Carolina Ingizza

O novo marco regulatório do <a href="https://www.jota.info/coberturas-especiais/transporte-rodoviario-passageiros">transporte rodoviário de passageiros</a>, em vigor desde fevereiro deste ano, foi aprovado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/antt">ANTT</a>) no final do ano passado com a promessa de reduzir a burocracia e promover uma maior concorrência no setor. O efeito, no entanto, teria sido o oposto. Em entrevista ao JOTA, Giovani Ravagnani, diretor de jurídico, privacidade e compliance da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/buser">Buser</a>, disse que a nova regra acabou "engessando" o mercado e foi mal recebida por quase todos do setor. "Ela burocratiza tanto que acaba impedindo todo mundo de entrar", afirma Ravagnani.
Para a Buser, os problemas no marco regulatório são só mais uma "batalha" que a companhia terá que enfrentar. Em operação há sete anos, a empresa tem sido alvo de processos judiciais desde o início por companhias tradicionais de transporte rodoviário. A principal acusação é a de que o seu modelo de fretamento coletivo de ônibus de viagens, que resulta em preços mais baixos para os clientes, configuraria concorrência desleal.
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"A gente sempre é atacado por quem diz que a Buser concorre deslealmente porque praticaríamos preços muito abaixo de mercado. Na verdade, a gente pratica preços justos para o mercado, porque o que essas empresas praticavam era um preço que não precisaria ser tão alto", diz o diretor jurídico.
Segundo a empresa, sua primeira grande vitória na Justiça veio 2019, no julgamento da ADPF 574 no Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>). Na ação, a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros (Abrati) pedia que fossem declaradas inconstitucionais as decisões judiciais que autorizaram o serviço de transporte no modelo da Buser. Após manifestações contrárias da Advocacia-Geral da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/agu">AGU</a>) e da Procuradoria-Geral da República (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/pgr">PGR</a>), a Abrati desistiu da ação.
Mais recentemente, em junho deste ano, uma decisão no sentido contrário afetou a empresa. A <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/2a-turma">2ª Turma</a> do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>), por unanimidade, manteve um acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/trf4">TRF4</a>) que proibiu a companhia, sob pena de multa, de realizar viagens interestaduais com origem ou destino no <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/parana">Paraná</a> pelo modelo de fretamento colaborativo.
O entendimento unânime da 2ª Turma foi o de que a companhia promove concorrência desleal e presta transporte irregular de passageiros. Isso porque a legislação exige que o serviço de fretamento seja praticado em circuito fechado, com viagens de ida e volta realizadas pelos mesmos passageiros, o que não é o caso de boa parte das viagens oferecidas pela Buser.
"O serviço oferecido pela Buser de fretamento em circuito aberto implica, na realidade, a prestação irregular de serviço de transporte rodoviário de passageiros", lê-se no acórdão do REsp 2093778/PR.
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Ao JOTA, o diretor jurídico da Buser disse que a decisão é importante e "machuca", mas que a empresa continuará a recorrer até esgotar os recursos. Na visão dele, esse debate jurídico sobre o modelo de operação da empresa será pacificado, no futuro, com uma decisão do Supremo.
O histórico é favorável para a empresa. Em março de 2023, no julgamento das ADIs 5.549 e 6.270, o Plenário do STF validou normas que permitem o oferecimento de serviços interestaduais e internacionais de transporte de passageiros mediante simples autorização, sem necessidade de licitação prévia. Para a Corte, esse modelo de autorização aumenta a eficiência na prestação desse serviço essencial.
Veja abaixo os principais trechos da entrevista com o diretor.
Como é que é liderar o jurídico de uma empresa cujo modelo de negócio tem sido contestado na Justiça?
O jurídico é uma peça importante em qualquer empresa, especialmente em empresas que trabalham com inovação, mas não é a parte mais importante. Se o jurídico perder, a empresa acaba? Tem milhões de coisas que se a gente fizer errado, a empresa acaba. Se a gente não conseguir investir o dinheiro do marketing certo, se a gente não conseguir dar o retorno adequado para os investidores. O jurídico é uma peça de uma engrenagem. Óbvio, quanto maior o desafio regulatório, mais complexidades a gente tem, mas a Buser está aqui há sete anos. Se de fato a gente pudesse morrer, eu tenho certeza que a gente já teria ficado pelo caminho. A gente veio pra ficar.
