Octavio Penna Pieranti

Um estudo recém-publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Avaliação da OCDE sobre Telecomunicações e Radiodifusão no Brasil 2020, recoloca em debate o modelo regulatório das comunicações no Brasil. A divisão de competências da administração pública brasileira é a mais adequada para a regulação de um cenário convergente, no qual os mesmos agentes econômicos desempenham simultaneamente diversas atividades e em que não são mais totalmente claros os limites que separavam radiodifusão de TV por Assinatura e de outras plataformas de distribuição de conteúdo?
A resposta da OCDE é clara: não.  Dentre as diversas recomendações apresentadas no estudo, destaca-se a seguinte: “a criação de um regulador convergente e independente ajudaria a simplificar o regime regulatório e abordar a nova realidade convergente. Uma única entidade deveria outorgar espectro para os serviços de radiodifusão e de telecomunicação”.
Antes de seguir adiante, é preciso abrir parênteses para situar a importância deste estudo – afinal, não se trata de mais um estudo, em que mais uma entidade ou autor aponta problemas no modelo regulatório brasileiro. Como é notório, o Brasil vem pleiteando formalmente ingresso na OCDE desde 2017, depois de anos de parcerias pontuais. Passou, desde então, por exemplo, a contabilizar e divulgar os instrumentos normativos da organização internacional que já considerava cumprir, prontificando-se a estudar sua adesão aos demais.
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Nesse processo, o governo federal brasileiro contratou peer reviews da OCDE para diferentes setores econômicos, sendo que um deles resultou no estudo mencionado. Em um contexto normal, as recomendações de uma organização do porte da OCDE já chamariam atenção; no contexto atual, em que o Brasil se esforça para atender práticas defendidas pela organização, as novas recomendações ganham ainda mais força.
<blockquote class="jota-article__eye">A defesa de um órgão regulador único das comunicações, com competência inclusive para outorgar, não é um tema novo.</blockquote>
Até 1997, o Ministério das Comunicações era o responsável por formular e implementar políticas públicas e regular o setor. Naquele ano, o governo federal concluiu uma reforma do modelo que envolveu a aprovação de uma emenda constitucional (nº 8/95); de uma nova lei mínima para as telecomunicações (nº 9.295/96); da chamada Lei Geral de Telecomunicações (LGT - lei nº 9.472/97); e a criação da Agência Nacional de Telecomunicações, que viria a regular o setor.
Com essas medidas, tomadas com o objetivo principal de privatização do Sistema Telebrás (ocorrida em 1998), o governo federal criou um modelo regulatório artificial em diversos sentidos. Radiodifusão e TV por Assinatura, do ponto de vista técnico, sempre foram serviços de telecomunicações, mas foram, em aspectos cruciais, ignoradas pela LGT. A Anatel herdou do Ministério das Comunicações competências para expedir outorgas de serviços de telecomunicações (incluindo TV por Assinatura), mas não para os de radiodifusão.
A fiscalização desses ficou repartida entre ministério e agência, enquanto a dos demais serviços de telecomunicações (novamente incluindo TV por Assinatura) passou a ser de responsabilidade exclusiva da Anatel. Novas formas de distribuição de conteúdo audiovisual, como plataformas que faziam uso da internet, viriam a ser tratadas como serviços de valor adicionado (SVA), o que, na prática, criou barreiras a eventuais tentativas de regulação dessas iniciativas.
Diversos pesquisadores já ressaltaram que esse modelo regulatório foi o proposto e aprovado não por ser o melhor tecnicamente, mas por viabilizar a aprovação rápida dos novos marcos legais que possibilitaram a privatização do Sistema Telebrás. Optou-se por evitar conflitos com o empresariado da radiodifusão, preservando o modelo regulatório com o qual esse segmento já estava acostumado, com algumas modificações que não lhe eram centrais.
Tentou-se rever esse cenário. No fim da década de 1990, o plano do ministro Sérgio Motta, interrompido por sua morte, seria a aprovação de novas leis gerais para a radiodifusão e para os serviços postais, que levariam a Anatel a se transformar no órgão regulador único. De fato, os sucessores de Motta trataram de minutas de textos legais para esses setores e a Anatel chegou a abrigar, em seus quadros, servidores e empregados públicos com experiência profissional nas áreas postal e de radiodifusão. Enquanto o cenário não avançava, a Ancine foi criada, em 2001, com competências relacionadas principalmente ao fomento do setor audiovisual.
Nos anos seguintes, a divisão de atribuições na regulação das comunicações continuou na pauta. Não vingou a proposta de ampliar as competências da Ancine, transformando-a na Ancinav, no entanto a agência passou a desempenhar atividades regulatórias inequívocas a partir da promulgação de nova lei para a TV por Assinatura (nº 12.485/11). Assim, a Ancine passou a fomentar e a regular, situação atípica no cenário internacional, notadamente entre os países que integram a OCDE. A proposta de órgão regulador único, ora retomada, não inclui as atividades de fomento. Essas devem continuar existindo, sendo desempenhadas pela própria Ancine ou por outra entidade que venha a sucedê-la.
