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Internet

Direito à prova na internet, o julgamento da ADC 51 pelo STF e o alcance do MLAT

Debate tem conexão com modo pelo qual autoridades brasileiras podem ter acesso a dados armazenados em outros países

Francisco de Mesquita Laux
20/02/2020|09:00
Atualizado em 20/02/2020 às 09:34
STF orçamento secreto
Fachada do STF. Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

Introdução

O Supremo Tribunal Federal (STF) foi palco, no último dia 10/02, de uma audiência pública a respeito do alcance do Acordo de Assistência Jurídica Mútua (o MLAT, na tradução para o inglês). O debate, alicerçado pela existência da ADC 51, pela qual pretendida a declaração de constitucionalidade do acordo, tem conexão com o modo pelo qual autoridades brasileiras podem obter o acesso a dados armazenados em outros países (especialmente nos EUA) no curso de investigações.

A lógica defendida pela Assespro Nacional, autora da ação, é a de que todas as requisições de dados armazenados nos EUA – caso da grande maioria das informações vinculadas à internet – deverão ser obtidas pela via do MLAT, independentemente da empresa gestora da informação ter filial no Brasil e, ainda, do local que originou a conexão ao ambiente virtual.

A visão oposta, especialmente defendida por autoridades públicas brasileiras, é a de que o tempo transcorrido entre a requisição e a apresentação de resposta via MLAT não condiz com a velocidade necessária para impulsionamento de investigações.

Além do mais, considerando o fato de que a absoluta maioria dos dados constituídos na internet é armazenada por empresas norte-americanas em servidores lá localizados, deve-se imaginar que a interpretação amplíssima do acordo culminaria por gerar uma situação quase que de monopólio estrangeiro a respeito de quais informações poderiam ser acessadas por autoridades brasileiras.

Como bem destacado pelo relator da ADC, o Min. Gilmar Mendes, ao final da audiência pública, o acesso a dados armazenados por empresas estrangeiras demanda um “ajuste fino”, ou seja, “um ponto de encontro entre o Estado, os novos modelos de negócio da economia digital e os direitos dos cidadãos à privacidade”. É com esse intuito que a presente opinião endereça os argumentos a seguir.

A lógica da estrutura que sustenta a rede

A internet é construída a partir de um design end-to-end (e2e ou ponta-a-ponta). Isso significa dizer que a rede em si, a estrutura que mantém a internet ativa, é responsável, em regra, pela prática de atos simples, de transferência de dados, sem discriminação a respeito daquilo que está circulando. A inovação está nas pontas da rede, nos terminais (smartphones, tablets, computadores pessoais) e aplicações que possibilitam a troca de informações.

Essa ausência de preferência de um dado por outro tem conexão direta com a ideia de neutralidade da rede. Se uma nova ideia, disponível em uma aplicação, ameaça quebrar um monopólio até então existente, não há interferência da estrutura que mantém a rede em funcionamento. A internet, em suma, não pode impedir a inovação.

Essa forma de ser do ambiente virtual, contudo, faz com que determinadas informações não possam ser acessadas, ao menos em um primeiro momento e com segurança infalível, por pessoas que se sentem ofendidas na internet. O espectador de um vídeo postado no Facebook não tem condições, em todos os casos, de tomar conhecimento imediato a respeito de quem postou determinada informação, bem como de qual localidade partiu a postagem.

Essa situação gera repercussões à efetivação da tutela jurisdicional nos casos de ilícitos na internet.

Sem saber em face de quem direcionar a demanda e onde citá-lo, é praticamente impossível que um processo judicial transcorra adequadamente.

Falsos anonimatos

A primeira coisa a ser desmistificada, nesse contexto, é a impossibilidade de acesso de dados a respeito da autoria de condutas praticadas na internet.

Nos EUA, a Suprema Corte definiu, no caso McIntyre vs Ohio Elections Comm’n, que a possibilidade de formulação de comentários anônimos a respeito de assuntos políticos é garantida pela Primeira Emenda à Constituição[1].

