Maria Augusta Peres Catelli
Advogada do Opice Blum, Bruno, Abrusio e Vainzof Advogados Associados.
Estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS)[1] apontam um alarmante cenário: uma em cada três mulheres sofrerá alguma forma de violência ao longo de sua vida e uma em cada dez mulheres já sofreu algum tipo de violência cibernética a partir de seus 15 anos de idade[2].
Dentre os tipos mais conhecidos de violência cibernética está o cyberstalking, perseguição realizada com o auxílio de tecnologia com o objetivo de ameaçar a vítima, monitorar o seu comportamento ou realizar aproximações indesejadas. Embora “fuçar” a vida alheia seja motivo de piadas na rede, o assunto é muito mais sério e capaz de trazer graves consequências em casos que se torna uma obsessão.
As motivações do stalker podem ser diversas, mas, comumente, observa-se que tem como objetivo criar alguma relação ou obter reconciliação com a vítima, a qual se sente invadida em sua privacidade, amedrontada e ameaçada diante da aproximação indesejada, configurando-se verdadeira violência psicológica e moral com graves consequências para a vítima.
Cumpre ressaltar, nesse contexto, que as consequências dos atos praticados em âmbito virtual não podem ser subestimadas. Pelo contrário, profissionais que estudam o tema apontam que o alcance e a permanência das ferramentas online permitem que o trauma das vítimas seja intensificado[3].
Importante notar que, em pesquisa realizada pelo Centro de Investigação de Pew, nos Estados Unidos, conclui-se que os tipos de assédio cibernético sofrido pelas mulheres (sobretudo as jovens de idades compreendidas entre 18 e 24 anos) são demasiadamente mais graves do que aqueles sofridos pelos homens, incluindo cyberstalking e assédio sexual cibernético[4].
Fato é que diante da gravidade da prática e suas consequências, o cyberstalking se tornou uma preocupação mundial. De acordo com informações constantes no site “Stalking Risk Profile”[5], diversos países possuem legislação e iniciativas que buscam coibir a prática[6].
Dentre elas podemos destacar a do Paquistão (“Prevention of Eletronic Crimes Ordinance”, 2016[7]) e da Índia (Código Penal[8]), as quais possuem disposições específicas proibindo a prática, prevendo penas que variam de 3 a 5 anos de prisão e multa.
A legislação paquistanesa prevê também que a vítima pode requerer, às autoridades, a adoção de medidas para cessar a prática ilícita. Já os dispositivos legais da Índia são voltados especificamente para a prática de perseguição contra as mulheres, contudo, a lei prevê hipótese em que ao acusado não será penalizado pela conduta, incluindo a ocorrência de “circunstâncias particulares em que tal conduta é razoável e justificável.”[9]
Nos Estados Unidos, o cyberstalking estava previsto como crime federal na “Violance Against Women Act” de 2005[10], a qual expirou em fevereiro de 2019 e, atualmente, encontra-se aguardando a aprovação de sua nova versão.
Na África do Sul a “Protection from Harassment Act” foi criada em 2011 com o objetivo de proporcionar às vítimas de assédio um remédio eficaz contra esse comportamento e, ainda, introduzir medidas que buscam capacitar os órgãos relevantes do Estado a dar pleno efeito ao quanto previsto na lei[11]. Um ponto importante é que a lei possibilita também, que um terceiro, interessado no bem estar da vítima ou pessoa a ela relacionada, pleiteie a medida[12].
No ordenamento jurídico brasileiro, não existe previsão legal expressa coibindo a prática de stalking ou cyberstalking. Não obstante, a depender do caso concreto, é possível enquadrar a prática como crime de ameaça (art. 147 do Código Penal) ou como contravenção penal (art. 65 da Lei de Contravenções Penais).
No que tange a eventuais medidas protetivas, como é sabido, a legislação possui as previstas na Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), criadas para a proteção da mulher contra atos de violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, advindos do âmbito doméstico ou familiar da vítima.
Conforme mencionado, o cyberstalking nem sempre é praticado por alguém próximo da vítima, contudo, em um caso recente, tal fato não impediu a aplicação das medidas protetivas a uma vítima de perseguição virtual.
