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Tributário

Macrolitigância tributária, precedentes vinculantes e controle de aplicação

É através do emprego adequado da reclamação que se poderá reafirmar a força dos precedentes

créditos
Foto: Arquivo.

O nível de litigiosidade entre o fisco e os contribuintes no Brasil de há muito alcançou patamares elevadíssimos. Os números não deixam dúvidas: de acordo com recentes estudos, o estoque de créditos tributários da União objeto de contencioso, judicial ou administrativo, alcançou em 2018 o volume de R$ 3,4 trilhões, correspondendo a 50,5% do PIB no mesmo ano[1].

Nesta perspectiva, a litigiosidade tributária, de proporções crescentes, passa a reclamar soluções abrangentes, capazes de lidar eficazmente com o efeito multiplicador próprio dos conflitos tributários. Daí afigurar-se intuitivo que o estudo das ferramentas de solução dos conflitos tributários não prescinde de uma visão igualmente abrangente, é dizer, de uma visão macro: uma visão da macrolitigância tributária.

O estudo das contendas tributárias passou a reclamar o emprego de medidas de racionalização e solução adequada de conflitos, de que são perfeitos exemplos as diversas ferramentas implementadas no âmbito da União, inicialmente através de portarias da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que desenharam um “novo modelo de cobrança do crédito tributário federal”[2]  e, mais recentemente, com a edição da Lei nº 13.988/20, que instituiu no âmbito da União a transação tributária a que se referem os artigos 156, inciso III e 171, do Código Tributário Nacional. São medidas que, em última análise, buscam precisamente a racionalização do sistema processual, a fim de que ele se torne mais apto à consecução de sua finalidade precípua de solução de conflitos.

É também nesta perspectiva que tem especial importância o exame dos mecanismos de formação e aplicação de precedentes contemplados em nossa legislação processual, sobretudo a partir do Código de Processo Civil de 2015. Conquanto certos institutos viabilizadores da solução jurisdicional uniforme dos conflitos já estivessem presentes entre nós, caso da sistemática de recursos repetitivos e da repercussão geral, ambas introduzidas no CPC/73 pela Lei nº 11.418/06, é certo que o CPC/15 aperfeiçoou tais instrumentos, materializando deliberada guinada rumo a um modelo processual de respeito aos precedentes judiciais.

Tais instrumentos possuem inegável importância para a solução da macrolitigância tributária, permitindo que uma mesma solução seja aplicada a uma multiplicidade de casos análogos, o que, ao fim e ao cabo, mostra-se de todo consentâneo com os ideais de igualdade e justiça tributária. Afinal, se a atividade estatal de exigir tributos não deve descurar do tratamento isonômico aos particulares e agentes econômicos em geral, a fim de que o tributo não se afaste da desejada neutralidade concorrencial[3], forçoso é reconhecer que a uniformização da aplicação da lei tributária pelos tribunais é medida que vem ao encontro do mesmo fim.

Ocorre que a implementação de uma cultura de observância dos precedentes em um sistema com raízes profundas no civil law não se dá sem alguns percalços, como, ademais, tem-se apontado desde os primeiros instantes de vigência do CPC/15. Inegavelmente, a primeira perplexidade que se verifica diz respeito ao processo de formação dos precedentes[4], já que, entre nós, a decisão judicial paradigma já nasce incumbida de orientar uma multiplicidade de casos análogos, muitos deles já sobrestados nos tribunais locais e regionais, à espera da fixação da tese que lhes apontará a adequada solução.

Ademais deste primeiro ponto problemático, surgem com igual ou maior preocupação os problemas atinentes à aplicação  dos precedentes. À medida em que se pretende aplicar a solução adotada em um caso paradigma a outros casos análogos, é indispensável aferir se existe efetiva similitude com o caso em julgamento, o que, todavia, somente se pode verificar em concreto, após uma comparação analógico-problemática, de modo que o precedente consiste no ponto de partida, mas não necessariamente no ponto de chegada para a solução do caso[5].

