Guilherme Pimenta

A demora do Poder Judiciário em julgar processos relacionados ao mercado de capitais causa insegurança jurídica e imprevisibilidade a investidores, companhias e demais agentes. A avaliação é do procurador Celso Rocha Serra Filho, chefe da Procuradoria Federal Especializada da Comissão de Valores Mobiliários (PFE-CVM), órgão da Advocacia-Geral da União (AGU).
Na visão do procurador, quando a CVM edita uma norma e essa é judicializada e suspensa liminarmente, "leva-se muitos anos para o processo se encerrar, seja em qual sentido for a decisão final".
"Decisões baseadas em melhores práticas internacionais, levadas a audiência pública, com a colaboração dos participantes do mercado na construção da norma, são objeto de decisões judiciais", avalia o advogado, em entrevista ao JOTA. "Em alguns casos o tema é muito técnico e não há uma especialização no mesmo grau de profundidade por parte do Judiciário."
<a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/cvm-diretor-busca-direito-penal-para-classificar-spoofing-como-manipulacao-26032018" target="_blank" rel="noopener">+ JOTA: CVM - diretor busca Direito Penal para classificar spoofing como manipulação</a>
Celso Rocha Serra Filho cita dois exemplos: o caso dos auditores, judicializado desde 2000 e que está no Supremo Tribunal Federal (STF) sob relatoria do ministro Marco Aurélio Mello. Por força do caso Enron, a CVM estabeleceu padrões a auditores independentes que exerçam atividade no mercado de valores mobiliários, o que causou resistência da classe.
O segundo caso citado pelo procurador é o da obrigatoriedade de divulgação da remuneração mínima, média e máxima dos administradores de companhias abertas, suspensa pela Justiça Federal do Rio de Janeiro desde 2010, aguardando julgamento da apelação pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2).
"A política de remuneração é um assunto de grande interesse. Isso tem relação com uma coisa fundamental nas relações jurídicas que é a prestação de contas acerca do que é feito com recursos de terceiros", argumenta o chefe da PFE-CVM.
Responsável por comandar uma equipe de 22 procuradores federais, divididos entre Rio de Janeiro (21) e São Paulo (1), Celso Rocha entende que a elevação do teto de multa aplicado pela CVM a R$ 50 milhões, trazido pela Lei 13.506/17, que reformou o processo administrativo no âmbito do mercado de capitais, deve aumentar a judicialização dos processos administrativos sancionadores julgados pela autarquia.
Leia a entrevista com o procurador na íntegra:
Como é a comunicação entre a PFE e o colegiado?
No âmbito do processo administrativo sancionador, pode haver pedidos de diligências para a complementação da instrução processual e também a formalização de consultas principalmente sobre aspectos processuais, por solicitação de um dos diretores ou do presidente da CVM. Além disso, participamos das reuniões do colegiado,podendo opinar sobre aspectos jurídicos dos assuntos deliberados, assim como das reuniões de regulação (normatização). Essa participação presencial é um diferencial da PFE-CVM, pois dá agilidade ao processo decisório da CVM.
É da própria natureza do mercado ter uma dinâmica célere, pois sabemos que a toda hora alguém está criando algum novo tipo de contrato de investimento coletivo ou estruturando um novo tipo de operação, e a CVM tem que ter agilidade para seguir essas transformações. Então essa participação presencial da PFE-CVM para dar agilidade aos processos decisórios da CVM é um diferencial. Vale destacar que a PFE-CVM também tem uma participação importante por meio da elaboração de pareceres em atendimento às consultas que nos são formalizadas, e que temos metas de prazo pactuadas para os principais assuntos que nos são submetidos.
A procuradoria consegue ser protagonista com cinco advogados no colegiado?
Continuamos sendo consultados. Com a presença de mais advogados, observamos maior refinamento nas questões jurídicas, como na aplicação da lei e normativos, princípios constitucionais e nos aspectos jurídicos relacionados ao próprio funcionamento do mercado. A PFE continua tendo participação nesses assuntos e também nas questões relacionadas ao manuseio do direito público, pois a CVM é uma autarquia federal. Há várias regras de direito público que incidem a todo instante em questões que têm que ser decididas pela CVM.
