Oliver Vahrenholt

O colapso da empresa de pagamentos alemã Wirecard virou notícia no mundo todo. Em 18 de junho, a Ernst &amp; Young, auditora da Wirecard, declarou que não conseguiu “encontrar” 1,9 bilhão de euros nas contas da empresa e se recusou a assinar o balanço. Ao longo daquele dia, quase 7,5 bilhões de euros em capitalização de mercado foram erradicados. O COO da Wirecard, Jan Marsalek, foi demitido no mesmo dia e desde então está desaparecido. Ele é procurado por um mandado internacional; suspeita-se que ele esteja na Rússia ou em Belarus. No dia seguinte, o CEO Markus Braun se demitiu. Ele está sendo investigado pela polícia alemã sob suspeita de fraude e manipulação de mercado.  
Além de não encontrar precedentes na história do mercado de capitais alemão, esse é certamente um dos maiores escândalos financeiros no mundo desde o caso Enron. Para colocá-lo em perspectiva: a Wirecard foi tida na Alemanha como uma das principais empresas tecnológicas do país, fez parte do DAX 30 (as 30 empresas públicas mais importantes) e chegou a valer mais do que o Deutsche Bank. Como uma empresa de pagamentos de atuação global, foi regularmente citada como uma das estrelas da indústria FinTech na Alemanha. Havia grandes esperanças no país de que a empresa pudesse competir com players como PayPal, Adyen ou FIS; todas elas foram frustradas após as denúncias de fraude e manipulação de mercado. Em 25 de junho, a Wirecard entrou com pedido de insolvência.
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Contudo, há outros fatores por trás do caso além de fraude e manipulação de mercado. São evidentes as falhas na regulamentação aplicável e a má administração política. A Autoridade Federal de Supervisão Financeira alemã (Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht, “BaFin”) desempenhou um papel central nesse drama financeiro. Mas para entender esse papel é preciso antes dar um passo atrás.
Há anos a regulação da indústria FinTech pela BaFin segue o dogma “same business, same risks, same regulation”. De acordo com este princípio, a regulação deve ser “technology neutral”. Em outras palavras, a regulação financeira deve aplicar os mesmos critérios a todos os negócios independentemente da tecnologia aplicada em cada negócio individualmente. Parece justo. No entanto, na prática o que se tem visto essencialmente é que essa suposta neutralidade tem possibilitado ao regulador se esquivar de abrir o espaço regulado para novos serviços financeiros utilizando novas tecnologias sob a justificativa de que a regulação deve ser a mesma para todos independentemente de suas peculiaridades. Isso fez com que o espaço regulado fechasse suas portas para as FinTechs, empurrando esses atores para áreas não reguladas. E sempre que a BaFin é questionada sobre um eventual apoio e suporte a tecnologias inovadoras, a resposta padrão tem sido: „It is not one of BaFin’s tasks to promote innovation or investment. Nor does it conduct industrial policy”.
A postura é bastante diferente daquelas assumidas por outros países europeus e suas autoridades reguladoras. Por exemplo, Dinamarca, Holanda e mais recentemente a Áustria introduziram sandboxes regulatórias com o intuito de estimular a inovação e estudar novas abordagens tecnológicas. A Suíça, um centro financeiro associado à regulação prudente, introduziu isenções especiais às FinTechs, incluindo uma "licença bancária light". Uma abordagem semelhante é aplicada no Brasil, onde tanto a CVM quanto o BACEN introduziram uma sandbox regulatória e onde FinTechs de crédito podem obter autorização para operar como instituições financeiras desde 2018.
Enquanto isso, a ideia na Alemanha parecia ser: se a indústria FinTech for realmente superior aos serviços financeiros tradicionais, ela crescerá e terá sucesso suficiente para que eventualmente tenha que passar pelo procedimento regulamentar padrão. Até isso acontecer, porém, a regulação não deve dar um tratamento especial à inovação financeira.
Esta atitude de "wild west" em relação à indústria FinTech pode muito bem ter levado a autoridade reguladora a fechar os olhos em relação ao caso da Wirecard. Havia sinais de alerta desde anos atrás. Em 2008 e 2016, a empresa já havia enfrentado alegações de fraude financeira. Quando whistleblowers internos apontaram irregularidades nas contas da Wirecard em 2018, a empresa conduziu uma revisão interna e mais tarde, em fevereiro de 2019, os escritórios da Wirecard em Singapura foram objeto de buscas e investigação pelas autoridades locais. A empresa disse continuamente aos investidores e ao público que as investigações internas não encontraram qualquer má conduta grave e afirmou que as alegações contra ela, relatadas principalmente pelo Financial Times, eram enganosas, imprecisas e sem fundamento. A Wirecard se apresentou na época como vítima de manipulação de mercado. Enquanto a polícia de Singapura investigava a Wirecard, a BaFin, ao contrário, decidiu proibir o short selling das ações da empresa por dois meses - uma medida sem precedentes. Por iniciativa da BaFin, procuradores públicos em Munique chegaram até a iniciar investigações sobre uma possível manipulação de mercado, mirando um jornalista do Financial Times. Note-se: esse é a mesma BaFin que afirmava de não “conduct industrial policy".
Não é absurdo supor que estas decisões tenham sofrido influência política: a Wirecard era um national champion e sua história de sucesso não poderia ser colocada em xeque. Contudo, esse suposto protecionismo deixou de fora da equação um fator importante: o amparo da regulação, que nunca abrangeu a Wirecard e demais FinTechs, como já explicado acima.
