Opinião e Análise

Breno Vasconcelos

João Victor Emile Andrade Safieh

No relatório de pesquisa intitulado Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário, encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>), nossa equipe descreveu um achado quanto à sistemática dos recursos repetitivos, instituída no ordenamento brasileiro em 2006<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e reforçada no Código de Processo Civil editado em 2015 (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cpc">CPC</a>).
Segundo a equipe, “o filtro de admissibilidade instituído pelos recursos repetitivos tem sido um importante fator de redução do contencioso tributário nos Tribunais Superiores". Paradoxalmente, porém, “os estoques de processos tributários em Tribunais a quo mantiveram-se estáveis".
Ou seja, os recursos repetitivos têm sido eficazes para reduzir a litigiosidade nos Tribunais Superiores, mas aparentemente incapazes de replicar o sucesso para os Tribunais Regionais Federais e de Justiça.
Este artigo parte de discussões coletivas e se propõe a arrolar algumas possíveis hipóteses para esse fenômeno, que, pelo prazo restrito, não puderam ser desenvolvidas no relatório final da pesquisa.
Primeiro, fazemos uma breve digressão conceitual. A sistemática de recursos repetitivos, conforme a exposição de motivos do CPC<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, tem como objetivo prestigiar a segurança jurídica e garantir (i) a celeridade processual, por meio do “julgamento conjunto de demandas que gravitam em torno da mesma questão de direito” e (ii) a uniformização da jurisprudência, para evitar a existência de posicionamentos diferentes e incompatíveis sobre a mesma norma jurídica.
De acordo com o CPC, especialmente seus artigos 927 e de 1.036 a 1.041, uma vez afetada a matéria jurídica à sistemática dos recursos repetitivos (i) os processos que discutam a matéria deverão permanecer suspensos nos tribunais até o julgamento do repetitivo e, (ii) uma vez definida a tese, o entendimento vinculante será aplicado aos processos sobrestados. Além disso, (iii) os recursos especiais e extraordinários interpostos em sentido contrário terão seguimento negado, impedindo o acesso aos tribunais superiores.
É de se esperar, portanto, que a afetação e respectivo julgamento dos repetitivos sejam capazes de reduzir o contencioso nas instâncias inferiores. Vejamos o que os dados nos mostraram.
O controle dos dados da sistemática dos recursos repetitivos é realizado pelo CNJ e divulgado por meio do Painel de Consulta ao Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios, no qual os pesquisadores identificaram que, dos 556 temas tributários afetados à sistemática pelos Tribunais Superiores no período de 2007 a outubro de 2021, 427 foram julgados. Nesse mesmo período, foram sobrestados 487.476 processos em virtude da sistemática, dos quais foram julgados apenas 127.510.
Em termos percentuais, apesar de os Tribunais Superiores terem julgado 77% dos temas tributários repetitivos, apenas 26,2% dos processos anteriormente sobrestados em segunda instância foram julgados.
Além disso, informações obtidas pela equipe de pesquisa por meio da Lei de Acesso à Informação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lai">LAI</a>) demonstraram que o estoque de processos tributários no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/superior-tribunal-de-justica">STJ</a> sofreu uma redução de 37% entre os anos de 2016 e 2021. No <a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>, por sua vez, essa redução foi da ordem 49,1% entre os anos de 2017 e 2020.
Os dados demonstram, contudo, que a redução nos estoques tributários dos tribunais superiores não se refletiu nos tribunais de segunda instância. Conforme se verifica do gráfico abaixo, os estoques dos tribunais de segunda instância se mantiveram estáveis durante o período analisado:
[caption id="attachment_366731" align="aligncenter" width="1362"]<img class="wp-image-366731 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/captura-de-tela-2022-04-27-as-18-50-16.png" alt="" width="1362" height="721" /> Fonte: Relatório do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, com dados obtidos por meio de pedido LAI para os tribunais (2021)[/caption]
Considerando que a sistemática de recursos repetitivos é a principal mudança regulatória dos processos tributários no período pesquisado, a correlação entre esses dados permitiu aos pesquisadores concluir ser ela um importante fator de redução do contencioso tributário, mas que, como apontado pela ministra Regina Helena Costa em entrevista à equipe<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, precisa ser aprimorado para que a redução de estoque seja experimentada também pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais.