Não por acaso, o artigo 489, §1º contempla importante preceito, a apontar que não se considera fundamentada a decisão judicial que “se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos”. Veja-se que referido preceito vale-se da noção de “fundamentos determinantes”, que é própria à teoria dos precedentes e consiste precisamente naqueles fundamentos que determinam o resultado ou a conclusão, ou seja, sua ratio decidendi[6].

Nessa análise, não basta que se realize um exercício de subsunção da tese firmada, a fim de aplicá-la ao caso concreto, impondo-se ainda ao órgão julgador que proceda ao cotejo entre o paradigma e o caso a decidir, a fim de verificar analiticamente sua aplicabilidade. Em outras palavras, deve-se aferir se a questão de direito que reclama solução no caso em julgamento está efetivamente resolvida na ratio decidenci do caso paradigma[7].

Ocorre que, ademais dessa primeira mensagem normativa mais explícita, o meditar sobre o artigo 489, §1º do CPC veicula ainda uma mensagem subjacente que, a despeito de certa obviedade, pode passar despercebida: a aplicação dos precedentes não está imune à falibilidade humana, e, por isso mesmo, há de cercar-se de mecanismos que lhe viabilizem o controle. É dizer, o sistema de precedentes não se esgota em seu processo de formação, mas também abrange os processos de aplicação aos inúmeros casos análogos que chegam ao Judiciário, e que reclamam o emprego de método próprio, bem como a existência de mecanismos efetivos, através dos quais se possa corrigir eventuais equívocos de aplicação.

Nesta perspectiva é que assume especial importância o exame dos mecanismos de controle da aplicação dos precedentes, previstos na legislação processual. São eles que permitirão delinear os limites da aplicação dos precedentes ao universo de conflitos jurídicos análogos àqueles solucionados pelo caso paradigma, mediante o cotejo entre a ratio decidendi do precedente, e as questões de direito existentes nos processos em julgamento.

Conquanto o agravo interno previsto no artigo 1.030, §2º do CPC já traga consigo a missão precípua de viabilizar o controle da aplicação dos precedentes no âmbito dos tribunais locais e regionais, ao permitir à parte prejudicada pela equivocada aplicação de tese de repercussão geral ou de recurso especial ou extraordinário repetitivo inadequada ao seu caso fazer o distinguishing, apontando as distinções entre o caso paradigma e o caso em julgamento a fim de que seu recurso seja regularmente processado, surge com incontrastável importância um último mecanismo de controle: a reclamação, fundada no artigo 988, §5º, inciso II do CPC.

A existência de mecanismos de controle da aplicação dos precedentes vinculantes parece indispensável à própria efetividade do exercício da jurisdição pelos tribunais superiores. É a partir do ato de aplicação dos precedentes firmados em repercussão geral ou em julgamento de recursos especial e extraordinário repetitivos pelos tribunais que se pode melhor compreendê-los, identificando-se adequadamente sua ratio decidendi, confrontando-a com o caso em julgamento, e promovendo-se a distinção quanto às situações que, por versarem casos substancialmente distintos – leia-se, não análogos –, devem receber tratamento diverso.

Para que possamos implementar entre nós um verdadeiro modelo de respeito aos precedentes, é indispensável ter em conta que o sistema de precedentes, focalizado de maneira abrangente, não se esgota com a delimitação dos enunciados das teses firmadas, mas também é integrado pelo processo dialético de aplicação, que permite explicitar o seu alcance, a partir dos fundamentos determinantes que compõem a ratio decidendi.

Assim, a formação-aplicação de precedentes reclama uma sucessão de expedientes analíticos que, longe de se encerrar com o ato de julgamento do caso paradigma, depende intrinsecamente dos sucessivos atos de aplicação que se seguirão, e que, ao se depararem com a multiplicidade de caracteres que os fatos sociais podem assumir, acabarão por delimitar o efetivo alcance do precedente, potencialmente distinto daquele que se imaginou quando da prolação do acórdão paradigma.

