Diogo R. Coutinho

Felipe Moreira de Carvalho

Iagê Zendron Miola

A autointitulada “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica” (lei 13.784/2019) tem grande potencial de causar o desmonte de valiosas capacidades estatais e de políticas públicas no país. Como já apontamos<a href="https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/a-regulacao-e-a-agenda-do-desmonte.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer"> em outros textos</a>, um dos instrumentos mais eficazes de que essa norma dispõe para isso é o chamado “abuso de poder regulatório” (art. 4º), um tipo esdrúxulo e jabuticabesco de controle ex post da regulação.
No lusco-fusco, esse dever de evitar abusos regulatórios, direcionado aos órgãos reguladores, foi capturado pelo Ministério da Economia, por intermédio de sua Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade (SEAE/SEPEC/ME), que instituiu a chamada Frente Intensiva de Avaliação Regulatória e Concorrencial (FIARC), pela <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/instrucao-normativa-seae-n-97-de-2-de-outubro-de-2020-281069878" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Instrução Normativa Seae nº 97/2020</a>, com a finalidade de analisar as possíveis “distorções concorrenciais decorrentes da regulamentação de normas públicas”.
Por meio desse aparato, a mais nova ofensiva governamental às agências reguladoras veio no início deste mês de março, quando a SEAE “<a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2021/marco/ministerio-da-economia-acata-primeiras-denuncias-de-abuso-regulatorio" target="_blank" rel="noopener noreferrer">acatou</a>” denúncias feitas por agentes regulados no âmbito do FIARC, direcionando seu tacape <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/inova-e-acao/regulacao-abusiva-uma-faca-no-pescoco-22102019">disciplinador</a> à ANTT e à ANTAQ. Em paralelo, a secretaria abriu <a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/2021/marco/economia-abre-consulta-publica-com-contribuicoes-anonimizadas-sobre-a-atuacao-de-reguladores-federais" target="_blank" rel="noopener noreferrer">consulta pública</a>, na forma de <a href="https://www.gov.br/economia/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/tomada-de-subsidios/2021/tomada-de-subsidios-no-02-2021" target="_blank" rel="noopener noreferrer">tomada de subsídios</a>, para obter informações sobre a atuação de reguladores federais.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> 
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Por meio dessa iniciativa, a SEAE pretende receber “contribuições” que apontem a ocorrência de situações em que o “órgão ou entidade reguladora possa estar atuando de maneira indevida”. Essas contribuições, segundo o edital, servirão para balizar as atividades da SEAE no desenvolvimento de “estudos e programas relacionados à disseminação de boas práticas e melhoria regulatória e concorrencial”. E, para “garantir transparência na divulgação das informações recebidas”, diz o texto oficial, “serão aceitas as contribuições realizadas de maneira anonimizada (grifamos)”.
A Associação Brasileira de Agências de Regulação (ABAR), que congrega as agências reguladoras nacionais, se <a href="https://abar.org.br/2021/03/10/abar-divulga-posicionamento-sobre-consulta-publica-da-sepec-me/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">insurgiu</a> com indignação à iniciativa da SEAE. Para a <a href="https://www.agenciainfra.com/blog/consulta-publica-para-apurar-supostos-abusos-de-agencias-reguladoras-e-desastrosa-diz-abar/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">entidade</a>, a solução para eventuais deficiências e excessos regulatórios deveria ser outra: “o caminho do <a href="https://abar.org.br/2021/03/11/nota-da-abar-questionando-medida-da-sepec-me-repercute-na-midia/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">diálogo</a>, direto e transparente, entre o Poder Público e os entes que atuam no ambiente regulatório brasileiro, com vistas à construção de uma agenda comum de fortalecimento da regulação”.
A recente iniciativa da SEAE sugere a institucionalização de uma problemática variante de advocacia da concorrência – a chamada advocacy “com dentes” – que vai na contramão de uma concepção de aprimoramento regulatório por meio do diálogo institucional. O viés da atuação da SEAE denota uma perspectiva adversarial e de caráter punitivista em relação ao Estado regulador – viés este, aliás, sob alguns aspectos, de duvidosa legalidade – que institui uma espécie de disque-denúncia regulatório.
Na Tomada de Subsídios, a SEAE, na forma de “situações exemplificativas”, acaba por tipificar diferentes comportamentos de reguladores como “abusivos”. Entre os exemplos ali descritos estão as situações em que o regulador “ultrapassa sua competência regulatória”, adentrando áreas “potencialmente fora” de seu escopo, assim como casos em que a agência “ultrapassa sua competência regulatória ao definir “conceitos amplos ou inexatos para aumentar o escopo de sua atuação”, entre outros.
