Fernando Stival

Marcada por inúmeras controvérsias, a Guerra do Vietnã foi caracterizada por uma mudança no que se refere à métrica empregada para avaliar o progresso da campanha norte-americana. Em vista das dificuldades enfrentadas em campo e da necessidade de oferecer respostas convincentes à opinião pública, a estratégia levada a cabo sob a gestão de Robert McNamara e comandada pelo General William Wesmoreland representou uma guinada em direção à denominada guerra de atrito baseada na contagem líquida de corpos. A lógica era simples: quanto maior o número de baixas infligidas ao inimigo, considerava-se mais bem sucedidas as ações adotadas.
Essa forma de se medir o progresso militar se provou falha sob diversas perspectivas. A contagem de corpos não refletia adequadamente a realidade do confronto, nem contribuiu para o atingimento dos objetivos estratégicos que originalmente justificaram a intervenção americana. Pelo contrário, lançou o Exército estadunidense em um atoleiro que ao longo do tempo fugiu a seu controle.
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Guardadas as devidas proporções, a mesma sistemática parece se repetir no que diz respeito à proposta de criação da Frente Intensiva de Análise Regulatória e Concorrencial (FIARC), a ser regulamentada por meio de Instrução Normativa objeto da Consulta Pública SEAE nº 01/2020, lançada pela Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade.
A norma em questão busca regulamentar a atuação da SEAE em relação à figura do “abuso de poder regulatório” introduzida no ordenamento jurídico pela Lei nº 13.874/2019 e tem o mérito de buscar estruturar um procedimento ordenado, que permite a reguladores e agentes privados consultar a SEAE quanto à adequação de dispositivos infralegais considerados problemáticos do ponto de vista concorrencial. Ainda, busca o alinhamento da prática regulatória nacional aos melhores padrões internacionais, especificamente provenientes da OCDE.
De outro lado, chama atenção o fato de que, na forma apresentada ao público, a proposta de instrução normativa parece assumir um caráter que remete aos ritos típicos do processo civil, com contornos marcadamente litigiosos.
Tal qual estabelece a proposta normativa, a atuação da SEAE pode ser provocada a partir de requerimento fundamentado apresentado pelo rol de agentes indicados em seu art. 13. O procedimento de análise pode ser instaurado desde que observados os requisitos básicos indicados no art. 14<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Instaurado esse procedimento, compete ao Subsecretário de Advocacia da Concorrência oficiar o órgão da Administração responsável pela edição do ato que se reputa abusivo, o requerente e associações ou representantes do setor produtivo potencialmente envolvidos, que podem submeter informações e documentos aptos a subsidiar a análise de mérito a ser realizada pela SEAE.
Ainda, na forma do art. 16 faculta-se ao Coordenador-Geral designado (i) requisitar informações e documentos de quaisquer pessoas, órgãos públicos, autoridades e entidades públicas e privadas; (ii) a promoção de eventos, debates, consultas públicas e audiências e; (iii) propor ao Secretário de Advocacia da Concorrência a celebração de acordos ou convênios com entidades públicas ou privadas com a finalidade de auxiliar a Secretaria no processo de avaliação e propositura de medidas voltadas à promoção da concorrência, todas essas medidas voltadas à finalidade de melhor instruir a análise do regulamento sob avaliação.
Ao final desse procedimento, conforme estabelece o art. 17, compete à Coordenação-Geral a elaboração de parecer jurídico-econômico acerca do mérito do requerimento apresentado, que classificará a norma questionada sob um sistema de “bandeiras”, cujas consequências variam conforme a gradação da maneira indicada abaixo:
<ul>
<li>Bandeira Vermelha: aplicável a casos que se entende como abusivos, em contrariedade, portanto, ao art. 4º da Lei de Liberdade Econômica, enseja a necessidade de se oficiar os órgãos competentes e suas respectivas procuradorias jurídicas especializadas, assim como a Advocacia-Geral da União, para que se prossiga com análises de legalidade;</li>
