Pandemia

Covid-19 e a defesa da concorrência no PL do Regime Jurídico Emergencial

Proposta afeta duas faces de atuação do CADE: o controle de atos de concentração e a investigação e punição de condutas anticompetitivas

Conamp
Senador Antonio Anastasia (PSD-MG) / Crédito: Pedro França/Agência Senado

Está prevista, para amanhã, sexta-feira (03/04), sessão deliberativa remota do Senado Federal para apreciação do PL 1179/2020. De autoria do Senador Antonio Anastasia (PSD/MG), o projeto dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), no período da pandemia do coronavírus (Covid-19).

Dentre as alterações provisórias do ordenamento jurídico, o PL propõe disposições relevantes sobre o regime de defesa da concorrência brasileiro, tocando em pontos centrais da Lei nº 12.529/2011 e da jurisprudência do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

A proposta afeta as duas principais faces de atuação do CADE, o controle de atos de concentração e a investigação e punição de condutas anticompetitivas.

Com relação ao controle de estruturas, o caput do art. 21 do PL determina a suspensão da obrigatoriedade de notificação ao CADE de contratos associativos, joint ventures e consórcios até o dia 31 de dezembro de 2020.

Já no âmbito do controle de condutas, o PL propõe, de um lado, a suspensão de dois incisos do art. 36, § 3, da Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), referentes às condutas de (i) venda de mercadoria ou prestação de serviços abaixo do preço de custo sem justificativa e (ii) retenção de bens de produção ou de consumo, exceto para garantia da cobertura dos custos de produção.

De outro lado, o parágrafo único do art. 21 determina que a autoridade antitruste, ao analisar casos envolvendo as demais infrações previstas no artigo 36 da Lei do CADE, praticadas a partir de março de 2020 (quando foi decretado o estado de calamidade pública), deverá considerar “as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia do Coronavírus (Covid-19)”.

A proposta apresenta dois aspectos principais que merecem atenção.

Em primeiro lugar, pressupõe uma mudança relevante nos elementos a serem considerados pelo CADE na análise de condutas, particularmente das condutas colusivas, e, consequentemente, afeta a própria concepção de como deve ser a persecução de cartéis pela autoridade de defesa da concorrência. Em segundo lugar, suscita dúvida sobre o aspecto temporal de sua aplicabilidade.

A determinação proposta pelo PL significa dizer que, em todos os casos de condutas anticompetitivas previstas na Lei, a autoridade será obrigada a observar as circunstâncias em que se deu a eventual prática ilícita para avaliar sua punibilidade.

O fato é que tal análise já acontece com relação às chamadas condutas unilaterais, nas quais a ação do agente privado é própria e exclusiva e não depende de conluio com outro agente privado. Essas condutas são analisadas segundo a chamada “regra da razão”, na qual as circunstâncias e os efeitos da conduta investigada integram na análise da autoridade. Assim, para estas condutas, parece inicialmente não haver impacto relevante no tratamento já conferido pelo CADE.

Em oposição, para a conduta de cartel, prevista no art. 36 § 3º, inciso I da Lei, na qual há conluio entre agentes privados, a previsão pode ter impactos relevantes. Considerada a mais grave conduta anticompetitiva, o cartel, caracterizado pelo acordo entre concorrentes com vistas a fixar preços ou combinar outras variáveis comerciais, é classicamente tratado pela jurisprudência do CADE, de maneira similar ao que ocorre ao redor do mundo, como uma conduta ilícita por objeto.

Isso significa dizer que é suficiente a prova de acordo entre concorrentes para que haja a possibilidade de punição pela autoridade da concorrência. Não é necessário avaliar contexto ou efeito concreto. Tal entendimento decorre da compreensão de que o cartel, ao contrário de outras práticas potencialmente lesivas, não teria a capacidade de gerar de eficiências para compensar seus efeitos deletérios, majoritariamente visíveis no aumento de preços e, portanto, tais efeitos são passíveis de presunção, dispensando que sejam aferidos na prática. Não por outra razão, o CADE rechaça argumentos econômicos frequentemente trazidos pelas partes que buscam justificar os acordos ilícitos ou a sua suposta irracionalidade.