<blockquote class="jota-article__eye">Ao elencar essas “situações”, a secretaria emite inequívoca sinalização aos agentes econômicos de que formará juízos substantivos sobre a atuação das agências reguladoras.</blockquote>
Pela lógica da Tomada de Subsídios, essa avaliação servirá para que a SEAE produza “estudos e programas”, mas também para que, como se fosse uma autoridade investigadora, encaminhe o resultado da sua análise a órgãos que possam dar os eventuais desdobramentos administrativos.
Tanto é assim que, no mesmo texto da Tomada de Subsídios, há a previsão de que “casos relatados que potencialmente contenham aspectos de juridicidade ou conduta serão encaminhados à Advocacia-Geral da União e à Corregedoria-Geral da União para apreciação e tomada de medidas conforme suas competências”.
Assim, é bastante provável que a Tomada de Subsídios seja entendida pelos agentes econômicos como um foro de recebimento de denúncias. Além de problemática do ponto de vista de uma “política regulatória” – já que certamente contraproducente pelo antagonismo gerado – tal feição conferida pela SEAE à consulta é derivada de interpretação voluntariosa e tecnicamente imprecisa da lei de liberdade econômica.
A pretensão da SEAE em assumir um posto de xerife da regulação, com olhos centrados apenas nos supostos “tipos” de condutas abusivas previstas nos incisos do art. 4º, desconsidera o próprio caput do dispositivo, que prevê que o dever posto pela Lei é direcionado ao próprio órgão regulador, e consiste em evitar, exceto se em cumprimento da Lei, o abuso de poder regulatório de forma a, indevidamente, produzir os resultados indicados. A lei não se presta a fundamentar o posto pretendido pela SEAE, já que não está direcionada a lhe atribuir qualquer competência. Ainda que estivesse, seus incisos não podem ser aplicados em desconexão com o caput – e muito menos “regulamentados” enquanto tipos infracionais em Tomada de Subsídios.
Outra ilustração do viés de disque-denúncia assumido pela SEAE é o preocupante anonimato garantido às contribuições que se fizerem à Consulta pelas “partes interessadas” - definidas como “os cidadãos, empresas e associações que possuem experiência no relacionamento com os órgãos supracitados, e desejem contribuir para a melhoria regulatória”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Como já dito, segundo o texto da Tomada de Subsídios, com o objetivo de “garantir transparência na divulgação das informações recebidas”, a “consulta receberá contribuições de maneira anonimizada”. Para tanto, a SEAE determina que as partes interessadas deverão submeter suas contribuições em arquivo em formato pdf, por e-mail, e que o documento não deve conter “elementos que identifique (sic) o autor no corpo da contribuição”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> Além disso, a SEAE indica não ser “necessário o envio das contribuições através de e-mail institucional do remetente”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Criticada na nota pública da ABAR, a anonimização da consulta foi defendida de forma irônica pelo Secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade, Geanluca Lorenzon, em <a href="https://twitter.com/at_lorenzon/status/1369771969789497347?s=21." target="_blank" rel="noopener noreferrer">publicação no Twitter</a>. Segundo ele, a nota da ABAR não compreenderia adequadamente “a diferença entre uma consulta pública anônima e uma anonimizada”. No entanto, se a pretensão da SEAE era a de realizar uma consulta anonimizada – em que a autoria das contribuições é requisitada na submissão, mas protegida na divulgação -, a SEAE falhou na técnica de redação da Tomada de Subsídios. Isto porque, ao não requerer a identificação da parte interessada na submissão da contribuição – ao contrário, determina que não haja identificação -, institui um modelo de consulta anônima, em que nem ela própria, recipiente das contribuições, poderá saber a identidade dos seus autores.
Vale notar que a diferenciação não tem respaldo jurídico: não há disciplina jurídica seja para consultas públicas com contribuições anônimas, seja com contribuições anonimizadas no âmbito da legislação aplicável aos processos administrativos, que são orientados pelo princípio geral da publicidade, inclusive a respeito dos documentos pertinentes à sua motivação.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> A consulta pública, diversamente de processos de denúncia - tutelados em geral por leis específicas -, se presta verdadeiramente à promoção do debate, em que, como regra geral, é proibido o anonimato.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
O anonimato da consulta contraria também a experiência brasileira, acumulada nas últimas décadas, de desenho de consultas públicas e mecanismos participativos voltados à discussão de atos normativos ou de mudanças regulatórias no âmbito das agências reguladoras. A garantia do anonimato pode ser um instrumento cabível em situações específicas, desde que justificada em relação aos objetivos do canal de escuta, à proteção de direitos do denunciante ou a processos de licitação pública, mas desde que tenha, também, respaldo legal.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> No caso da Tomada de Subsídios, porém, o anonimato não é justificado para além de uma genérica e paradoxal referência à “transparência”.