Em resposta ao achado da pesquisa, o Núcleo de Tributação do Insper pretende aprofundar as investigações ao longo do ano, e formulamos três possíveis hipóteses, isoladas ou cumulativas, que explicam esse descompasso entre a evolução dos estoques dos tribunais superiores e os tribunais de segunda instância, analisado sob o ponto de vista da sistemática dos recursos repetitivos.
A primeira hipótese diz respeito à demora no julgamento dos recursos repetitivos pelos tribunais superiores. Apesar de a provocação não ser novidade, os dados trazidos no relatório demonstraram de forma concreta os efeitos disso: o acúmulo de processos sobrestados nos tribunais de segunda instância ao longo dos anos em virtude da afetação de temas repetitivos.
É o que se verifica da comparação entre os gráficos (i) da quantidade de processos sobrestados por ano versus (ii) da quantidade de processos julgados por ano:
[caption id="attachment_366732" align="aligncenter" width="1000"]<img class="wp-image-366732 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/04/captura-de-tela-2022-04-27-as-18-53-45.png" alt="" width="1000" height="706" /> Fonte: Relatório do Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, com dados do Painel de Consulta ao Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios (2021)[/caption]
Embora o CPC determine em seu artigo 1.037, §4º que os recursos afetados à sistemática dos repetitivos sejam julgados no prazo de um ano, a ausência de consequências para o seu descumprimento parece ser um fator importante para a morosidade de seu julgamento. A esse respeito, merece destaque o revogado §5º do artigo 1.037 que determinava como consequência do decurso desse prazo a cessão do sobrestamento dos processos em todo o território nacional, o que evidentemente redundaria no envio de processos aos tribunais superiores.
A demora no julgamento dos precedentes vinculantes, contudo, não nos parece capaz de explicar o porquê de apenas 26,2% dos processos tributários sobrestados terem sido julgados, já que os tribunais superiores julgaram expressivos 77% dos temas repetitivos. Em tese, o maior número de repetitivos julgados deveria se refletir uma maior quantidade de julgamento dos casos sobrestados em segunda instância.
A segunda hipótese diz respeito à necessidade de racionalização do sobrestamento dos processos em segunda instância, a fim de evitar a paralisação desnecessária de processos em virtude de múltiplos temas repetitivos abrangidos pela ação.
O STJ<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> adota o entendimento da indivisibilidade da ação, o que veda o reconhecimento do trânsito em julgado parcial da demanda e, consequentemente, impede o aproveitamento do indébito tributário, nos termos do art. 170-A do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ctn">CTN</a>.
Para ilustrar o problema, imaginemos uma ação tributária em que se discuta matérias abrangidas por diferentes temas repetitivos, e apenas um deles é julgado definitivamente pelos tribunais superiores. Pela indivisibilidade prática da ação, o processo permanecerá sobrestado e sem o reconhecimento do trânsito em julgado quanto à parte objeto de entendimento vinculante já firmado, em virtude do tema pendente de julgamento.
Em razão disso, processos sobrestados são acumulados nos Tribunais de segunda instância, sem uma resolução definitiva do mérito em relação a matérias não abrangidas por repetitivos ou cuja tese já tenha sido fixada, ainda que o tema repetitivo pendente seja uma questão secundária, como por exemplo a condenação em honorários advocatícios (vg. tema 1.076 recentemente julgado pelo STJ).
O trânsito em julgado parcial da sentença, contudo, não resolveria o problema do acúmulo no estoque de processos, já que os processos continuariam sobrestados de toda forma. Apesar disso, não se pode ignorar que a possibilidade de reconhecimento do trânsito em julgado quanto à parcela da sentença objeto de repetitivo representaria importante avanço em benefício da segurança jurídica, celeridade e racionalização da prestação jurisdicional, beneficiando os jurisdicionados com uma tutela definitiva para o seu direito.
A terceira hipótese, por sua vez, é da necessidade de racionalização da definição dos temas representativos de controvérsia. Isso porque, em consonância com os objetivos da sistemática, as teses devem ser capazes de sintetizar um racional jurídico a ser seguido pelos tribunais e não apenas a solução para um caso concreto específico.