O Supremo Tribunal Federal vem admitindo a reclamação como mecanismo de controle da aplicação dos precedentes formados em julgamento de repercussão geral ou de recurso extraordinário repetitivo[8], desde que esgotadas as instâncias ordinárias[9]. Em sentido oposto, todavia, o Superior Tribunal de Justiça não partilha do mesmo entendimento, tendo sua Corte Especial assentado que o manejo da reclamação não encontra guarida em tais casos[10].

Não tencionamos aprofundar-nos no exame da controvérsia acerca do cabimento da reclamação em tais hipóteses, o que reclamaria incursão nos fundamentos favoráveis ou contrários ao seu emprego. Também não pretendemos sustentar que a Reclamação venha a servir como ampla oportunidade de rediscussão da controvérsia, o que acabaria por convertê-la em verdadeiro sucedâneo recursal.

Porém, é indispensável que o sistema processual esteja aparelhado com efetivos mecanismos de controle da aplicação dos precedentes, capazes viabilizar a correção de aplicações claramente equivocadas, mormente porque é no processo de aplicação que o precedente se consolida como tal. Urge compreender os mecanismos de controle da aplicação dos precedentes como parte indispensável de seu processo constitutivo, tomado em sentido abrangente, a fim de que o modelo de precedentes obrigatórios delineado pelo Código de Processo Civil não se esgote numa mera codificação de teses firmadas pelos tribunais superiores.

É através do emprego adequado da reclamação que se poderá reafirmar a força dos precedentes, o que, longe de atentar contra a sua autoridade, acaba por afirmar-lhes a eficácia, oportunizando-se que o próprio tribunal superior dê a precisa delimitação do seu alcance, quando emergirem dúvidas fundadas sobre a sua aplicabilidade aos casos em julgamento. Somente assim é que se alcançará o ponto de equilíbrio entre o emprego de soluções abrangentes para a macrolitigância e uma aplicação efetiva e isonômica do Direito, com larga repercussão nas relações jurídico-tributárias.

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[1] Desafios do Contencioso Tributário Brasileiro: a evolução do contencioso, os modelos de solução de conflitos de seis países e medidas que poderiam ser aplicadas para mitigar o problema no Brasil – São Paulo: Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial, 2019, p. 9. Disponível em: https://www.etco.org.br/projetos/desafios-do-contencioso-tributario-brasileiro/.

[2] ARAUJO, Juliana Furtado Costa. A efetividade da cobrança do crédito tributário federal como fundamento legitimador da Portaria PGFN 33/18. In: ARAUJO, Juliana Furtado Costa; CONRADO, Paulo Cesar. Inovações na cobrança do crédito tributário. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 24.

[3] SCHOUERI, Luís Eduardo. Livre concorrência e tributação. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Org.). Grandes questões atuais do direito tributário. São Paulo: Dialética, 2007b. v. 11. p. 254

[4] RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: CONRADO, Paulo Cesar (Coord.). Processo Tributário Analítico – Volume III – São Paulo: Noeses, 2016, p. 122.

[5] RIBEIRO, 2016, p. 123.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios – 5ª ed. – São Paulo: Thomson Reuters, 2016, p. 338.

[7] MARINONI, 2016, p. 339-340.

[8] Rcl 30326 AgR, Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 06/09/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-204 DIVULG 19-09-2019 PUBLIC 20-09-2019.

[9] Nos casos em que não tem admitido a Reclamação o STF tem afirmado a necessidade de prévio esgotamento das instâncias ordinárias. Veja-se: Rcl 37762 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 15/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118 DIVULG 12-05-2020 PUBLIC 13-05-2020; Rcl 31361 AgR, Relator(a): ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 14/02/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 06-03-2020 PUBLIC 09-03-2020; Rcl 31486 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 19/11/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-251 DIVULG 23-11-2018 PUBLIC 26-11-2018; Rcl 37964 AgR, Relator(a): RICARDO LEWANDOWSKI, Segunda Turma, julgado em 15/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-097 DIVULG 22-04-2020 PUBLIC 23-04-2020.

[10] Rcl 36.476/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, CORTE ESPECIAL, julgado em 05/02/2020, DJe 06/03/2020.logo-jota