Ao introduzir a obrigatoriedade de que a autoridade concorrencial inclua em sua análise das condutas ilícitas previstas no art. 36, as “circunstâncias extraordinárias” da pandemia, fica implícita a necessidade de uma análise complexa e conjuntural, diversa daquela que predomina na jurisprudência. Ao exigir a análise do contexto, abre-se espaço para a discussão de efeitos econômicos do cartel, bem como a possibilidade de apresentação de justificativas econômicas para a conduta, ao menos para o período em que o dispositivo estiver vigente.

As justificativas que acompanham o PL limitam-se a registrar que essa alteração temporária da legislação concorrencial responderia à necessidade de que, no futuro, certas práticas (puníveis pela atual legislação) “sejam desconsideradas como ilícitas em razão da natureza crítica do período da pandemia”.

Embora a justificativa seja econômica em fundamentação, o fato é que vai na linha de legislações aprovadas em outros países e de um conceito já conhecido no âmbito do direito concorrencial como “cartel de crise”. Trata-se da ideia de que empresas que operam nesses mercados possam vir a enfrentar em momentos excepcionais, como o de uma pandemia, excessos de capacidade substanciais.

Assim, a formação de um cartel de crise, legalmente aceito como medida excepcional e temporária, teria, segundo seus defensores, o objetivo de ajudar a manter ampla competição no mercado, ao mesmo tempo que permite a preservação da sua diversidade. Medidas como essa já foram utilizadas por diversos países em momentos de crise, a exemplo dos chamados “carteis da depressão” e “carteis de racionalização” legalizados no Japão pós-guerra, na década de 1950.

Tais potenciais benefícios, no entanto, devem levar em consideração que o dispositivo do PL inova a ordem jurídica concorrencial e caminha em sentido contrário à jurisprudência consolidada do CADE, ainda que em caráter excepcional e temporário.

Os efeitos dessa alteração, no entanto, só serão conhecidos daqui há alguns anos, quando tais processos chegarem a julgamento pelo Tribunal do CADE.

Importante pontuar também que a previsão do PL é temporalmente aberta. Isto é, indica-se o momento a partir do qual tais circunstâncias podem ser evocadas (e devem ser consideradas pela autoridade antitruste), mas não coloca um fim ao período de exceção, como é altamente recomendado por autoridades que tratam no tema, a exemplo da própria OCDE1. Embora para outras disposições do PL seja evidente que o encerramento acompanha o fim do estado de calamidade pública, isso não é necessariamente válido para esta previsão específica. Isso provavelmente se deve ao fato de que os efeitos econômicos destas circunstâncias extraordinárias não estarão necessariamente circunscritos ao período da pandemia, podendo se arrastar por meses e até anos, influenciando assim, atitudes dos agentes econômicos inseridos no mercado brasileiro.

Nesse sentido, além da imprevisibilidade sobre o real impacto dessa obrigatoriedade na política de persecução a carteis do CADE, surge uma segunda dúvida: até quando a excepcionalidade dessas circunstâncias poderá ser suscitada pelos agentes econômicos e até quando a autoridade será obrigada a considerá-las na análise de processos administrativos de carteis?

Esse segundo ponto já foi inclusive notado no próprio Senado Federal, tendo sido objeto de proposta de emenda pelo Senador Ciro Nogueira (PP/PI). O Senador sugere alteração da redação do parágrafo único, de maneira esclarecer que a obrigação só se aplicaria “enquanto durar o estado de calamidade pública contida no Decreto Legislativo n.6, de 20 de março de 2020”, estabelecendo assim um termo para sua vigência.

E o Projeto de Lei 1179/2020, em discussão no Senado Federal, busca endereçar questões importantes enfrentadas pelo mercado e pelos agentes econômicos.

Contudo, a obrigatoriedade de considerar as circunstâncias excepcionais e a ausência de delimitação temporal clara de aplicação dessa previsão irão impactar significativamente a política de combate a cartéis.

A maior discricionariedade concedida à autoridade da concorrência virá acompanhada de maior responsabilidade, e exigirá melhor qualificação de seus quadros.

Os processos serão mais complexos e levarão mais tempo para serem concluídos, pois terão que considerar uma dimensão adicional da prática investigada. E é possível que tal exceção gere pressão para uma revisão mais geral da jurisprudência atual, estendendo a análise por regra da razão para condutas que não ocorreram durante o período de flexibilização. É importante que a autoridade esteja ciente e preparada para esses desafios.

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1 OCDE. Policy roundtables: crisis cartels, 2011. Disponível em: < http://www.oecd.org/daf/competition/cartels/48948847.pdf >