Diogo R. Coutinho

Carolina Saito

Quando se pode dizer que um cartel persistiu por muitos anos, isto é, que se trata de um conluio anticompetitivo continuado e de longa duração? Quando se identifica um suposto cartel longevo e ininterrupto, quais presunções podem ser admitidas para comprovar tal característica? Perguntas como essas, cujas respostas não são nada triviais, vêm mobilizando a doutrina do direito antitruste há algumas décadas.
Isso porque a duração de um conluio anticompetitivo é um dos elementos para caracterizá-lo (ou não) como um cartel hardcore. Além disso, o tempo de duração de um cartel é um fator que impacta a dosimetria da sanção que sobre ele pode recair, bem como pode afetar o cálculo de prazos prescricionais. Por isso, identificar se se trata de uma conduta apenas (que se estendeu no tempo) ou de condutas múltiplas (que podem ser distintos cartéis) faz diferença tanto do ponto de vista de quem acusa e investiga, quanto do ponto de vista de quem defende.
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No Brasil, a experiência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autoridade responsável pela defesa da concorrência no país, tem sido no sentido de considerar a longevidade de colusões para caracterizar um cartel como hardcore,<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> assim como para o cálculo da dosimetria de multas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> e para orientar os debates sobre prescrição.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Porém, não se verifica a existência de um padrão de análise objetivo e com parâmetros pré-definidos para decidir sobre a continuidade da conduta. Isso tem levado ao emprego de presunções por parte da autoridade antitruste e a respeito delas tampouco há clareza no debate nacional. Mesmo nos casos em que há alguma discussão em relação à continuidade (ou tempo de duração) da conduta de cartel, não se encontra um padrão de análise consolidado para pautar a discussão.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
A doutrina SCI
Uma das mais conhecidas doutrinas aplicáveis a discussões sobre a longevidade e continuidade de cartéis, que pode auxiliar na definição de parâmetros para a constatação (ou não) de condutas anticompetitivas continuadas, é a teoria da infração única e continuada (SCI - single and continuous infringement). A doutrina SCI vem sendo construída há mais de trinta anos pela Comissão Europeia – desde o caso Polypropylene, de 1986 – e, quando se trata de investigar acusações de cartel de longa duração, se tornou referência importante na literatura antitruste.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Na ocasião de análise do referido caso, a Comissão Europeia – autoridade encarregada de aplicar o direito da concorrência no âmbito da União Europeia – chegou à conclusão de que 15 empresas fabricantes de produtos petroquímicos haviam criado um sistema complexo (composto por contratos informais, reuniões, mecanismos de fixação de preço e divisão de mercado) destinado a controlar o preço do polipropileno na Europa, entre 1977 e 1982.
Em vez de tratar tais infrações separadamente, a Comissão entendeu que elas estavam interligadas por um objetivo comum, de modo que podiam ser caracterizadas (e então punidas) como uma infração do tipo SCI. A partir de então, foram adotados parâmetros pré-definidos para analisar os casos de conduta continuada.
De acordo com a jurisprudência formada, para que um conjunto de práticas espraiadas ao longo de um certo período possa ser considerada um cartel – e sob essa forma punível como uma única conduta – deve haver pelo menos dois tipos de ligações: (a) uma ligação de natureza objetiva e (b) outra de natureza subjetiva. A ligação do primeiro tipo (objetiva) pressupõe a existência, na conduta supostamente praticada por empresas concorrentes, de um objetivo comum.
A segunda ligação (subjetiva) diz respeito à consciência, por parte das empresas envolvidas, de que elas são parte de uma conspiração mais ampla. Para que se demonstre a ligação objetiva (meta ou objetivo comum), há, ainda, dois requisitos: as práticas supostamente anticompetitivas devem possuir (a.1.) um vínculo de identidade (possuir características comuns) e (a.2.) um vínculo de complementariedade (isto é, são complementares em sua natureza).
O vínculo de identidade (a.1.), por seu turno, relaciona-se com: (i) a similitude dos objetivos das práticas ou condutas em questão (quando tais objetivos são idênticos, pode-se supor uma meta ou objetivo comum), (ii) a similitude da natureza dos bens ou serviços envolvidos (quando tais bens ou serviços forem idênticos, pode-se supor uma meta ou objetivo comum), (iii) a similitude da natureza dos participantes (quando o número de empresas de mesma natureza entre dois cartéis for limitado, não se pode presumir uma meta ou objetivo comum), (iv) a similitude das regras de implementação do suposto cartel (quando regras muito específicas de implementação do cartel forem identificadas como similares em diferentes territórios, pode-se supor uma meta ou objetivo comum), (v) a similitude dos escopos geográficos das práticas ou condutas em questão (quando tais escopos forem os mesmos, pode-se supor uma meta ou objetivo comum) e, por fim, com (vi) a similitude das práticas na cronologia em questão, ou seja, a continuidade, sendo a ausência de interrupção no tempo o requisito essencial de um cartel continuado (SCI).
