como sempre tínhamos as mesmas divergências, em relação a absolvição por princípio de insignificância, por exemplo, o Jair pediu a ela para incorporar os nossos fundamentos no voto dela. Assim, ele não precisava fazer o voto divergente.

A ideia era que ela escrevesse: “Pelo meu voto (dela), eu decido afastar isso, beneficiar dessa forma e tal. Mas a maioria, com este ou aquele fundamento, decide manter a condenação e tal.” Ela se comprometia a fazer, mas não fazia. Ela simplesmente consignava um simples parágrafo: “A maioria negava provimento ao recurso, mas eu entendo isso e aquilo.” Ou seja, ela deixava o acórdão nulo por falta de fundamentação para se negar provimento ao recurso.

 

E isso aconteceu muitas vezes?  

Sim.

 

Então, por que os senhores continuaram deixando que ela fizesse a fundamentação?

Só depois dos votos cadastrados o Ministério Público veio me procurar, no fim de 2014. Eu era o terceiro juiz. Não havia mais possibilidade de recurso. Eu avisei que, se eles constatassem futuramente essa reiteração, teriam de entrar com embargos declaratórios para pedir que ela incorporasse no acórdão os fundamentos do voto vencedor. Depois disso, o Jair mudou de Câmara e eu passei a ser o revisor natural. E, para isso não se repetir, eu passei a fazer o voto divergente.

 

"Ela alterava a fundamentação do voto depois de me mandar para revisar"

Desembargadores comentaram com a reportagem do JOTA ter ouvido rumores de que a juíza alterava o conteúdo de seus votos depois de encerrado o julgamento. O senhor sabe de algo a respeito?

Isso eu ouvi dizer, não sei de nada concreto. O que eu constatei, em muitos casos, foi que ela alterava a fundamentação do voto depois de me mandar para revisar. Ou seja, eu apresentava uma divergência com base na argumentação dela e, no dia do julgamento, ela apresentava argumentos diferentes. Tive que tirar processo de pauta muitas vezes para fazer de novo a revisão, isso me atrasou muito.

No final das contas, o que eu passei a fazer? Eu pegava o processo, estudava e fazia o voto independentemente daquilo que ela tinha decidido. Votava como relator. Pegava o voto dela e o meu e passava tudo processo para o Fernando Simão.

 

"Eu jamais poderia afirmar que ela agiu de má-fé. Dou a ela o benefício dessa dúvida, de ser atrapalhada mesmo nessa situação específica."

O que o senhor ouviu dizer sobre a alteração de voto depois de encerrado o julgamento?

O cartório me ligou algumas vezes dizendo que havia divergência em relação ao que foi decidido. Quando ligavam para ela, pelo que ouvi dizer, ela afirmava que havia se enganado e corrigia. Em muitas oportunidades, ela parecia alheia ao que estava acontecendo nas sessões de julgamento. Ela tinha diversas atividades, ficava no computador. Eu jamais poderia afirmar que ela agiu de má-fé. Dou a ela o benefício da dúvida, de ser atrapalhada mesmo nessa situação específica.

 

"Ouvi dizer que nenhuma câmara criminal a quis como auxiliar, nem a 12ª, considerada a mais liberal"

 

Então, e isso tudo foi caminhando até que...?

Até que acabaram os processos. Nós fizemos um documento pedindo a cessação da designação dela para auxiliar a câmara porque ela não auxiliava, só atrapalhava os trabalhos, trazendo esses percalços todos. O presidente cessou a designação dela para a sessão criminal como um todo. Ouvi dizer que nenhuma câmara criminal a quis como auxiliar, nem a 12ª, considerada a mais liberal. Ela acabou sendo designada para uma câmara extraordinária na sessão de direito privado, onde está até hoje.

 

E por que os senhores não falaram com ela?

Falamos com ela. Várias vezes, sobre todos esses outros incidentes. Durante as sessões, depois das sessões, no lanche. Foram dezenas de vezes. De cada pauta, no mínimo 80% das propostas de votos dela eram objeto de divergência e toda sessão se dizia mesma coisa: “Incorpore, por favor, esse argumento que falei.” Todo mundo foi embora porque não aguentava mais isso – o Camilo, o Jair Martins... Ela falava que ia incorporar e nada. Continuava fazendo. Ela achava que tinha que colocar em liberdade e pronto.

 

O que motivou a representação que o senhor fez contra ela na Corregedoria?

É uma representação ao corregedor para constatação de correção ou incorreção de procedimentos dela. É datada de 7 agosto de 2015. Eu encaminhei ao corregedor pedido para apurar ofensa aos princípios da colegialidade e do juiz natural das execuções penais por constatar em dez, onze processos ela determinou, a meu ver indevidamente, a soltura dos réus, sob o argumento, a meu ver improcedente, de que eles já haviam cumprido pena. Não peço punição, absolutamente nada. Só digo o que aconteceu e peço educadamente a elevada apreciação e consideração da corregedoria. Meu objetivo é que ela seja orientada a não determinar soltura da forma como aponto na representação porque o tribunal não dispõe de informações suficientes para cumprimento de pena – isso é competência dos juízes de execuções.

 

"Comecei a ver bilhetes dela em vários processos dizendo para o cartório expedir alvará de soltura antes de passar o caso para o colegiado. Tudo de ofício."

 

O que aconteceu?