<li>Bandeira Laranja: aplicável a casos em que se considera haver “fortes indícios da presença de abuso de poder regulatório que acarretem distorção concorrencial”, implica o envio de representação formal ao órgão responsável pela edição da norma objeto de análise com sugestão de alteração;</li>
<li>Bandeira Amarela: aplicável aos casos em que se considerar haver pontos suscetíveis a aperfeiçoamento, resulta na apresentação de proposta de medidas para a melhoria regulatória; e</li>
<li>Bandeira Verde: aplicável a casos em que não for constatado o abuso, na forma do art. 4º da Lei de Liberdade Econômica, o que demanda o encerramento e arquivamento da análise investigativa pela SEAE.</li>
</ul>
Em vista disso, o problema fundamental de tal proposta reside no fato de que o produto final do procedimento de avaliação é um parecer opinativo, sem caráter vinculante, que avalia a regulação econômica estritamente sob a ótica da promoção da concorrência.
Na medida em que não compete à SEAE a possibilidade de anulação ou alteração de normas infralegais editadas por terceiros, nem mesmo desempenhar a função de última instância a respeito de temas regulatórios, pode-se chegar a impasses que não contribuirão de fato para que se alcance o objetivo principal almejado pelo FIARC, notadamente o aperfeiçoamento regulatório.
Vale dizer, autoridades encarregadas de regulamentar atividades econômicas por definição editarão normas que implicam restrições à liberdade de iniciativa, tendo na promoção da concorrência apenas um dentre diferentes valores jurídicos a serem considerados no exercício da atividade regulatória. Por consequência, é bastante plausível que haja situações de discordância interpretativa, com a emissão de pareceres conflitantes por diferentes órgãos da Administração Pública.
E, nesses casos, em última análise, a única alternativa disponível seria a judicialização do regulamento objeto da consulta, transferindo o ônus decisório ao Poder Judiciário. Não somente isso, o provimento judicial invariavelmente recairá em duas alternativas: a anulação do regulamento impugnado, em casos de patente ilegalidade, que demandará a elaboração de novo regulamento; ou, alternativamente, a determinação à autoridade regulatória de revisão do regulamento considerado abusivo.
Do ponto de vista prático, o efeito é idêntico, sem a efetiva garantia de que a nova norma efetivamente atenderá aos padrões considerados adequados pela SEAE – reiniciando-se, portanto, o mesmo ciclo de revisão.
Em vista disso, o procedimento criado pelo FIARC representa uma evidente elevação dos custos de atuação estatal. Veja-se, a autoridade competente despende recursos e emite uma norma, que se torna objeto de consulta perante a SEAE. Esta, por sua vez, também mobilizará seus recursos para condução do procedimento de avaliação, requerendo, nesse caso, nova manifestação da autoridade.
No âmbito desse procedimento, a autoridade emissora da norma novamente despenderá recursos escassos para justificar suas escolhas regulatórias. Some-se a isso os possíveis custos relacionados a atuação de outros órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União ou o Ministério Público Federal.
Uma vez concluída a análise, volta-se a emissão de parecer opinativo jurídico-econômico pela SEAE que concluirá ou não pela adequação da norma submetida a sua consulta.
Nesse cenário, havendo diferenças de entendimento entre tais órgãos, ao interessado cabe unicamente utilizar o parecer da SEAE como subsídio técnico para lançar mão de alternativa da qual dispunha desde o início, isto é, a impugnação do ato considerado ilegal perante o Judiciário.
De tal modo, ao privilegiar a contestação de atos normativos e uma possível guerra de pareceres entre entes da administração, a FIARC torna regra o que deveria ser exceção. Assim, faz com que a medida de sucesso da iniciativa proposta siga a mesma lógica equivocada da contagem líquida de corpos em que, quanto maior o número de baixas infligidas a normas reputadas inadequadas por meio de sua anulação judicial, em tese mais bem sucedida seria a atuação da SEAE. É difícil de se identificar os benefícios concretos advindos dessa abordagem.