Essa tradição, aliás, é mais antiga que a própria fundação do Estado norte-americano. Basta lembrar que O Federalista, uma das obras mais importantes da história mundial, é uma coletânea de 85 artigos e ensaios publicados com a utilização do pseudônimo Publius. Era de se imaginar que a construção de uma rede originada de estudos majoritariamente norte-americanos fosse pensada a partir de valores vigentes naquela localidade.

Contudo, há, atualmente, meios de acesso a essa informação. Para descobrir quem praticou o ato, deve-se, primeiramente, diferenciar as atribuições do provedor de aplicação e do provedor de conexão à internet.

Empresas como Facebook, Twitter e Google oferecem ferramentas que possibilitam a inserção de postagens no ambiente virtual e são tidas, nos termos do Marco Civil da Internet, como provedores de aplicações.

Conforme dispõe o artigo 5º, VII, do MCI, uma aplicação da internet é caracterizada como “o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet”. Para que este terminal (por exemplo, um computador pessoal, um tablet ou um smartphone) conecte-se à internet, o usuário deverá valer-se dos serviços oferecidos por um provedor de conexão à internet, usualmente prestados por empresas de telefonia.

Enquanto provedoras de aplicações da internet, tais empresas se sujeitam, nos termos do artigo 15 do MCI, à necessidade de guarda de registros de acesso a aplicações, que, na dicção do artigo 5º, VIII, correspondem ao “conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de internet a partir de um determinado endereço IP”.

Com o recebimento desses dados, a parte interessada deverá buscar informações a respeito do titular do acesso à internet junto ao provedor de conexão. O acesso à internet é contratado formalmente por uma pessoa, com indicação de RG, CPF e endereço residencial e com conferência documental – algo que não acontece, em regra, com provedores de aplicações –, o que permite a identificação do titular nos termos do art. 13 do MCI.

Busca e acesso a dados

A busca e obtenção de dados tem como fundamento o direito à prova, direito este autônomo em relação à obrigação de remoção do conteúdo abusivo e de eventuais repercussões criminais. Daí a existência de previsões específicas em normas de direito processual a respeito do tema.

Fundado nessa ideia, o art. 22 do MCI inaugura, nesse âmbito, a regulamentação da possibilidade de antecipação de prova para alcançar informações sobre condutas praticadas na internet.

Para formar o conjunto probatório, o requerimento deverá suprir três requisitos: (i) apresentar fundados indícios da ocorrência do ilícito, (ii) formular justificativa motivada da utilidade dos registros para fins de investigação, e (iii) delimitar o período dos registros requisitados. A lei é aplicável tanto aos provedores de aplicações, quando aos provedores de conexão.

Impossibilidade de acesso à fonte de prova: o aspecto territorial e o alcance do MLAT

Como se sabe, a postagem de manifestações no ambiente virtual pode ocorrer, basicamente, de qualquer lugar do mundo em que disponível uma conexão à rede. Do mesmo modo, pessoas conectadas nas mais diversas regiões podem acessar o material em referência, em tese, sem qualquer dificuldade inicial. É dizer: um vídeo postado no Facebook por pessoa localizada no Reino Unido pode ser assistido por usuários conectados à internet na Alemanha, no Japão, no Canadá e no Brasil.

É possível, contudo, que o conteúdo do vídeo postado pelo usuário britânico repercuta e fique sujeito a medidas inibitórias e investigativas de maneiras diversas nessas localidades. Por exemplo: é possível que a produção inserida no YouTube tenha a intenção específica de difamar pessoa conhecida, com residência e atuação no Brasil.

Embora disponível no mundo todo, dificilmente autoridades de outros países, fora o Brasil, teriam interesse em inibir a veiculação do vídeo e promover investigações para descobrir, com precisão, quem foi o autor da postagem.