Já para que se demonstre o vínculo de complementaridade (a.2.), é preciso que as práticas investigadas não apenas tenham um mesmo propósito, como também sejam, como dito acima, complementares em sua natureza. Isto significa que cada prática investigada deve contribuir, por meio da suposta interação colusiva entre os agentes, para que os efeitos anticompetitivos almejados pelos envolvidos sejam alcançados.
<blockquote class="jota-article__eye">Se as práticas não forem complementares, pode-se então dizer, que não configuram necessariamente uma mesma conduta (única e continuada), mesmo que se constate que mais de um cartel existiu.</blockquote>
Em relação ao segundo tipo de ligação, a de natureza subjetiva (b. consciência de que há uma conspiração mais ampla), também há dois elementos a serem analisados: (b.1.) é preciso considerar em que medida as empresas intencionam contribuir, com sua própria conduta, com o projeto mais amplo perseguido pelos demais participantes do cartel e (b.2.) em que medida os agentes envolvidos estavam cientes da ilicitude dos atos dos demais participantes, ou poderiam, ao menos, prever que ilícitos estariam sendo cometidos.
Quanto ao primeiro requisito (b.1. contribuir de forma intencional com o projeto mais amplo do suposto cartel), estabeleceu-se o entendimento de que, havendo intenção de participar em ao menos um elemento da conduta em questão, bastando que tal participação seja mínima, pode-se presumir o envolvimento da parte com o cartel.
Quanto ao segundo requisito (b.2. ciência da ilicitude dos atos dos demais participantes do suposto cartel), entende-se que a mera possibilidade de se cogitar que há ilícitos envolvidos nos atos praticados já basta para implicar o agente participante. Nesse sentido, uma empresa pode ser eximida de responsabilidade se se distanciar de forma inequívoca do cartel, de forma tal que seus membros se convençam de que tal agente econômico não compactua com os objetivos mais gerais do conluio.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Os parâmetros apresentados pela doutrina SCI formam um padrão de análise que, além de auxiliar a construção do entendimento da autoridade antitruste e trazer maior previsibilidade para as suas decisões, iluminam que tipos de presunção podem ser admitidas para se demonstrar que um suposto cartel configura um SCI.
Presunções admitidas
O uso de presunções em investigações de condutas potencialmente anticompetitivas não é novidade no debate antitruste e não diz respeito apenas à definição de carteis de longa duração. Sobre a adoção de presunções para investigações antitruste em geral, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) aponta que cautela e comedimento são recomendáveis.
Além disso, deixa claro que, “para alcançar um equilíbrio adequado entre enforcement e custos do erro (error costs) pode ser apropriado adotar presunções ao mesmo tempo em que se assegura que elas podem ser refutadas pela evidência de que a conduta não é anticompetitiva”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Devem, assim, admitir prova em contrário, sob pena de impedir os agentes investigados de oferecerem sua defesa de forma ampla, com violação do devido processo legal.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>
Ou seja, a autoridade administrativa deve sopesar com parcimônia o uso de presunções porque elas, como espécies de provas indiretas,<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> podem estar associadas a “falsos positivos” (leia-se, condenação de um inocente)<a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> se não estiverem lastreadas em evidências que comprovem o objeto da acusação, para além de qualquer dúvida razoável.
Aplicando-se esse entendimento à análise de condutas colusivas supostamente continuadas, pode-se concluir que presunções têm utilidade limitada e não podem servir para, aleatoriamente, preencher hiatos causais, documentais e cronológicos, em especial quando estiveram apoiadas em provas indiretas e em uma cronologia fragmentária (fatos esparsos e independentes entre si) que não se traduz em uma sequência de eventos concatenados.
Isso porque se presunções forem adotadas de forma meramente retórica para preencher lacunas objetivas ou subjetivas e, com isso, conferir sentido, como conta de chegada, a uma narrativa ao final da qual se conclui que se tratou de um cartel único e longevo – sem considerar os requisitos do cartel do tipo SCI sejam identificados –, a condenação pode e deve ser questionada.
Por essa razão, é crucial entender, com base na teoria do SCI ou em eventuais aperfeiçoamentos que ela sofra, que tipo de presunções se pode admitir para demonstrar a existência de um cartel único, decorrente de uma conduta colusiva continuada.