Com a formação atual do colegiado, há uma sinergia interessante entre a visão de direito privado e a visão de direito público presentes nos debates. E esse somatório fortalece muito a qualidade da análise jurídica.
As áreas técnicas pedem apoio?
Constantemente, e cito alguns exemplos. Quando a acusação é realizada por meio de “termo de acusação”, a PFE-CVM não participa da instrução, mas emite parecer sobre determinados aspectos objetivos da peça acusatória elaborada pela área técnica. Já os inquéritos administrativos, que demandam investigação e instrução mais aprofundadas, são conduzidos conjuntamente pela Superintendência de Processos Sancionadores (SPS) e a PFE-CVM. Além disso as áreas técnicas formulam consultas sobre aspectos jurídicos relacionados aos casos que estão sob sua análise.
Por exemplo: nas ordens de stop-order, que proíbem alguém de fazer alguma coisa considerada irregular, o processo passa pela PFE-CVM para análise jurídica. Sempre que proíbe-se alguém de fazer alguma coisa, pode haver resistência, inclusive com a judicialização do caso. Essa parte consultiva é importante para diminuir a judicialização, pois há também respaldo jurídico da PFE-CVM em relação ao enquadramento realizado pela área técnica. A PFE-CVM também analisa a legalidade das propostas de termos de compromisso e faz a análise jurídica acerca da presença de indícios da prática de crimes para fins de comunicação ao Ministério Público.
Como que o sr. avalia o papel do Judiciário julgando casos de mercado de capitais?
A necessidade de especialização é uma crítica presente de pessoas que trabalham em setores regulados em geral. Às vezes decisões baseadas em melhores práticas internacionais, levadas a audiência pública, com a colaboração dos participantes do mercado na construção da norma, são objeto de decisões judiciais. Na minha percepção, em alguns casos o tema é muito técnico e não há uma especialização no mesmo grau de profundidade por parte do Judiciário.
Quando a aplicação de uma norma editada pela CVM é judicializada e suspensa liminarmente, leva-se muitos anos para o processo se encerrar, seja em qual sentido for a decisão final, o que gera imprevisibilidade e insegurança jurídica. Podem haver decisões judiciais que por vezes beneficiam apenas a parte dos agentes de mercado que ajuizaram a ação, ou seja, a regra vale para um e não para outros. Esse tipo de situação pode acontecer quando a questão é judicializada. O tempo que um processo judicial pode levar gera imprevisibilidade e insegurança jurídica, o que é um complicador para setores regulados, pois a regulação existe pra isso, para viabilizar investimentos de longo prazo.
(Caso IBEF). O TRF2 está com a apelação da decisão de primeiro grau que suspendeu a obrigatoriedade das companhias de divulgarem os salários dos administradores. O sr. é favorável à divulgação?
Importante esclarecer que não estamos falando de salário individual. Trata-se do vencimento mínimo, médio e máximo dos administradores das sociedades anônimas, por órgão social. Essa é uma prática adotada principalmente em razão da crise de 2008. Outros países exigem a divulgação individualizada. Mas, na época, a opção regulatória adotada pela CVM foi a de que seria suficiente para o investidor conhecer a política de remuneração, se fossem divulgados esses padrões.
Ou seja, mais uma vez <s>é</s> foi adotada uma prática internacional, trabalhada em consenso pelos reguladores de vários países, em que houve judicialização e até hoje está pendente de julgamento a apelação interposta pela CVM. Vale dizer que toda matéria de mérito já foi trabalhada na decisão sobre o agravo de instrumento que chegou a revogar a liminar, mas que acabou sendo sucedida pela sentença desfavorável à CVM. Essa apelação está há quase cinco anos pendente de julgamento.
O mercado de capitais tem uma dinâmica de muita celeridade, mas o Judiciário alarga-se muito no tempo para decidir definitivamente essas questões, gerando insegurança aos investidores.
Que benefício isso traz ao acionista?