Em um caso que teve grande repercussão[13], embora o agressor não fizesse parte do âmbito doméstico e familiar da vítima, em razão de sua pretensão em obter uma relação com ela, a justiça reconheceu que o agressor acreditava haver o vínculo, justificando a investigação como caso de violência doméstica, com a aplicação da Lei Maria da Penha, tratando-se de importante precedente para a proteção das vítimas de cyberstalking.
Cientes do crescente número de casos, da tendência mundial e da necessidade de garantir a aplicação de medidas de proteção em âmbito criminal, membros do Legislativo apresentaram projetos de lei específicos para criminalizar o stalking e o cyberstalking no Brasil, dentre os quais se destacam o PL 1414/2019 e o PL 1369/2019, que aguardam apreciação do Plenário da Câmara dos Deputados.
Desta forma, verifica-se que a prática de cyberstalking tem recebido atenção diante de sua gravidade e recorrência, sendo tendência mundial a criação de leis e iniciativas para coibir a prática e garantir a proteção das vítimas. Contudo, é de extrema importância que, além de legislar sobre o assunto, a sociedade se empenhe na educação digital para que as pessoas façam uso positivo da Internet.
Importante desde já ressalvar que a vítima não pode e nem deve ser culpabilizada pela perseguição sofrida, no entanto, considerando que a prática de cyberstalking pode estar relacionada não só a questão de educação digital mas também de saúde mental, envolvendo questões complexas relacionadas às políticas públicas, seria importante que as usuárias tenham consciência das medidas que podem ser adotadas para minimizar os riscos de ser alvo desse tipo conduta, as quais destacamos:
- Busque restringir as suas redes sociais para amigos e conhecidos;
- Restrinja o acesso às suas informações pessoais e fotos impedindo o acesso de pessoas que não sejam próximas;
- Evite postar sua localização em tempo real ou de maneira frequente, a fim de impedir que saibam de sua rotina;
- Caso esteja sendo atacada/perseguida: (i) evite revidar; (ii) procure lavrar um boletim de ocorrência; (iii) providencie a preservação das provas; (iv) se necessário for, busque auxílio psicológico e jurídico.
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[1] Cf. Relatório disponível em: http://www.who.int/reproductivehealth/publications/violence/9789241564625/en/. Acesso em 14.02.2020.
[2] Cf. Relatório “Cyber violence against women and girls”, produzido pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/cyber-violence-against-women-and-girls. Acesso em 14.02.2020.
[3] Cf. Relatório “Violência de gênero na internet”. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia/violencias/violencia-de-genero-na-internet/#espaco-virtual-consequencias-reais. Acesso em 14.02.2020.
[4] Cf. Relatório “Cyber violence against women and girls”, produzido pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Gênero. Disponível em: https://eige.europa.eu/publications/cyber-violence-against-women-and-girls. Acesso em 14.02.2020.
[5] Disponível em https://www.stalkingriskprofile.com/, acessado em 14.02.2020.
[6] Disponível em https://www.stalkingriskprofile.com/what-is-stalking/stalking-legislation/international-legislation, acessado em 14.02.2020.
[7] Disponível em http://www.na.gov.pk/uploads/documents/1470910659_707.pdf, acessado em 14.02.2020.
[8] Disponível em http://devgan.in/indian_penal_code/chapter_16.php#s354, acessado em 14.02.2020
[9] Tradução livre de conteúdo disponível em http://devgan.in/indian_penal_code/chapter_16.php#s354D, acessado em 14.02.2020
[10] A “Violance Against Women Act” foi responsável por expandir as formas de proteção legal para combater a violência contra a mulher, chamando atenção para questões de violência doméstica, violência em relacionamentos, agressão sexual e “stalking”
[11] Disponível em https://www.justice.gov.za/legislation/acts/2011-017.pdf, acessado em 14.02.2020.
[12] Disponível em https://www.saps.gov.za/services/protection_order.php, acessado em 14.02.2020.
[13] Disponível em https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/01/16/caso-de-stalking-e-o-1-do-pais-investigado-como-violencia-domestica.htm. Acesso em 14.02.2020.