Para que inovações financeiras tenham sucesso e, ao mesmo tempo, beneficiem o interesse público a regulação é essencial. A regulação não pode jamais ignorar a inovação e se esconder por trás do princípio da neutralidade tecnológica - porque a inovação acontecerá de qualquer forma.  É por isso que a regulação precisa enfrentar a inovação, ser curiosa sobre ela e se envolver com ela. A inovação só pode ser influenciada e controlada para adequá-la ao interesse público se for reconhecida como um desafio para a regulação financeira. É preciso manter expectativas claras em relação à inovação, criar espaços de inovação como sandboxes regulatórias e desenhar um caminho regulatório sequencial em direção às operações das fintechs com licença bancária plena. O BACEN está na vanguarda e declarou a inovação como um dos principais focos de seu regime regulatório. Está lançando incessantemente novas iniciativas, tais como o sistema de pagamentos instantâneos PIX e um modelo abrangente de Open Banking. O Brasil tem players inovadores como as empresas de pagamento StoneCo, PagSeguro, a plataforma de empréstimos Creditas e o banco digital Nubank. O regulador brasileiro aceitou os desafios postos pela inovação tecnológica no setor financeiro e desempenha um papel ativo na indústria. Enquanto isso, o governo e os órgãos reguladores alemães costumavam se referir a nomes como Wirecard e N26 e declarar: “olhe, nossa estratégia funciona - ninguém precisa de regulações específicas para o fenômeno FinTech”. Esta complacência foi parcialmente influenciada por uma confiança na eficácia da supervisão financeira alemão. O Ministro da Economia da Alemanha, Peter Altmaier, agora afirma: "Teríamos imaginado uma situação como esta em qualquer lugar - menos na Alemanha".  
O fato é que 1,9 bilhão de euros e um COO desapareceram e o escândalo chegou à arena política. Olaf Scholz, o Ministro da Fazenda da Alemanha e recém-nomeado candidato a chanceler pelos social-democratas, foi rápido em defender a agência reguladora alemã, mas com a mesma rapidez mudou seu tom quando ficou claro que houve deficiências, e agora exige reformas. Jornais relatam que apenas um funcionário da BaFin foi designado para auditar a Wirecard.  Os partidos da oposição pedem uma investigação parlamentar. Em razão do envolvimento de Scholz, o caso poderia inclusive afetar as eleições do próximo ano na Alemanha. Contudo, o protesto agora público chega bastante tarde e soa um pouco hipócrita, por duas razões:
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<li>Regulamentar o sistema financeiro é tarefa altamente complexa e os órgãos reguladores são cronicamente subfinanciados. A BaFin tinha orçamento anual para 2019 de pouco menos de 400 milhões de euros e empregava 2.722 funcionários, enquanto supervisionava um sistema financeiro com uma capitalização de mercado de aproximadamente 2,6 trilhões de euros e um volume de crédito privado de 1,7 trilhão de euros. Isso equivale a aproximadamente um funcionário supervisionando 1,6 bilhão de euros de direitos financeiros - valor muito próximo ao que agora está desaparecido no caso da Wirecard;</li>
<li>Relatórios recentes mostram que políticas autoridades alemãs estavam mais envolvidas no caso do que se sabia: desde 2019 o Ministro da Fazenda, Olaf Scholz, estava ciente de que havia alegações de manipulação de mercado contra a Wirecard, e ainda assim seu secretário de Estado teve pelo menos uma reunião com o CEO em 2019 sem protocolo e testemunhas. Também houve várias reuniões entre consultores da Wirecard e o governo alemão. A Wirecard queria que o governo ajudasse a empresa em seu plano de entrada no mercado chinês.</li>
</ul>
Infelizmente, o escândalo impacta negativamente a indústria FinTech alemã como um todo. Mas é importante lembrar que a tecnologia não é a culpada. Não houve nenhum algoritmo ou Robô Advisor envolvido, nenhuma moeda digital foi atacada por hackers e nenhuma plataforma de Crowdlending enfrentou uma crise de liquidez. O dano econômico foi causado por fraude financeira, possível manipulação de mercado e descumprimento das obrigações de divulgação - todas essas violações estão no escopo de supervisão da BaFin. Consequentemente, a Comissão Europeia já solicitou à Autoridade Europeia de Supervisão (ESMA) que examine possíveis deficiências na atividade regulatória da BaFin. 
Uma regulação eficaz e prudente não é obstáculo para o sucesso das inovações, mas um pré-requisito. A Wirecard supostamente depositou valores tão altos (metade do caixa em seu balanço) em contas fiduciárias administradas por trustees - o dinheiro que agora está faltando - porque a empresa tentou crescer em áreas onde não tinha licenças para operar. Isso só enfatiza o que já foi dito: a inovação acontecerá independentemente de haver regulação ou não. Por esta razão, melhor do que ignorar o tema da inovação financeira é reconhecer sua importância e seus desafios e criar esforços conjuntos para que se tenha uma regulação adequada a suas peculiaridades, tentando administrar seus riscos e desencadear seus benefícios - o Brasil e o BACEN podem servir de exemplo.

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JOTA

O escândalo é um fracasso político e regulatório. A Alemanha deveria aprender com o Brasil?


Regulação de FinTech gone bad – o escândalo da alemã Wirecard

O escândalo é um fracasso político e regulatório. A Alemanha deveria aprender com o Brasil?