A política de remuneração é um assunto de grande interesse. Isso tem relação com uma coisa fundamental nas relações jurídicas que é a prestação de contas acerca do que é feito com recursos de terceiros. Todos que administram recursos de terceiros têm de prestar contas. Se a companhia opta por captar recursos junto aos investidores, deve ter estar disposta a ter esse nível de transparência. A divulgação mais detalhada da política de remuneração é uma prática internacional que surgiu como consequência da crise de 2008, é uma informação que interessa ao acionista, não só à pessoa física mas também ao investidor institucional.
(Auditores) Como o sr. analisa esse caso, que está judicializado, atualmente no STF?
É mais um exemplo de política regulatória adotada pela CVM, que abrange a parcela dos auditores independentes que, por livre e espontânea vontade, exercem atividade no mercado de valores mobiliários. Quando alguém quer exercer uma atividade num setor regulado deve aderir ao regime jurídico correspondente, com uma regulação que observa práticas internacionais, submetida à audiência pública, com publicidade e transparência. Por conta de uma parcela que não se conforma com essa decisão regulatória, judicializa-se a questão e o assunto fica vários anos para ser julgado, amparado apenas numa liminar. Esse é um caso do início dos anos 2000, e que só agora está no STF. São muitos anos de imprevisibilidade e insegurança, lembrando que o caso Enron que trouxe essa discussão sobre a necessidade de regulamentar essa possibilidade conflito entre as atividades de consultoria e auditoria no caso dos auditores independentes.
O Judiciário tem mantido as decisões da CVM?
Apesar dos casos comentados acima, é muito raro o Judiciário reverter uma decisão da CVM. A taxa de sucesso é muito alta. Em 15 anos de PFE-CVM, lembro de poucos casos em que perdemos, e ainda assim por conta de prescrição verificada em processos sancionadores, e não matéria de mérito propriamente dito. Como a maior parte das ações são ajuizadas na segunda região, é possível perceber que no TRF2 a postura é de autocontenção. A linha é de preservar o mérito administrativo de modo geral. Isso na maior parte dos casos.
E com relação às multas: o Judiciário tem mantido os valores impostos?
O recurso ao Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN) [segunda instância] diminui a judicialização, pois existe a possibilidade de reforma das decisões da CVM ainda no âmbito administrativo. No Judiciário, o que percebo é que ou existe anulação ou a decisão é integralmente favorável à CVM, pois os juízes percebem que a dosimetria da pena integra totalmente mérito administrativo se está fixada no teto legal previsto para a multa.
As multas têm sido pagas? Há muitos devedores?
Tem crédito de natureza tributária, que é a taxa de fiscalização, e tem de natureza não tributária, que são as multas aplicadas pela CVM. Temos as multas de natureza de coerção, cominatórias, que não são uma punição, mas sim um meio de coerção para que determinado participante se abstenha de fazer alguma coisa que a CVM considere irregular ou para que pratique um ato ao qual é obrigado por lei, como a prestação de informação periódica. E a multa sancionadora, que é a punição imposta após o desfecho do processo sancionador.
Na maior parte dos casos há recurso ao CRSFN, com efeito suspensivo, que impede a cobrança. Com o retorno dos autos para a CVM, faz-se a cobrança administrativa, com a notificação do acusado. Não havendo o pagamento é realizado o protesto da dívida ou o ajuizamento de execução fiscal.
Atualmente trabalhamos num regime de força-tarefa no âmbito da Procuradoria-Geral Federal, com a Equipe Nacional de Cobrança (ENAC), para cadastrar os créditos e zerar o passivo da CVM. Esse trabalho começou em fevereiro e estamos otimistas em relação aos resultados desse esforço.