Provavelmente a opção pelo anonimato tenha se dado a partir de avaliação, por parte da SEAE, de que as agências reguladoras federais manteriam um “livro” de administrados “mal-comportados” e estariam dispostas a retaliá-los em caso de recebimento de contribuições críticas. Esse argumento, porém, só se sustentaria se não houvesse órgãos de controle e o Judiciário para, após uma eventual manifestação, conter supostos comportamentos “retaliatórios” por parte das agências. Aliás, conhecendo-se minimamente o modo como operam as agências reguladoras federais, uma hipótese desse tipo ganha ares de teoria da conspiração.
Da mesma forma, se as manifestações das “partes interessadas” dizem respeito a pretensões específicas de um agente econômico ou à notificação de atos efetivamente ilegais das agências reguladoras, uma consulta pública não parece ser o fórum adequado para a sua vocalização. Se o ato é efetivamente ilegal, existe a possibilidade ampla de <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/a-revisao-judicial-da-regulacao-26032019">questionamento judicial</a> das decisões administrativas.
No frigir dos ovos, considerando o contexto mais amplo de atuação da SEAE, em que as suas manifestações e iniciativas denotam uma espécie de presunção genérica de ilicitude da regulação, o anonimato, ademais, ameaça a legitimidade da consulta pública. Ao não se exigir a identificação dos autores das contribuições, não é possível saber se estes são, de fato, partes interessadas na consulta – sequer sob os critérios estabelecidos na Tomada de Subsídios.
O anonimato poderia permitir, em tese, que agentes atuantes em órgãos da própria Administração submetessem contribuições como forma de enviesar a motivação do ato sob consulta, fazendo que tenha um caráter meramente confirmatório do ato a ela submetido. Tal expediente poderia, inclusive, se tornar subterfúgio para que – ainda em um exercício de imaginação - o Executivo pudesse fazer “contribuições” com o objetivo de avançar sobre a autonomia das agências. Assim, se o objetivo da SEAE é a “melhoria regulatória e concorrencial”, a opção pelo anonimato, longe de dar ensejo a diálogos institucionais construtivos, acaba por instituir um “disque-denúncia” sob a roupagem de uma consulta pública.
No capitalismo, o Estado é constitutivo do mercado, e, se mercados autorreguláveis são uma rematada utopia (como cravou <a href="https://inctpped.ie.ufrj.br/spiderweb/pdf_4/Great_Transformation.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Polanyi</a>), não há <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/a-utopia-do-laissez-faire-28052019">livre-mercado</a> no sentido de trocas sem <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/regulacao/a-utopia-do-laissez-faire-28052019">regras</a> que o estruturem. Nesse contexto mais amplo, queixas anônimas ao regulador como as que aqui discutimos podem ter o contraproducente efeito de desorganizar a ação reguladora do Estado brasileiro por meio de um mecanismo baseado em controle e punição e, ao fazê-lo, de forma <a href="https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=462626&amp;ori=1" target="_blank" rel="noopener noreferrer">subliminar</a>, dar margem a formas distorcidas, adicionais e espúrias de regulação. Tudo isso em nome da liberdade econômica, o que evidencia um confuso paradoxo.
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O episódio 54 do podcast Sem Precedentes discute o julgamento da 2ª Turma do STF, que decidiu que Moro foi parcial em suas decisões no caso do tríplex do Guarujá contra Lula. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=Xm3qid_RRA4
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Trata-se da Tomada de Subsídios nº 02/2021. Simultaneamente, também foi aberta a Tomada de Subsídios nº 01/2021, voltada a atos estaduais e municipais.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Tomada de Subsídios nº 02/2021, linhas 133-134.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Idem, linha 108.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ibid., linhas 123-124.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Constituição Federal, artigo 5º, incisos, XXXIII e LX, e artigo 37. Lei de Processo Administrativo Federal, artigo 50, Decreto nº 7.724/2012, artigo 20.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Constituição Federal, artigo 5º, IV.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Confira-se, por exemplo, a Lei nº 13.608/2018 e, no âmbito específico de atos lesivos à Administração Pública, o Decreto 10.153 de 03 de dezembro de 2019.

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JOTA

Recente iniciativa do governo sugere institucionalização de uma problemática variante de advocacia da concorrência

Disque-denúncia regulatório

Análise da 'Declaração de Direitos de Liberdade Econômica' (lei 13.784/2019)