Não se trata aqui de refutar por completo a iniciativa proposta, mas tão somente de se ressaltar a necessidade premente de uma reorientação da instrução normativa que regulamentará a FIARC em direção a um desenho institucional que privilegiará a atuação prévia da SEAE para o aprimoramento do ambiente regulatório nacional. Essa é a lógica que embasa a atuação da SEAE ao contribuir com análises de impacto regulatório em temas setoriais ou com relação ao desenvolvimento da infraestrutura, por exemplo.
Isso porque a advocacia pública da concorrência deve assumir contornos eminentemente cooperativos e colaborativos, permitindo o intercâmbio de conhecimento e da expertise de diferentes órgãos encarregados do exercício da atividade regulatória – o que representa um ganho do ponto de vista institucional.
É justamente por esse motivo que chama a atenção o fato de que não há na proposta de instrução normativa qualquer dispositivo que discipline a possibilidade atuação coordenada entre a SEAE e outros órgãos ou entes administrativos.
Dito de outro modo, a atuação da SEAE deve ocorrer na origem, em colaboração direta com os responsáveis pela edição de normas de modo a permitir que reflitam de início as preocupações concorrenciais que podem advir de atos normativos e confiram maior estabilidade à regulação econômica.
Para tanto, algumas medidas se mostram possíveis. Primeiramente, uma alternativa viável para racionalizar a ação da SEAE seria o estabelecimento de planos de gestão que traçam metas e objetivos estratégicos que nortearão suas atividades dentro de um período pré-determinado, a exemplo do que ocorre com as agências reguladoras, nos termos dos artigos 17 a 21 da Lei nº 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras).
Assim pode-se identificar setores econômicos e temas prioritários que permitem racionalizar suas ações, em contraposição a uma atuação desordenada e sem objetivo específico, que pode resultar em uma enxurrada de requerimentos de todo tipo a serem apreciados pela SEAE.
Ao estabelecer focos claros de atuação, permite-se uma avaliação concreta de assuntos relacionados ao “custo Brasil” a que se refere a exposição de motivos da Consulta Pública, tornando mais fácil a adoção de soluções direcionadas para problemas normativos específicos (e não baseada em noções pouco claras de eficiência).
Outra importante medida é a celebração de convênios administrativos ou termos de cooperação com órgãos e autoridades para que se promova a revisão conjunta do estoque normativo existente e a colaboração para a edição de novas regras jurídicas a serem emitidas no futuro.
Essa forma de atuação a priori viabiliza o exercício eficaz da advocacia da concorrência e é certamente mais adequado às finalidades propostas pelo FIARC, na medida em que consagra o princípio da eficiência administrativa, por meio do emprego adequado de recursos escassos em prol da promoção da concorrência e da produtividade, e a segurança jurídica tão importante aos agentes regulados.
Do contrário, a prevalecer a dinâmica na forma originalmente proposta, corre-se o risco da criação de um Vietnã regulatório que lança a atividade de emissão de normas em um atoleiro de incertezas, fundamentado numa espécie de embate institucional voltado a promover a anulação de atos e normas pela via judicial e que se presta unicamente à proliferação de litígios custosos, sem que o objetivo fundamental de aprimoramento regulatório seja de fato alcançado.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Especificamente a relevância e interesse público do requerimento, o potencial impacto relevante concorrencial, juízo de conveniência e oportunidade, a capacidade administrativa da SEAE para dar seguimento ao trâmite e demais critérios considerados relevantes.

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JOTA

Vietnã regulatório lança a atividade de emissão de normas em um atoleiro de incertezas

Regulação estatal, FIARC e o Vietnã regulatório

Vietnã regulatório lança a atividade de emissão de normas em um atoleiro de incertezas