De uma forma geral, as próprias características do processo administrativo, com acusação, ampla defesa e contraditório, são semelhantes às de um processo judicial. Ao final, o processo volta para a CVM executar a multa alguns anos depois das práticas ilícitas, e o que se percebe é uma grande dificuldade de localização de bens em nome do acusado. O tempo necessário ao trâmite do processo administrativo e a possibilidade de judicialização do caso facilita a adoção de medidas voltadas para a ocultação de patrimônio, além dos casos em que a situação econômica do acusado se deteriora naturalmente ao longo do tempo. Às vezes empresas são punidas e estão numa situação pré-falimentar, sem bens. Pessoas físicas também podem chegar a uma situação de insolvência. É uma dificuldade presente na execução fiscal como um todo. A independência das instâncias tem esse efeito, consumindo tempo tanto na esfera administrativa como na esfera judicial. Em outras jurisdições é diferente,havendo modelos em que o processo é conduzido diretamente junto ao judiciário, ou se inicia no âmbito administrativo e pode ser questionado diretamente na segunda instância do judiciário, encurtando o tempo total do litígio.
O aumento das penalidades deve judicializar mais o processo sancionador?
A tendência no início é essa. As multas tiveram aumento significativo de patamar com a Lei n° 13.506/17, o que era extremamente necessário, pois estavam defasadas para a realidade do mercado de capitais. Subindo o valor, a tendência é de que a resistência será maior. Podemos, sim, enfrentar mais judicialização, mas confio na autocontenção do Judiciário em relação ao processo sancionador da CVM.
Como será a implementação de leniência na CVM?
Estamos no processo de elaboração de normas sobre esse assunto. Pode ser interessante, pois no acordo administrativo em processo de supervisão [nome que a lei deu para acordo de leniência] há uma troca que a administração pública faz por informações para viabilizar a acusação de outras pessoas envolvidas, com a revelação de novos fatos, que dificilmente seriam descobertos sem esse tipo de colaboração. O mérito da leniência é o impacto na investigação de condutas ilícitas praticadas em conluio. Percebemos isso nos crimes praticados por organizações criminosas, e no mercado de capitais, o insider trading, por exemplo, é um bom exemplo de ilícito administrativo praticado em conluio.
E a Lei n° 13.506/17 prevê a aproximação da CVM com o Ministério Público quando houver indícios de crime, sendo possível a celebração de acordos conjuntos pelas duas instituições. O que o meio jurídico percebe é que com o acordo de leniência e a delação, existe a possibilidade de muitos órgãos serem competentes para a celebração de acordos dessa natureza sobre os mesmos fatos. Atualmente, estamos numa curva de aprendizado com a aproximação de diversas instituições públicas, que precisam formar consenso para garantir segurança jurídica a esses acordos.
Como está a comunicação com o MPF e PF?
Essas são parcerias já antigas, com resultados positivos para a sociedade. A CVM já fez algumas operações conjuntas com a PF, de busca e apreensão, o que dá uma qualidade diferenciada na instrução dos processos sancionadores, como no caso da recente Operação Tendão de Aquiles [caso do suposto insider trading da JBS]. A relação com o MPF é positiva, pois muito do que acontece no âmbito administrativo repercute na esfera criminal, sendo necessária a troca de informações, que qualifica a instrução nos âmbitos administrativo e judicial. Estamos na força-tarefa da Greenfield [operação que apura supostas fraudes em fundos de pensão], por exemplo, auxiliando com o olhar do regulador do mercado de capitais.
Qual sua agenda na procuradoria?
Atualmente eu destacaria a Força-Tarefa com na parte da arrecadação, que está no planejamento estratégico da CVM. É algo que pode dar um retorno bastante positivo numa área em que há muito espaço para aperfeiçoamento. Além disso, já trabalhamos com metas para os principais assuntos que são analisados pela PFE-CVM, sempre com o intuito de contribuir para a maior celeridade dos processos conduzidos no âmbito da CVM.
Antigamente havia mais procuradores na PFE. A equipe reduzida a 22 procuradores está dando conta?
Vivemos um cenário de escassez da administração pública, com uma crise fiscal, e isso atrapalha a administração pública como um todo. Alguns colegas saíram e não tivemos reposição. Procuramos fazer mais com menos, e todos estão tendo esse esforço, mas é fato que o quadro é reduzido se comparado aos anos anteriores.

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JOTA

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