Quais são os principais desafios do jurídico da Buser hoje?
O principal desafio, em qualquer lugar em que eu já trabalhei, é a gestão de pessoas. Como líder da área, esse é o tom da minha liderança, de estar próximo das pessoas, de conversar. Quando eu trabalhava em escritório, não tinha muito a cultura do advogado ser um gestor de pessoas, era mais um gestor de trabalhos. Lembro que na minha primeira semana de trabalho na 99, marquei para conversar com meu chefe na sexta-feira para tirar dúvidas, era como se eu tivesse ido para Marte. Assim que eu comecei a falar, ele me interrompeu e disse que o espaço era para falar de mim, da minha primeira semana, da recepção que eu tive dos colegas.
Outro desafio que temos é pensar em como podemos ser uma área que ajuda a gerar receita e não só uma linha de custo. Sabe quando você vai no supermercado e uma rodinha do carrinho fica atrapalhando? O jurídico não pode ser isso. Acredito que o nosso trabalho é preservar a companhia com integridade. Então, se eu começo a dizer só não, não e não para as outras áreas, o que vai acontecer? As pessoas vão fazer sem me avisar. E aí não vamos ter a governança daqueles riscos que estão sendo gerados.
O maior desafio dentro de uma empresa como a Buser é que as coisas andam muito rápido. Não precisa de uma reunião com toda a liderança para tomar uma decisão estratégica. Às vezes duas pessoas em um café tomam uma decisão e o negócio vai. A gente ter que ir junto e apertar o parafuso com o carro andando.
Por exemplo, com a tabulação das informações das sentenças dos nossos casos, criamos um mecanismo de melhoria contínua. Eu reporto isso pras áreas de negócio e elas usam esses insumos para poder melhorar a operação. Essa também é uma forma de o departamento jurídico gerar valor.
No final do ano passado, a Buser disse que pretendia entrar no mercado regulado de transporte rodoviário neste ano, nem que fosse necessário judicializar para conseguir autorizações. Como está esse processo?
O mercado rodoviário é um mercado historicamente concentrado. Então, 71% das linhas rodoviárias que existem no Brasil são operadas por uma única empresa. Não que seja uma empresa só no país, mas a maior parte das linhas tem só uma empresa operando. Só cerca de 8% das linhas têm três ou mais empresas. Existe uma dificuldade na abertura do modelo de negócio rodoviário, mesmo no caso das grandes empresas que estão no mercado há muito tempo, parte das linhas delas foram oriundas de ações judiciais.
O regime de operação no mercado rodoviário mudou em 2014. Deixou de ser um regime de permissão, passou a ser um regime de autorização. Basicamente, é só preencher um formulário e, se estiver tudo certo, pode protocolar e sair com a linha. Deveria ser assim, mas não é tão simples.
A lei de processo administrativo diz que os órgãos públicos têm um prazo de 90 dias para analisar cada pedido. Então a gente entrou com algumas ações para mostrar que já se passaram os 90 dias e já conseguimos algumas decisões favoráveis determinando que o processo administrativo da ANTT continue andando, mas é um negócio que demora mesmo.
A 2ª Turma do STJ decidiu impedir a operação de fretamento da Buser no Paraná. Qual é o impacto dessa decisão para o negócio?
Bom, é uma decisão no meio de outras milhões que a gente tem favoráveis. É óbvio que é uma decisão importante, mas é uma decisão que não é exaustiva, porque certamente vamos recorrer. O próprio ministro Herman Benjamin, que vai assumir a presidência do STJ, falou uma coisa que me deixou com a pulga atrás da orelha: “eu estou acompanhando o relator, mas eu ainda não fechei questão sobre o assunto”. Então, mesmo na própria discussão daquele caso, não ficou tão claro para que lado ele vai.
Para mim, essa é uma discussão que vai ser decidida pelo Supremo. Hoje, no Brasil, temos um histórico recente de protagonismo do Poder Judiciário. No passado, o Supremo deu um voto reconhecendo a constitucionalidade do regime de autorização e destacando a necessidade de que o mercado fosse aberto, que tivesse concorrência e tudo mais. É óbvio que [a decisão do STJ] machuca, mas a gente tem um caminho bem legal para continuar discutindo isso em alto nível no Supremo.