As duas medidas sugeridas no parágrafo acima (inibição e investigação) são regidas por disposições diversas. De fato, a situação de direito material, configurada a partir do dano sofrido com a veiculação do vídeo no Brasil, embora advinda de vídeo postado no estrangeiro, pode ser apreciada diretamente pelo Judiciário brasileiro para fins de interrupção de acesso ao conteúdo por usuários localizados no território nacional.

Por sua vez, a questão processual, relacionada com a extraterritorialidade da fonte de prova de autoria da postagem, deve observância ao contido na legislação processual em termos de competência internacional e nos acordos de cooperação atualmente em vigor.

Considerando o exemplo em referência, é muito provável que os dados do usuário investigado, enquanto parte do Facebook, estejam armazenados nos Estados Unidos. De acordo com o entendimento da ADC 51, portanto, o MLAT deveria ser utilizado pelo investigador brasileiro para acesso à informação.

É importante ter em mente que, no caso da hipótese descrita nesta opinião, nenhum ato de acesso à internet ou postagem partiu dos EUA – a postagem, possivelmente, sequer iria repercutir no país. O que existe é o simples armazenamento de dados naquela localidade.

A presente opinião defende, nesse contexto, que a existência e vigência do MLAT comporta leitura constitucional, especialmente conectadas com a soberania estatal e a impertinência de interferência estrangeira em investigações, e isso parece fazer parte das disposições do próprio Marco Civil da Internet – a lei é posterior ao MLAT, instituído pelo Decreto 3.810/2001.

Isso é dito porque o MCI parametriza o acesso a dados constituídos na internet por autoridades brasileiras do seguinte modo: (i) dados constituídos com a contribuição de pelo menos um terminal localizado no Brasil ficam sujeitos à legislação brasileira, inclusive para fins de acesso à prova pelas autoridades locais (art. 11, caput e § 1º). Para esse fim, (ii) é indiferente que a pessoa jurídica que armazena as informações esteja sediada ou mantenha servidores no exterior. Se há atuação no território nacional, existe a possibilidade de expedição de ordens de quebra de sigilo e acesso aos dados constituídos a partir de acessos advindos do Brasil (art. 11, 2º). (iii) Por exclusão, se o dado for constituído sem a contribuição de um terminal de acesso localizado no Brasil, a alternativa, para fins de investigação, é a utilização de mecanismos de cooperação internacional, ou mesmo de carta rogatória para fins de acesso à informação desejada, até porque é muito provável que o provedor de conexão não tenha atuação no território nacional.

O que importa, neste caso, é a origem da fonte da prova. Se o investigado acessou a internet a partir de uma conexão brasileira, então a utilização de um mecanismo de cooperação internacional é impertinente.

Se, por sua vez, o investigado acessou a rede por meio de conexão estrangeira, então a fonte de prova foi constituída sem a participação de um terminal brasileiro e, portanto, a utilização de um mecanismo de cooperação internacional como o MLAT é necessária.

Imagine-se, por exemplo, a situação em que proferida, por órgão estrangeiro, determinação de apresentação de dados constituídos no Brasil sem que respeitados os acordos de cooperação internacional, ou sem que ao menos tivesse sido encaminhada, por aquele Estado, instrumento semelhante a uma carta rogatória, ou seja, sem que se respeitasse um devido processo para obtenção de informações não somente armazenadas, mas também produzidas fora do território daquele país.

Tal medida seria, com absoluta razão, muito provavelmente repudiada pelo Brasil. Daí a pertinência de construção de um raciocínio que, da mesma maneira, respeite a autoridade e as leis vigentes em outros países também no tema do acesso e obtenção de provas.

Essa parece ser, no entender desta opinião, a “sintonia fina” almejada pelo STF por meio da apreciação da ADC.

 


[1] McIntyre v. Ohio Elections Comm'n, 514 U.S. 334 (1995). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/514/334/.logo-jota

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