Justiça racial

Profissionais negros de RelGov se articulam por inclusão em área pouco diversa

Para coletivo, ter lideranças negras no lobby das empresas é estratégico para construção de políticas públicas

Foto: Pexels

Olhar ao redor e constatar que não há, além de si mesmo, nenhuma outra pessoa negra na sala é rotina para boa parte das mulheres e homens negros que galgaram posições corporativas de destaque. Na área de relações institucionais e governamentais, a bolha é especialmente difícil de ser furada – e a cena se torna escandalosa. O setor, mais habitual em grandes empresas e com número restrito de profissionais, é definidor para a formulação de políticas públicas.

“Independentemente de qual lado se esteja representando, se uma empresa ou uma organização, o profissional de relações governamentais trabalhará diretamente com políticas públicas. Então, o impacto da diversidade racial nesse campo pode ser até maior do que em outras áreas”, afirma Verônica Hoe, cofundadora do coletivo Pretas e Pretos em RelGov.

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O grupo se formou em 2020, nos primeiros meses da pandemia no Brasil e também em meio à eclosão das manifestações do movimento “Black Lives Matter” no mundo. Ele nasceu da união de profissionais negros de um setor em que estão pouco representados, como ponto de apoio mútuo e tentativa de abrir mais portas em espaços fechados. Hoje, há cerca de 500 integrantes, entre profissionais que trabalham na área ou gostariam de acessá-la.

“Entre amigos, conseguíamos nomear mulheres líderes em RelGov, mas diretoras pretas era quase impossível”, conta Hoe, que é gerente de Políticas Públicas focada em relacionamento com a indústria e engajamento estratégico, na Meta (antes, Facebook), em São Paulo. A posição ocupada por ela, formada em biologia, guarda cerca de 15 anos de atuação em análises e negociações regulatórias.

A tomada de consciência é, geralmente, definidora para colocar ações em marcha. E, no caso do coletivo, o caminho ajuizado era criar meios para mudar os quadros de funcionários de relações governamentais nas empresas. “Precisávamos começar algo para mudar isso, mostrar que há profissionais e crescer, por isso partimos por empregabilidade”, diz ela sobre o movimento.

A partir também do aumento da procura de novos integrantes, o grupo foi capaz de estruturar sua espécie de banco de talentos. Em poucos meses, ainda no ano passado, o movimento começou a render frutos e empresas ou headhunters passaram a buscar o coletivo em busca de apoio para encontrar candidatos para vagas abertas.

Entretanto, segundo Hoe, a maior parte dos integrantes do grupo é bastante jovem, portanto o impacto se dá principalmente na base. Ao mesmo tempo, o contingente de profissionais negros no setor, com experiência robusta para assumir posições sênior, ainda é limitado. “Hoje, a área é super fechada. Enfrentamos ainda a questão da formação das pessoas pretas, já que são poucas as gerações formadas nas políticas de cotas. Pode demorar um tempo para esses jovens alcançarem a liderança”, avalia.

Responsabilidade coletiva

Faz parte da geração de jovens negros que puderam acessar o ensino superior, frequentemente como primeiros de suas famílias, Flávia Fernanda Costa, secretária-geral do coletivo. Ela cursou Direito como bolsista integral do ProUni, programa federal que arca com a faculdade de alunos de baixa renda, e hoje é analista política da consultoria Pulso Público, que atua em relações governamentais e advocacy, em Brasília.

Para mudar a situação, ela aposta em algumas estratégias históricas usadas pelos grupos majoritários nas empresas. “Homens brancos costumam recomendar colegas brancos quando há uma vaga. Decidimos usar a mesma lógica para colocar os nossos dentro das empresas. Indicar pessoas negras tem que ser um movimento proposital”, defende Costa.

De fato, quando se trata de posições de alto grau hierárquico, um obstáculo para ampliar diversidade é o peso das indicações para a ocupação de cadeiras. Em conselhos de administração de empresas abertas, por exemplo, já se diagnosticou que há poucas mulheres e negros, em grande medida, por conta desse comportamento. O mesmo se repete várias degraus abaixo nas escalas corporativas.

A lógica do coletivo só funciona, porém, se há adesão de lideranças brancas em fazer esse gesto. “Queremos também que elas participem mais de alguns dos espaços organizados por negros, até como processo de escuta. Não temos aderência de pessoas brancas em nossos ciclos de debates”, relata.

Nesse sentido, outras iniciativas partindo de líderes brancos são possíveis também, como oferecimento de bolsas para grupos sub-representados em cursos que ministrar ou organização de financiamentos coletivos para cobrir formação em nível de pós-graduação a jovens talentos negros na área.

“Ainda é necessário se responsabilizar em obter letramento racial. Vemos líderes nas redes sociais com discursos rasos de ‘vamos respeitar as diferenças’. Quando se fala em ‘diferente’, há um referencial: uma pessoa branca, hétero, cisgênera, sem deficiência”, afirma a analista política.

Além disso, outro esforço do coletivo, que poderia ser tomado pelas lideranças da área é o de evidenciar profissionais negros em destaque – o objetivo, em última instância, é mostrar a possibilidade de carreira para jovens. Principal vitrine para a área de relações institucionais e governamentais, o Anuário Origem de 2021 não teve elencado, na lista de 20 profissionais mais admirados, nenhuma mulher negra. Nesta edição, e também em anteriores, aparece Creomar de Souza, CEO da consultoria Dharma Politics.

Para Costa, ao ignorar o problema que a área enfrenta, de forma provavelmente mais aguda do que outras, se perde no desenvolvimento das estratégias da área e na contribuição democrática que marca a atividade: “RelGov é um nome novo, mas a população negra está articulando política desde a formação do país. A própria emancipação sob o ponto de vista formal no Brasil é fruto de uma articulação política. E é também uma ação muito própria do ambiente democrático”.