É possível que o Congresso resolva esse impasse?
Quando a gente fala em criação de políticas públicas, a gente tem o Poder Legislativo, o Executivo, o Judiciário e a opinião pública. Então, acho que eles se complementam. No caso da Uber e da 99, a inclusão do caso em pauta no Supremo fez com que a discussão no Legislativo avançasse.
Se você olhar, a própria decisão que o Supremo deu foi dizendo que o processo legislativo tinha optado por esse caminho. Embora haja discussões sobre uma crise institucional entre os Poderes, eu acho que na verdade não há. Eles se complementam e estão bem alinhados, principalmente nesses assuntos importantes.
Tudo depende de como estiver opinião pública no momento da discussão, porque, na época da Uber, às vésperas da votação no Congresso, havia centenas de milhares de motoristas na esplanada do Ministério. Isso reverbera.
Eu estou comparando muito Uber e Buser, mas tem uma diferença significativa no nosso modelo de negócio para o deles. A Uber chegou ao Brasil com um serviço premium, com o Uber Black, oferecendo carros que talvez os formadores de opinião pública e os formuladores de políticas públicas utilizassem. Esses primeiros usuários do serviço perceberam como ele era diferente do táxi, então acho que isso fez com que a bandeira fosse fincada por meio da experiência própria dos formadores de opinião. Estamos falando de deputados, senadores, prefeitos e dos próprios juízes que julgavam muitos casos.
No caso da Buser, o nosso público-alvo direto talvez não seja necessariamente esse. Em torno de 60% dos nossos usuários têm renda familiar de até 3 salários mínimos. Quando a gente fez uma tabulação de informações durante a pandemia, aproximadamente 30% dos nossos usuários tinham sacado auxílio emergencial. Ou seja, são pessoas sensíveis a preço, que dependem do ônibus.
Talvez essa diferença de percepção de realidade dos formadores de políticas públicas dificulte um pouco a nossa discussão. Andar de ônibus pode ser bom, mas hoje não é tão bom.
Como a Buser responde às críticas de que opera em situação de concorrência desleal?
A gente sempre é atacado por quem diz que a Buser concorre deslealmente porque praticaríamos preços muito abaixo de mercado. Na verdade, a gente pratica preços justos para o mercado, porque o que essas empresas praticavam era um preço que não precisaria ser tão alto, a margem era muito maior do que precisava ser.
Algumas decisões e alguns votos às vezes falam que há concorrência desleal, que a gente está roubando um filão de mercado das empresas tradicionais, mas se você olhar os relatórios financeiros de todas essas empresas, todas estão batendo recorde de lucro atrás de recorde. Então, se a Buser está roubando um quinhão do mercado deles, de onde está vindo esse lucro?
A chegada da Buser, da Flixbus, da 4bus faz com que o setor rodoviário se torne uma opção melhor. Assim, o mercado, como um todo, cresce.
Qual é a avaliação da Buser sobre o marco regulatório do transporte regular que entrou em vigor em fevereiro?
O processo de criação dessa regra foi meio atrapalhado, algumas exigências não foram observadas e, eventualmente, poderiam ser judicializadas. A gente sabe que o Ministério Público Federal está muito em cima, tem um inquérito civil público que está analisando todo esse trâmite regulatório.
Acho que essa regra acaba engessando demais o mercado. Ela é criada sob o pretexto de abrir o mercado, mas ela fecha. Ela burocratiza tanto que acaba impedindo todo mundo de entrar. O mais curioso é que as empresas que já têm linhas vão ter prioridade sempre, então [a regra] não estimula a concorrência pelo mercado.
Talvez o que o novo marco regulatório da ANTT tenha feito foi refundar o modelo de permissão e reforçar a concentração de mercado, o que, inclusive, contraria aquilo que o Supremo definiu. O Fux, que foi o relator, disse que o mercado tinha que ser aberto, que os parâmetros de competitividade tinham que ser seguidos, então essa é mais uma batalha que a gente vai ter por aqui. Não só a gente, acho que ninguém do setor gostou.
O que o Brasil poderia fazer para dar mais segurança jurídica para os negócios?
