Raquel Pimenta

Catherine Greene

No dia primeiro de junho, em meio à crise gerada pela greve dos caminhoneiros, o presidente da Petrobras renunciou a seu cargo. O pedido de demissão foi feito com pregão aberto e gerou perdas às ações da companhia. Deveria o anúncio ser feito com pregão fechado para evitar prejuízos à estatal? Também surgiram rumores de que a renúncia abriria a possibilidade de assunção de cargo em grupos privados. Ao se descompatibilizar, quando o agente público pode assumir cargo no mercado?
Muito além de respostas e condutas específicas, o caso ilustra a complexidade do tratamento de conflitos de interesses de funcionários da alta administração, isto é, o regramento do embate entre deveres públicos e interesses privados do indivíduo ocupante de cargo público.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA PRO: <a href="https://www.jota.info/pro/degustacao-poder">Entenda o cenário institucional com o JOTA Poder. Seguimos de perto tribunais superiores, agências reguladoras, Congresso, Poder Executivo e legislativos estaduais e municipais para reportar informações públicas de impacto. Experimente o serviço que tem ajudado empresas e atores do mercado financeiro!</a></li>
</ul>
Conflitos de interesses podem se apresentar de diversas formas: receber presentes de quem tenha interesse em decisão pública, atuar como intermediário de interesses privados perante órgãos públicos, ou utilizar informações privilegiadas obtidas em razão de função pública. Igualmente, podem se manifestar em diversos momentos: na assunção do cargo, durante o desempenho das atividades e após sua desincompatibilização, quando o agente pode voltar a atuar perante a administração pública. 
Neste sistema, nem todo o interesse privado é problemático. Ele se torna relevante apenas quando interfere na relação estabelecida entre a sociedade e a administração pública, na relação principal-agente. Em outras palavras, o objetivo de políticas de prevenção de conflitos de interesse é preservar a integridade das políticas públicas e das decisões da administração pública, garantindo sua legitimidade perante a sociedade. 
No Brasil, a construção do arcabouço jurídico para monitorar e punir situações de conflito de interesse foi incremental. Primeiro, surgiram normas e códigos de ética. Por meio do Decreto 1.171 de 1994, foram criadas comissões de ética para implementá-los. Atualmente, existem ao menos 200 comissões de ética distribuídas pela administração federal. 
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/as-maos-livres-nas-indicacoes-para-as-agencias-12062018">As mãos livres nas indicações para as agências</a></li>
</ul>
Em 2000, foi instituído o Código de Conduta da Alta Administração Federal (CCAAF), aplicável à alta cúpula do Poder Executivo Federal, como Ministros de Estado, secretários-executivos, presidentes e diretores de empresas estatais. O CCAF se baseou na ideia de que standards mais rigorosos de conduta para o topo hierárquico dariam o tom para os agentes subordinados, se disseminando pela administração pública. 
Apesar de abarcar poucos, o CCAAF trouxe inegáveis avanços, aperfeiçoando deveres de informação e transparência e regulando situações como propostas de trabalho futuro no setor privado após o exercício de cargo público. O CCAAF estipulava período de quarentena de 4 meses contados da exoneração, período no qual o agente público não poderia exercer atividade privada que importasse em atuação junto ao órgão anteriormente ocupado ou, ainda, que se aproveitasse do relacionamento e das informações obtidas no desempenho da função pública. A Comissão de Ética Pública (CEP) vinculada à Presidência da República foi criada para monitorar a aplicação do CCAF.
Em 2013, após anos de pressão internacional, o Brasil aprovou a Lei 12.813, mais conhecida como a Lei de Conflito de Interesses. Ela define claramente que conflito é “a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”. Também estipula quais são suas configurações durante e após o exercício do cargo, expandindo sua aplicação para todos aqueles que tenham acesso à informação privilegiada. Os casos não monitorados pela CEP ficam sob competência da Controladoria-Geral da União, atual Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União (CGU). A Lei, ainda, aumenta o período de quarentena para 6 meses e considera conflito de interesse um ato punível conforme a Lei de Improbidade Administrativa.
A Lei de Conflito de Interesses não é um ponto de chegada na construção do arcabouço jurídico brasileiro e não responde muitas das perplexidades do sistema e de seus casos concretos. Ao longo do tempo, o Brasil sobrepôs camadas de regulação sobre o assunto gerando um sistema fragmentado, composto por comissões de ética, CEP e CGU. Vale lembrar: tais instituições abarcam apenas o Poder Executivo Federal, uma vez que a Lei não se aplica aos Poderes Legislativo e Judiciário, segmentando, ainda mais, a regulação da matéria.
Tal multiplicidade dificulta a comunicação clara aos agentes públicos sobre o que é esperado deles, o compartilhamento de dados financeiros e patrimoniais, e, eventualmente, a identificação e punição de atos indevidos. Traz enormes desafios de construção de capacidade institucional para tantas autoridades dispersas. Em última análise, pode impossibilitar a própria avaliação da efetividade do sistema pelas suas instituições integrantes. 
Os desafios do sistema não estão restritos ao número de instituições que dele participam. A Lei de Conflitos de Interesses não responde o que fazer com casos em que a confusão entre deveres públicos e interesses privados comporta maior complexidade e áreas cinzentas. Pouco avança, por exemplo, na identificação de riscos específicos a cada cargo ou área de atuação, o que poderia exigir regras distintas para o tratamento adequado do conflito de interesses, como, por exemplo, eventual extensão de período de quarentena.
Se há boas definições de conflito de interesses aplicáveis ao Executivo Federal, mas os demais Poderes e entes federativos podem estabelecer regramentos diversos; se existem várias camadas de regulação, mas lacunas em casos complexos; se as autoridades competentes para monitorar a aplicação das regras são múltiplas, mas desigualmente capacitadas, então os problemas do sistema se agravam. Como consequência, a construção institucional feita ao longo das últimas décadas é, a todo momento, posta à prova. 
Se tais desafios da disciplina de conflito de interesses não forem enfrentados, o sistema como um todo pode perder credibilidade, gerando desconfiança da sociedade em relação às ações e motivações dos agentes públicos. Coloca-se em risco a legitimidade da tomada de decisão de políticas públicas necessárias ao desenvolvimento do país.

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A Lei de Conflito de Interesses não responde muitas das perplexidades do sistema e de seus casos concretos

Os próximos desafios à prevenção a conflitos de interesses

A Lei de Conflito de Interesses não responde muitas das perplexidades do sistema e de seus casos concretos