Comecei a ver bilhetes dela em vários processos dizendo para o cartório expedir alvará de soltura antes de passar o caso para o colegiado. Tudo de ofício. Eram apelações, com bilhetes grampeados. Muitos casos. Ela escrevia com canetinha verde, vermelha, grifava com marca texto amarelo. Quando vi, me chamou a atenção. “Como assim, alvará de soltura? O que aconteceu aqui?”, pensei. Daí via esses despachos destacados do voto mandando soltar antes de vir para mim, antes de passar pelo revisor. Por isso, considerei que isso ofendia o princípio da colegialidade.

 

k Bilhete escrito por Kenarik, segundo Amaro

 

Como eram os casos concretos?

Um processo termina quando há o trânsito em julgado. Após uma sentença de primeira instância, pode-se recorrer do mérito dela ao Tribunal de Justiça. Falamos neste caso de apelações, ou seja, recursos dos réus e do Ministério Público contra condenações de primeiro grau. Falamos, portanto, de processos que ainda estão sendo julgados.

O réu J.A.M. foi condenado por tráfico de drogas a um ano e oito meses de prisão. O MP recorreu pedindo aumento de pena com o argumento de que ele vendia cocaína e crack na porta de uma escola. O chegou para a dra. Kenarik relatar. Antes de julgarmos a apelação, a dra. Kenarik mandou soltar o réu, de ofício, dizendo que ele estava preso há mais tempo do que a pena fixada. Mas nós nem havíamos avaliado a pena, no colegiado, porque não havíamos julgado o recurso do MP. A apelação acabou provida e a pena foi aumentada para cinco anos e dez meses. Ele foi solto pela ordem dela, em setembro de 2014, e foi preso novamente durante uma blitz de trânsito três meses depois.

 

Há outros exemplos?

Há o caso do réu D.L., condenado por tráfico de drogas a um ano e oito meses de prisão. Ele e o Ministério Público apelaram. Em 2 de fevereiro de 2015, a dra. Kenarik mandou soltá-lo com esse mesmo argumento de que a pena fixada em primeira instância era menor que o tempo de prisão. Ela afirmou, despacho apartado do voto, que havia no caso apenas recurso da defesa do réu. Tanto não é verdade que ela fala do recurso do MP no voto e que, no colegiado, em 30 de abril, demos provimento a esse recurso, majorando a pena para três anos e quatro meses de prisão.

E tem mais: pouco depois da condenação em primeiro grau, D.L. foi colocado em regime semi-aberto. Durante o semi-aberto, obteve permissão para a saída do dia dos pais em agosto de 2014, mas fugiu. Em 21 de agosto de 2014, o juiz das execuções sustou o regime semiaberto. Em fevereiro de 2015, sem saber de nada disso, sem saber que o réu estava foragido e ainda tinha pena a cumprir, a dra. Kenarik determinou a soltura dele.

 

Se a pessoa está presa há mais tempo do que o determinado na sentença de primeiro grau, não dá pra fazer a conta e soltar se a prisão excede a sentença?

Não dá. E se ele tem pena de outros crimes para cumprir? E se ele fugiu? E se sobrevém uma nova condenação cujo cumprimento deva preceder o caso em questão? Teria de refazer o cálculo. E execução de pena é um assunto complexo. Não dá para em, segundo grau, sendo apenas revisor de mérito, supor que alguém cumpriu a pena. Ela não tinha essas informações.

 

"Ela jamais atuou contra prisões ilegais. Se tivesse atuado, teria meu total apoio. Eu jamais fui e jamais serei condescendente com prisões ilegais."

E quando o senhor começou a ver essa história pipocando na imprensa, como foi?

 Fiquei indignado. Todo mundo veio brincar comigo, em um misto de ironia e cobrança: “O que você está fazendo”? Minha honra está sendo atacada porque a linha de defesa é no sentido de que ela estaria apenas atuando contra prisões ilegais e isso é mentira. Ela jamais atuou contra prisões ilegais. Se tivesse atuado, teria meu total apoio. Eu jamais fui e jamais serei condescendente com prisões ilegais.

 

OUTRO LADO

 

Para Igor Tamasauskas, o desembargador confunde, propositalmente, prisão cautelar com prisão definitiva fixada em sentença para reclamar contra a juíza. “Nos casos concretos em questão, os réus estavam presos desde o flagrante ou em razão de decretos de prisão preventiva. São prisões cautelares”, diz o advogado. Em casos de prisões processuais, ele argumenta, quem tem que decidir é o relator do caso. Segundo ele, a defesa juntou no procedimento um parecer do professor da USP Maurício Zanoide de Moraes, para elucidar todas essas questões técnicas.

Tamasauskas ressaltou, ainda, que todos os alvarás em questão foram clausulados. Isso significa que o responsável pelos estabelecimentos prisionais só podem soltar o réu depois de checar se ele está preso por outro motivo. “Não há só onze casos assim. Há cerca de sessenta. Sempre que ela via uma prisão ilegal, dessa natureza, concedia habeas corpus de ofício. Está tudo na nossa defesa prévia”, diz o advogado.

Segundo ele, a juíza deixava os bilhetes para o cartório expedir o alvará de soltura antes de passar o caso para o revisor porque, de outra forma, a liminar não seria cumprida até o julgamento da apelação. Perguntado porque ela soltava os réus apesar de ter razoáveis motivos para achar que os colegas divergiriam e mandariam prendê-los novamente, Tamasauskas respondeu: “É a convicção dela.”

O advogado também afirmou que a produtividade dela chegava a 70% da média dos desembargadores paulistas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça. Sobre os outros comportamentos citados na entrevista, mas que não foram objeto de reclamação formal, Tamasauskas preferiu não se pronunciar. Especificamente sobre os comentários de que a juíza teria alterado votos após o julgamento, respondeu: “Não comentamos coisas de ‘ouvir dizer’.”logo-jota