A identificação da ratio decidendi de um precedente, contudo, não é tarefa fácil, sobretudo porque muitas vezes uma mesma decisão pode ter diferentes razões de decidir. A tarefa fica ainda mais complexa se considerada a forma de deliberação dos tribunais superiores, em que cada ministro expõe suas próprias razões individuais de decidir.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
A racionalização da forma como os temas repetitivos são definidos, nesse contexto, pode mitigar essa dificuldade na identificação da ratio decidendi vinculante por meio da enunciação, na própria tese a ser firmada, do racional jurídico que deve orientar e vincular os tribunais pátrios.
Por meio da racionalização dos temas repetitivos, por exemplo, a tese firmada no tema 69 de repercussão geral de que “O ICMS não compõe a base de cálculo para a incidência do PIS e da Cofins”, poderia ter sido delimitada da seguinte forma: “tributo incidente sobre o consumo, que compõe o preço de mercadoria ou serviço, não representa receita do contribuinte e, portanto, não compõe a base de cálculo de tributo incidente sobre receita”.
O professor Fernando Facury Scaff<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, nesse sentido, sugere que a definição de uma tese mais abrangente como “nenhum tributo compõe a base de cálculo para a incidência de outro tributo” tornaria desnecessários os temas (i) 118 - ISS na base de cálculo do PIS/Cofins, (ii) 843 - créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, (iii) 1048 – ICMS na base de cálculo da CPRB, (iv) 1135 – ISS na base de cálculo da CPRB, dentre diversas outras “teses filhotes” do tema 69.
A análise dos temas acima que seriam abrangidos pelo racional do tema 69 nos conduz a outro aspecto ser considerado na racionalização dos repetitivos que é a estabilidade e uniformidade dos entendimentos judiciais. Isso porque a definição de temas repetitivos orientados à enunciação do racional jurídico evitaria a prolação de conclusões contraditórias entre diferentes temas repetitivos.
Assim, sem prejuízo de outras investigações, nos parece que o julgamento mais célere dos recursos repetitivos e a racionalização do sobrestamento dos processos, por si só não seriam capazes de garantir maior celeridade na aplicação dos temas repetitivos e, com isso, desafogar os estoques processuais tributários dos tribunais brasileiros.
É necessário, portanto, que os tribunais superiores passem a definir teses de recursos repetitivos que sejam capazes de sintetizar o racional jurídico a ser aplicado e, com isso, servir de efetivo instrumento de coletivização de julgamento e de uniformização jurisprudencial, em prol da celeridade processual e da segurança jurídica.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Por meio das alterações promovidas no CPC/73 pela <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11418.htm">Lei 11.418/2006</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Código de processo civil e normas correlatas. 7. ed. – Brasília : Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2015.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Segundo a Ministra, “os mecanismos de coletivização de julgamentos, como a repercussão geral e os recursos repetitivos são instrumentos positivos, mas que precisam ser aperfeiçoados” (Trecho da entrevista concedida pela Ministra extraído do Diagnóstico do contencioso judicial tributário brasileiro : relatório final de pesquisa / Conselho Nacional de Justiça; Instituto de Ensino e Pesquisa. – Brasília: CNJ, 2022.)
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> A exemplo do REsp 1858227/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/03/2020, DJe 13/05/2020
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a>PENCAK, Nina; ALVES, Raquel de Andrade Vieira. A ratio decidendi e a fixação de teses em matéria tributária: duas faces da mesma moeda?. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/a-ratio-decidendi-e-a-fixacao-de-teses-em-materia-tributaria-08042021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/a-ratio-decidendi-e-a-fixacao-de-teses-em-materia-tributaria-08042021</a>. Acesso em: 24 abr. 2022.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a>SCAFF, Fernando Facury. Tributo sobre tributo: propostas para modificação do tema 69 da repercussão geral. 2022. Disponível em: <a href="https://www.conjur.com.br/2022-jan-24/justica-tributaria-propostaspara-modificacao-tema-69-repercussao-geral">https://www.conjur.com.br/2022-jan-24/justica-tributaria-propostaspara-modificacao-tema-69-repercussao-geral</a>. Acesso em: 24 abr. 2022.

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JOTA

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