Esse é um problema que a gente tem como um todo aqui no Brasil. Nosso país é novo, faz parte do processo de maturação, até chegar no momento de maturidade da democracia, do país e das instituições. Acredito que o tempo vai poder resolver isso da segurança jurídica.
Pela nossa experiência, onde vemos mais insegurança jurídica é nos níveis estaduais e municipais. Quando eu trabalhava na 99, era muito difícil fazer um compliance regulatório de 600 municípios, porque todos eles criavam peculiaridades diferentes para o mesmo negócio. Tanto que o Supremo, na decisão sobre o Uber, limitou a competência dos municípios para poder legislar sobre os aplicativos de transporte.
Mas acredito que essa infinidade de camadas que a gente tem é um problema que vai se acomodar, porque não tem como persistir por muito mais tempo.
Como é o uso de tecnologia no jurídico de uma empresa da nova economia?
É muito difícil competir com desenvolvedores aqui de dentro, porque eles precisam trabalhar para o core do negócio, então dificilmente temos a liberdade de ter um desenvolvedor dedicado para o jurídico. Então, acabamos contratando serviços de fora.
Eu acho que o mais importante, que é toda a atividade do back-office que a gente faz, principalmente para contratos, a gente faz pelo Jira, que é a plataforma de gestão de projetos que a companhia escolheu para usar. Isso nos ajuda muito. Óbvio que o WhatsApp funciona também, mas perguntas, solicitações e pedidos de contrato mais sérios e importantes vêm pelo Jira. Isso permite que a gente tenha governança das informações e accountability de tudo que a gente está fazendo.
Para mim, desenvolver os fluxos corretos de trabalho e estruturar as informações é um passo que precisa ser dado antes de adicionar tecnologia. Aqui na Buser, todos os nossos casos judiciais de consumidor são tabulados com técnicas de jurimetria. Começamos com uma planilha de Excel, toda decisão que tem a respeito de algum tema, a gente coloca lá.
Hoje, tenho um robozinho que captura as distribuições dos nossos processos. Então, desde o primeiro dia, eu consigo saber se aquele assunto, naquela vara e com aquele juiz, a tendência é ganhar ou perder. Muitas empresas colocam em prática uma política de acordo, como a gente ainda está, em certa medida, explicando para o Judiciário o que a gente faz, o que a gente é, a gente nunca foi muito por esse caminho de fazer acordo.
Qual dica daria para um advogado ou estudante de Direito que quer trabalhar em empresas?
O conselho que eu poderia dar é: existe espaço para ser arrojado dentro do Direito. 
Para quem está na faculdade, acho que existem alguns caminhos para você poder se incorporar nesse mercado. O primeiro deles é, principalmente para as empresas de tecnologia, saber que segmentos de negócio te interessam. É importante saber o que você quer, o que você gosta, com o que você tem um pouco de conexão, porque sem conexão é muito difícil trabalhar como advogado corporativo.
O segundo conselho é conhecer gente. Eu nunca consegui um emprego na minha vida sem que houvesse uma indicação. Então, a minha dica é conheça pessoas, faça relacionamento, porque conhecer as pessoas faz com que a gente conheça melhor as oportunidades disponíveis no mercado. Eventos são bons para isso. Em outubro, vamos ter a Fenalaw, que é uma feira de assuntos jurídicos. Para quem está na faculdade, um caminho é participar de grupos de estudos. Ali, você troca não só experiências acadêmicas, mas também se insere em um pequeno ecossistema.
Também digo para ser cara de pau. Descubra quem são os advogados, seja curioso, mande mensagem no Linkedin. Isso abre portas.
Além do Direito, há algum outro conhecimento que considera importante aprender?
Olha, eu estou quebrando a cabeça para aprender a trabalhar bem no Excel. Hoje se exige que o advogado corporativo tenha uma visão analítica e não tem nenhuma ferramenta em que você consiga começar a analisar informações melhor que o Excel. Então, acho que essa é uma habilidade importante de desenvolver.

buser diretor

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JOTA

Ao JOTA, Giovani Ravagnani, diretor jurídico e de compliance da Buser, falou sobre os desafios regulatórios do setor rodoviário

Novo marco regulatório do transporte rodoviário engessa o mercado, diz diretor da Buser

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