O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve avanços importantes na gestão fiscal nos últimos dois anos, especialmente em seu esforço de recompor a arrecadação. Mas errou ao fazer um descontingenciamento de gastos neste relatório bimestral de receitas e despesas, sinalizando que está mirando o limite inferior da banda de resultado primário e não o déficit zero efetivamente. A avaliação é do economista-chefe da Warren e ex-secretário de Fazenda de São Paulo, Felipe Salto, entrevistado desta semana pelo JOTA na série “cenário macroeconômico”.

Esta entrevista faz parte da segunda temporada da série Cenários Macroeconômicos do JOTA sobre as expectativas para a economia brasileira. Baixe o e-book completo.

Salto defende que o governo busque sinalizar mais claramente que fará um resultado primário em 2025 melhor do que neste ano e que busque enfrentar a agenda de controle de gastos obrigatórios. Ele acredita que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), conseguirá obter alguns avanços nessa seara.

O economista criticou a decisão do Copom de subir os juros, embora reconheça que o colegiado tenha usado argumentos técnicos para a decisão. Para ele, a alta dos juros, que já estão em níveis contracionistas, coloca em risco o crescimento econômico, que projeta em 3% para este ano e 2% para o ano que vem.

Crítico da reforma tributária do consumo, ele disse acreditar que a CBS, que unifica os impostos federais, vai dar certo, mas aposta que o IBS, que vai unificar ICMS e ISS em uma transição mais longa, vai dar errado.

Confira abaixo os principais pontos da entrevista.

Descontingenciamento e uso de banda da meta

Ou a meta é zero ou não é. Então, quando eles fazem isso de trabalhar com o contingenciamento e descontingenciamento, bloqueio e desbloqueio, mas considerando o piso da meta, o que sinalizam é que a meta não é zero, a meta é a banda inferior. Não era esse o espírito da lei que eles acabaram de aprovar, que é um recém-nascido. O novo arcabouço fiscal está aprendendo a falar ainda e o risco é a primeira palavra ser “contabilidade criativa”. Ainda acho que não é o caso, porém, quando eles miram o piso da meta, o que estão dizendo é que o piso não é para acomodar choques.

Qual era o sentido de você ter uma meta com uma banda? Pode ser que chegue em dezembro e de repente não entre uma arrecadação que estava prevista de depósito judicial, ou alguma receita do IRPJ que não se confirmou. Isso é um evento não previsto que poderia se acomodar nessa banda inferior. Mas, do jeito que estão fazendo, trabalhando no limite do limite, estão caminhando no fio da navalha e não precisava ser assim. Já tinha feito o contingenciamento e pago o preço político, que era pequeno. Aí descontingencia?

Eu acho errado [a interpretação de que não tinha liberdade para não descontingenciar], porque a meta é zero. Se teve uma receita não prevista entrando, ou no caso, prevista, que foi contemplada no relatório, então reduz a projeção de déficit, que não é nem R$ 28,8 bilhões, mas sim R$ 68,8 bilhões, devido aos R$ 40,5 bi de crédito extraordinário.

O que deveriam fazer: tem um volume adicional de receita? Ótimo, vamos continuar tendo uma projeção de déficit, mas um pouco menor. Então, esse argumento de que eles não poderiam não descontingenciar, ao meu ver, não procede, porque a meta é zero e tem banda superior e banda inferior. Eles estão trabalhando como se a banda inferior fosse a meta e isso vai criar um precedente, porque o mercado e os especialistas vão ficar projetando os próximos anos sempre no limite inferior.

O lado positivo é que a receita está mais realista [no quarto bimestral]. Nas receitas administradas eles fizeram uma boa revisão para baixo, na mesma direção que já tinham feito no terceiro bimestral. Por outro lado, entraram com essas receitas da Caixa e do BNDES, que compensaram uma parte dessa revisão para baixo nas receitas administradas. Tanto que a receita líquida foi revisada para baixo em R$ 4,4 bilhões. Essa parte é boa.

A parte ruim é a dependência de receitas atípicas. Claramente o relatório deu uma sinalização de que, para fechar a conta esse ano, eles vão precisar de dividendos extraordinários do BNDES, de depósito judicial e isso não é bom.

Política fiscal do governo

Eu avalio que em 2023 e 2024 o saldo líquido do Haddad é positivo. Ele conseguiu um feito nesse Congresso, cuja qualidade está cada vez menor, que foi aprovar nove medidas tributárias. Isso sem contar a reforma do consumo, que eu sou contra, mas também foi um feito e tem que entrar nos créditos do ministro.