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://youtu.be/roD5SwCzhLI
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Exemplos sobre o entendimento do CADE quanto à necessidade de se demonstrar três elementos para considerar um cartel como sendo hardcore (perenidade, institucionalidade e existência de mecanismos de monitoramento e punição em caso de desvio quanto ao acordado) podem ser vistos nos votos proferidos nos seguintes casos: Processo Administrativo nº 08012.007011/2006-97, julgado em 23 de setembro de 2020; Processo Administrativo nº 08012.004422/2012-79, julgado em 8 de agosto de 2018; Processo Administrativo nº 08012.004674/2006-50, julgado em 4 de julho de 2018; Processo Administrativo nº 08700.001859/2010-31, julgado em 4 de julho de 2018; Processo Administrativo nº 08012.002812/2010-42, julgado em 13 de junho de 2018; Processo Administrativo nº 08012.005882/2008-38, julgado em 23 de maio de 2018; Processo Administrativo nº 08012.001376/2006-16, julgado em 23 de maio de 2018; e Processo Administrativo nº 08012.006130/2006-22, julgado em 16 de agosto de 2017.
[1] Cf. exemplo do debate travado no Processo Administrativo nº 08012.003970/2010-10, cujo julgamento foi finalizado em 15 de abril de 2020.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Quando do cálculo da multa, o CADE considera a duração de um cartel como critério para avaliar a gravidade da infração e o grau de lesão ou perigo de lesão (art. 45, I e V da Lei nº 12.529/2011).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. exemplo do debate travado no Processo Administrativo nº 08012.003970/2010-10, cujo julgamento foi finalizado em 15 de abril de 2020.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Exemplo recente sobre a discussão quanto à continuidade da colusão, mas sem a adoção de um padrão claro para essa análise, pode ser visto no Voto Relator do Conselheiro Paulo Burnier (SEI 0635762), no voto vista da Conselheira Lenisa Prado (SEI 0718337 e SEI 0745684) e no voto vista do Conselheiro Luiz Augusto Hoffmann (SEI 0744428), todos proferidos no Processo Administrativo nº 08012.003970/2010-10, cujo julgamento foi finalizado em 15 de abril de 2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> 86/398/EEC: Commission Decision of 23 April 1986 relating to a proceeding under Article 85 of the EEC Treaty (IV/31.149 - Polypropylene), disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:31986D0398&amp;from=EN
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Cf. o documento Single Continuous Infringement, disponível em <a href="https://www.steptoe.com/images/content/6/0/v1/6045/88_-_Single_continuous_infringement.pdf">https://www.steptoe.com/images/content/6/0/v1/6045/88_-_Single_continuous_infringement.pdf</a>. Cf. ainda, The Single and Continuous Infringement Cartel Concept Remains Alive in the European Community, disponível em https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=f871ebe9-2085-422f-b168-894bf00f154a
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> OCDE (2018). “Executive Summary of the Roundtable on Safe Harbours and Legal Presumptions in Competition Law”, p. 3, tradução livre.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Esse, inclusive, é o entendimento da Conselheira Paula Azevedo, segundo a qual a prova indireta só pode ser aceita se não for contrariada por contraprova, cf. Voto-vista Conselheira Paula Azevedo no Processo Administrativo nº 08012.004422/2012-79, julgado em 8 de agosto de 2018.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Resumidamente, provas diretas são aquelas por meio das quais o juiz (ou as Conselheiras e Conselheiros do CADE) consegue verificar o fato a provar (quando se trata de apuração de cartel, as provas diretas comprovam, essencialmente, a existência clara do acordo ilícito perpetrado, bem como dos mecanismos de monitoramento e sanção adotados pelos partícipes). Enquanto as provas indiretas ou indiciárias referem-se, mediatamente, ao fato a ser comprovado. Por isso, estas segundas são entendidas como evidências por meio das quais é possível provar outros fatos e circunstâncias, isto é, por meio das quais o juiz (ou o CADE) consegue, ou não, deduzir o fato a ser provado (quando se trata de apuração de cartel, são aquelas evidências que não trazem demonstração direta ou cabal da existência, das características, ou dos participantes de um acordo anticompetitivo, mas, a depender do conjunto probatório disponível, podem corroborar sua plausibilidade e, em alguns casos excepcionais, permitir à autoridade antitruste inferir com elevado grau de certeza a existência do cartel).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> OCDE (2018), cit p. 3.

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JOTA

É crucial entender que tipo de presunções se pode admitir para demonstrar a existência de um cartel único

Um ou uns? cartéis de longa duração e o uso de presunções

É crucial entender, com base na teoria do SCI, que tipo de presunções se pode admitir para demonstrar a existência de um cartel único