Já o órgão regulador único, no cenário traçado pela OCDE, acumularia as competências da Anatel; parte das desempenhadas pela Ancine, no que tange à regulação da TV por Assinatura; e parte das do Ministério das Comunicações, no que diz respeito a outorgas de radiodifusão e à regulação do setor, permanecendo o ministério responsável pela formulação de políticas públicas de telecomunicações (nesse conceito incluídas, novamente, radiodifusão e TV por Assinatura). Grosso modo, é a retomada de proposta que habita as discussões sobre o setor há mais de duas décadas.
<blockquote class="jota-article__eye">Há, claro, diversos desafios para se implementar o modelo recomendado pela OCDE. Os mais evidentes dizem respeito ao processo legislativo em si, aí envolvido o consenso mínimo que deve ser encontrado para a aprovação de uma mudança dessa magnitude. Mas há outros.</blockquote>
Um deles já havia sido debatido, em 2010, quando o governo federal instituiu grupo de trabalho formado por diversos órgãos para tratar de um esperado novo marco regulatório das comunicações. Entrevistei o coordenador do grupo, o ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, Franklin Martins, para meu livro Memória das Comunicações no Brasil <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. O ex-ministro lembrou que parte dos representantes do GT defendeu a criação de um órgão regulador único, enquanto outros sugeriram um órgão regulador para infraestrutura e outro para conteúdo (em ambos os cenários, o fomento à produção audiovisual deveria ser atribuição de outra entidade).
O governo optou pelo segundo modelo: “Por que essa solução prevaleceu? Porque, se fosse uma agência só, o conteúdo seria tratado pela Anatel. E, como essa agência tem uma vasta tradição de lidar com infraestrutura, a regulação de conteúdo tenderia a desaparecer ali dentro, seria um rabicho da Anatel”.
A mudança cultural talvez seja mais palatável hoje, quando já parece ser evidente a necessidade de se regular considerando a perspectiva do cidadão, ou seja, a qualidade e a diversidade dos conteúdos aos quais ele tem acesso, sendo a infraestrutura o meio para se atingir esse fim. Não por acaso, diversos países integrantes da OCDE, tais como Estados Unidos e o Reino Unido, contam com órgãos reguladores responsáveis por infraestrutura e conteúdo.
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<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/regulacao">Tudo sobre Regulação</a></li>
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Esse modelo, aliás, tem o condão de gerar expectativas positivas sobre outras recomendações formuladas pela OCDE em seu relatório. Por exemplo, quanto ao sistema público de radiodifusão, a OCDE recomendou “fortalecer o sistema público de radiodifusão nacional ao garantir financiamento suficiente e a independência editorial das emissoras públicas, incluindo a EBC”. Em paralelo, demonstrou preocupação com a falta de compartilhamento de infraestrutura entre emissoras públicas, que possibilitariam o aumento de sua cobertura, e recomendou a revisão do modelo de governança da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), alterado pela lei nº 13.417 de 2017, decorrente de uma das primeiras medidas provisórias do governo Temer.
Dentre outras providências, essa lei extinguiu o conselho curador da EBC e o instituto do mandato fixo para seu diretor-presidente, a despeito de mecanismos efetivos de controle social e estabilidade de dirigentes serem princípios pacíficos da radiodifusão pública no cenário internacional. O órgão regulador único seria presumivelmente capaz de atuar, ao mesmo tempo, no que se refere à infraestrutura, ao conteúdo e à governança do sistema público de radiodifusão, encarando os problemas como partes de um todo indissolúvel – mais uma vez, como ocorre no cenário internacional.
Assim, é saudável e necessária a retomada do debate sobre um órgão regulador único para o setor das comunicações no Brasil. Depois de anos de sucessivas expectativas frustradas, resta aguardar se será possível dizer: “olha ele aí!”
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O episódio 42 do podcast Sem Precedentes analisa as acusações de Donald Trump questionando a legalidade do pleito eleitoral nos EUA. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=xRgH-5h1gH8&feature=emb_title
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível para download gratuito em https://faclivros.wordpress.com/2019/03/19/memoria-das-comunicacoes-no-brasil-entrevistas-e-a-nova-obra-da-fac-livros/

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JOTA

Há diversos desafios para se implementar o modelo recomendado pela OCDE

OCDE resgata o órgão regulador único para as comunicações brasileiras

OCDE resgata o órgão regulador único para as comunicações brasileiras. Mudança talvez seja mais palatável hoje. Leia em artigo