Por exemplo, a MP 1185 do benefício do ICMS. As empresas faziam uma loucura, abatiam o benefício do ICMS do lucro, recolhiam o imposto sobre lucro e faturamento menor e ninguém falava disso. É mérito dele. Também teve a recomposição de base do PIS-Cofins, que era aquela briga antiga, se o ICMS fazia parte ou não da base do PIS-PASEP e da Cofins. A tributação de fundos fechados, era outro tabu e era um absurdo, porque tinha uma incompatibilidade. O fundo da classe média tem o come-cotas, e o fundo exclusivo não tinha nada de tributação. Isso rendeu também uma boa arrecadação. Offshores também, as transações tributárias, a nova lei do Carf.

Tudo isso redundou em um crescimento da arrecadação de 9% acima da inflação, se pegar de janeiro a agosto. O ministro teve sucesso nessa agenda arrecadatória e tem razão quando fala que é uma recomposição. Fomos abrindo mão de receita por conta dos benefícios tributários, das isenções, dos regimes especiais, e agora está recompondo uma pequena parte disso. Goste-se ou não, isso ajudou no ajuste fiscal. Goste-se ou não porque você teve R$ 230 bilhões de déficit no ano passado e esse ano vai ter R$ 68 bilhões. Isso não é uma melhora fiscal? Claro que é.

Futuro do arcabouço

Existe uma fragilidade estrutural nas contas públicas e não é uma novidade. Seja qual for o governo, todos os executivos enfrentam um problema estrutural que é a rigidez do orçamento. A gente é pródigo em criar regras fiscais, mas não é tão pródigo em cumpri-las. Cria a lei de responsabilidade fiscal (LRF), os tribunais de contas dão interpretações diferentes, heterogêneas em cada estado, aí você distorce a LRF. Cria a meta de primário, começa a fazer contabilidade criativa, vem o teto de gastos, que errou pelo extremo oposto, porque era duro demais.

Se você não enfrentar isso [rigidez orçamentária], o novo arcabouço fiscal vai bater pino em um ano, porque você precisa controlar o crescimento do gasto obrigatório.

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Existe um tabu também que você não pode discutir o gasto, porque se você fala de discutir o mínimo da saúde, parece que você é contra a saúde. Na verdade é o contrário, porque a saúde tem a vinculação 15% da receita corrente líquida e a educação 18% da receita líquida de imposto. A receita cresce, o orçamento dessas duas áreas cresce. Só que ninguém avaliou se precisa desse aumento. Tem que mexer em vinculações, indexações, principalmente salário mínimo, porque cada real de aumento no salário mínimo são R$ 469 milhões de despesas anualizadas.

Eu acho que não explode [o arcabouço] porque vem a estratégia do Haddad, que é de apagar incêndios. Ele é um dos políticos mais experientes. Se você pegar o município de São Paulo, ele fez um baita ajuste fiscal. Ele é um político muito inteligente, além de ser um técnico, sabe muito de economia, por isso não vai com o pé na porta. Se não, ele não ia durar no governo. Ele tem que lidar com o Rui Costa, Gleisi Hoffmann, Lindbergh Farias — o que é ótimo, é legítimo que seja assim. O governo é de esquerda. Então esses atores que eu citei estão no papel deles também.

Para o ano que vem, o que eu acho que está faltando o governo anunciar para convencer o mercado é que vai conseguir melhorar o primário. Se vai fazer R$ 70 bilhões em 2024, em 2025 tem que ser R$ 50 bilhões ou menos. Não pode ser R$ 70 bilhões ou mais, que é o que está caminhando para ser. Nossa projeção é quase 1% de PIB de déficit para o ano que vem. Tem R$ 168,3 bilhões de receita atípica prevista no orçamento para fechar a conta.

Agenda de revisão de gastos

Mexer no salário mínimo não é viável. Se tem um governo que poderia fazer com legitimidade, é esse, mas não vai. Lula sabe que é importante fazer algumas coisas, mas não vai levantar a bandeira de acabar com a indexação.
Agora, você pode ir fazendo aos poucos, por exemplo, avaliar programas tipo abono salarial, que não é para o mais pobre. O mais pobre está no Bolsa Família (BF). Acaba com o abono, pega metade e faz primário, a outra metade você aumenta o BF. Tem que ter ideias diferentes das dos economistas que só falam “acaba com isso, acaba com o salário mínimo”. Desse jeito não vai passar nunca.

Mercado financeiro vs governo

Em geral, eu acho que o mercado está com pessimismo exagerado. Não há razão para isso, porque se você pegar agora o Haddad falando no exterior sobre as agências de risco nos darem de novo o grau de investimento, ele não está errado.

Qual é o grau de investimento? É ter um selo falando “esse país não tem risco de quebrar”. Por acaso o Brasil tem risco de quebrar? Claro que não. O risco de insolvência é zero. A dívida está crescendo? Sim, mas ela cresce a taxas decrescentes. O caixa do tesouro de R$ 2 trilhões é suficiente, se você não quiser emitir um centavo de dívida, você fica um ano pagando tudo que está vencendo de dívida e o déficit ainda, por pior que seja, sem emitir um centavo. Isso não é país insolvente. As contas externas a mesma coisa.

A situação fiscal está uma maravilha? Não. Mas definitivamente não existe crise fiscal como muitos querem fazer crer.

Auxílio gás e queimadas - subterfúgios fiscais?

O governo às vezes joga casca de banana e corre para pisar. O Vale Gás foi coisa de profissional. Afastou o artigo 14, afastou o artigo 135 da LDO. Ele falou: “estou fazendo bobagem aqui, mas eu sei disso, fiquem tranquilos que está respaldado pelas brechas da LDO e da LRF”. Mas isso é contabilidade criativa. Por isso foi bom o Haddad ter vindo a público e falado que vai fulminar esse negócio. O erro dele foi ter assinado o PL.

É legítimo o governo gastar quanto ele quiser com o Vale Gás, só que ele tem que fazer duas coisas: tem que ter orçamento e, se não tiver, tem que aprovar no Congresso. Tem que mostrar que cabe nas regras fiscais que ele mesmo aprovou.
Mas o que o mercado faz? Junta tudo no mesmo bolo, o Vale Gás, o relatório bimestral, etc. Vamos separar as coisas.

[O país] precisa ter uma resposta mais estrutural para a questão climática. Nós estamos literalmente brincando com fogo. Por que não temos uma reserva de contingência no orçamento? A gente tem que voltar a planejar. Ao invés de dar R$ 50 bilhões de reserva de contingência pros parlamentares voarem dinheiro de Brasília pros municípios sem controle nenhum, pega metade disso e coloca para coisas sérias, como investimentos e também uma reserva de contingência, de fato, para essas questões de emergência climática. Tudo dentro do limite atual. Quanto menos você tiver de crédito extraordinário, melhor.

Uma crítica que eu faço a esses créditos enormes que foram feitos é que faça o crédito, mas, de preferência, economize em outro lugar. Não é porque o crédito extraordinário tem essa benção já constitucional que você pode sair gastando sem se preocupar. O primário vai ser afetado, a dívida vai ser afetada.

Reforma orçamentária

A gente precisa ter uma série de questões que começam pela reforma da 4.320, que é aquela Lei Geral de Finanças Públicas, do governo João Goulart. A LDO, que era para ser uma lei de diretrizes, está obesa mórbida. Cada ano ela ganha meia dúzia de quilos e não dá pra sustentar isso. Se você tem uma lei de diretrizes que tem 140 artigos, tem algo de errado. Então essas regras gerais, por exemplo, emendas parlamentares, vão ser vinculadas à receita, ou elas vão ter que respeitar também as regras fiscais, ter uma dotação orçamentária, a impositividade ou o caráter autorizativo do orçamento, o que é obrigação e o que é discricionário. O Brasil perdeu a capacidade de planejar porque planejamento virou um palavrão.

Alta da taxa Selic

Eu acho que o Banco Central (BC) cometeu um erro. Ele fez o que o mercado pediu e ainda foi punido por fazer isso, porque o dólar aumentou e a bolsa caiu, sendo que deveria ter acontecido o contrário. A política monetária tem que ser independente politicamente e do mercado também.

Vai ser um ciclo de aumento com uns quatro ou cinco aumentos de 0,25% provavelmente, afinal, você não faz um aumento e para. Você vai ter que fazer um ciclo agora de ajuste, aperto monetário, para depois, no ano que vem, se as expectativas estiverem de acordo com o que o BC espera, voltar a diminuir os juros.

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Mas ele cometeu um erro porque 10,5% já era uma taxa contracionista. Se você pega esse valor e desconta a inflação esperada, estamos falando de um juro real de mais de 7%. Se a taxa neutra de juros, que é aquela que não acelera e nem desacelera a inflação, é 4,8% como quer o BC, 7% é maior do que isso.

Aumentando o juro, você vai contratar um banho de água fria na atividade. Também corre risco de, dependendo do tamanho desse ciclo, ficar na mão do mercado, porque ele fez essa pressão para que voltasse a aumentar juros. Os diretores falaram demais, ao meu ver.

Tem uma outra coisa que é o Federal Reserve (FED). Já estava na cara que ia começar a reduzir juros. Eles estão reduzindo juros e nós aumentando, então o diferencial de juros vai ficar maior ainda. Perdemos uma oportunidade de aproveitar essa redução dos juros lá fora para atrair mais capital sem fazer nada.
Por outro lado, para não parecer exagerado, o BC deu justificativas técnicas razoáveis na ata e no comunicado.

Próximo Banco Central

Vai ser uma das melhores gestões do BC, pois o Galípolo é genial. Conhece muito de teoria e tem uma experiência prática que ele adquiriu quando foi do governo Serra. Sabe fazer política. Com Haddad, foi uma experiência curta, mas muito intensa, negociando com o Congresso, aprendendo como Brasília funciona.

Como diretor de política monetária, conquistou o mercado muito rapidamente. Ele já dança a música, tanto dos técnicos do BC, quanto desse linguajar do mercado, saber o que é importante falar, o que não pode. Do ponto de vista do Lula, a boa relação só colabora, vai ser algo positivo. É muito melhor quando você tem uma relação próxima do que quando não tem.

Reforma tributária

Fiquei cerca de um ano na Secretaria da Fazenda do estado de São Paulo e pude perceber que o ICMS, de fato, é um sistema muito complexo. Mas é um sistema complexo que a gente sabe como funciona, que tem jurisprudência, e que os contribuintes sabem o que esperar, o Judiciário sabe como agir e o Executivo sabe também. Todo mundo sabe como funciona, apesar dele ser muito complexo.

Quando você vira de ponta cabeça o capítulo de Finanças e Tributação, que é o que a Emenda Constitucional (EC) 132 fez, você toma um risco muito alto de dar errado. Porque você cria muitos dispositivos novos. Para os advogados tributaristas, [o IBS] vai ser uma festa, é um oceano para eles explorarem. Vai criar complexidade adicional.

A CBS, que junta o PIS, Pasep e a Cofins, vai dar certo, porque, na verdade, já era uma ideia antiga de você juntar as legislações, é a mesma base, as alíquotas são parecidas, as regras, as obrigações acessórias, a Receita tem expertise, vai comandar muito bem essa CBS, vai ter até ganhos arrecadatórios, acho. E vai simplificar a vida do contribuinte, além de acabar com o PIS/Cofins.

Agora, você tem o imposto seletivo (IS), que vai ajudar na arrecadação. A maior conversa fiada é que o IS é meramente regulatório — ele é arrecadatório. Todo imposto é arrecadatório e esse principalmente, porque ele vai tributar setores que têm elasticidade e preço de demanda muito baixo.

Agora, o IBS não vai dar certo. Pode escrever e me cobrar, porque vai ter um período longo aí para teste. Você começa em 2026, 2027 com essa alíquota de 0,1% para testar a arrecadação do IBS, em cima do contribuinte.

O Senado conseguiu piorar o texto da PEC e vai piorar o texto dos PLPs. Botaram a regulamentação de novo na mão dos donos da ZFM. A transição [do IBS] é muito longa e os benefícios fiscais vão continuar a pleno vapor, com um adicional e IBS, ICMS e ISS convivendo até 2032. Vai continuar o que tem de benefício atualmente e ainda aumentar.

Crescimento econômico

Meu cenário é que esse ano vai crescer mais perto de 3% e o ano que vem mais perto de 2%. É uma taxa boa relativamente para a nossa média histórica recente. De certo modo, é muito distante do que a gente poderia, mas aí tem um problema estrutural, que é a taxa de juros. Enquanto não tiver uma taxa de juros civilizada, não vai ter crescimento. E para ter uma taxa de juros civilizada, tem que ter um fiscal mais equilibrado. O fiscal melhorou? Melhorou. Mas a gente ainda vai entregar um déficit grande neste ano e provavelmente no próximo também.

Seria importante o governo sinalizar quando vamos ter superávit de novo. Para equilibrar a dívida sobre o PIB, eu, pessoalmente, não entendo que a gente tem que fazer o máximo de superávit possível. Tem que fazer o necessário para estabilizar.
Mas agora, com o ciclo de aperto monetário, você pode ter um risco para o crescimento. Talvez não seja um ciclo muito longo e muito intenso, mas deve criar obstáculos para o crescimento.

Por outro lado, tem uma coisa boa. A demanda externa continua forte. Esse discurso que a China está desacelerando, há anos estão falando isso e ela continua com um crescimento muito razoável. A gente adora esse negócio de ser o ingênuo da sala. Quer mais política de subsídio do que os Estados Unidos faz? E a gente não pode fazer. Agora, a gente faz errado. A gente tem R$ 500 bilhões de gastos tributários que precisavam ser revistos.

Descontingenciamento e uso de banda da meta

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