Iuri Dantas

As maiores siderúrgicas do país serão julgadas pelo tribunal administrativo do Cade por abusar de seu poder dominante do mercado e acionar com má-fé a Justiça em mais de 50 demandas sem base concreta, cujo único objetivo era travar importações de vergalhões de aço, prejudicar a concorrência e impedir a chegada de competidores ao país.
Após meses de investigação e uma extensa análise técnica, a Superintendência Geral do Cade concluiu que o Instituto Aço Brasil (IABr) apresentou informações falsas ao Judiciário e praticou um verdadeiro forum shopping - acionando diferentes comarcas e omitindo do juiz que teve a mesma demanda negada por outro magistrado. A Justiça do Ceará, por exemplo, reconheceu litigância de má-fé.
O IABr valeu-se, ainda, de peritos que depois foram declarados suspeitos pelo Judiciário, apresentou-se como representante do Inmetro, sem deter tal classificação do instituto. Em um dos casos, o IABr questionou a ausência de etiquetas de um lote de vergalhões importados, sem mencionar que o extravio ocorreu quando o carregamento foi alvo de perícia judicial solicitada pelo próprio IABr. Em outro, pediu à Justiça para impedir o desembarque de uma lote que não foi importado.
A tática do instituto, de acordo com a Nota Técnica da Superintendência Geral do Cade, era obter liminares sob o argumento de que lotes importados de vergalhão não atendiam normas técnicas brasileiras e por isso poderiam causariam risco aos consumidores.
“O IABr não foi bem-sucedido, ao final, em nenhuma das ações por ele ajuizadas – muito embora o seu objetivo mediato, de criação de dificuldade à importação dos vergalhões, tenha sido amplamente atingido por meio de expedientes processuais dos mais variados”, diz a Nota Técnica da SG.
Diante do quadro descrito pelo IABr, o Judiciário concedia algumas decisões liminares, atrasando em muitos meses o desembarque dos carregamentos, prejudicando importadores e criando um incentivo para que empresas usassem apenas o produto nacional.
“O fato é que o próprio provimento liminar era o meio pelo qual o IABr atingia o seu objetivo anticoncorrencial”, aponta a Superintendência Geral do Cade. “O IABr ajuizou ações de forma totalmente leviana e temerária, para obter provimentos liminares que aumentassem os custos dos seus rivais importadores.”
Ao encerrar a fase instrutória do processo administrativo, a Superintendência Geral do Cade identificou indícios de que o IABr conduziu uma prática anticoncorrencial chamada “sham litigation” - litígio simulado ou abuso do direito de peticionar - prejudicando o mercado nacional de construção civil desde 2011.
<a href="http://sei.cade.gov.br/sei/institucional/pesquisa/documento_consulta_externa.php?FlbC-tUJ9K4BYF3v-rXouAwOSW878fzxqPNpwbm3WXc_0oSCSyM1qiGMiAkQ6SQcpzUnJEYGbD5KMbqhGuQt1g,,">+JOTA: Leia a Nota Técnica da Superintendência Geral</a>
<a href="https://www.jota.info/timeline/sham-litigation-abuso-direito-de-peticionar">+TIMELINE: Um histórico de decisões do Cade </a>
A Nota Técnica recomenda ao tribunal administrativo do Cade, formado por conselheiros com mandato, a punição do IABr por violação da Lei de Defesa da Concorrência. O processo agora será distribuído a um conselheiro que relatará o procedimento e pode concordar ou não com a avaliação da Superintendência Geral. O relator submete seu voto ao Plenário, que decidirá se as empresas violaram a lei e eventualmente a multa a ser aplicada.
O IABr é formado pelas gigantes ArcelorMittal, Aperam, CSN, Gerdau, Sinobras, Thyssenkrupp, Usiminas, Vallourec &amp; Sumitomo Tubos do Brasil (“VSB”), Vallourec, Villares Metals e Votorantim Siderurgia.
Critérios técnicos do sham litigation
As autoridades responsáveis pela fiscalização do livre mercado e da competição adotam critérios para identificar se uma empresa buscava de forma legítima o Judiciário - agências reguladoras, escritórios de patentes etc - ou se o expediente tinha o único objetivo de prejudicar a concorrência.
Essa análise precisa ser ainda mais criteriosa quando o caso ocorre no Brasil, devido às possibilidades mais amplas de acionar o Judiciário. Em relação especificamente ao IABr, a Superintendência Geral do Cade adotou uma lista de critérios para determinar a existência de sham litigation, além da chamada “regra da razão” - por meio da qual verifica-se a racional econômica por trás da estratégia da empresa, se ela busca elevar seus lucros de forma lícita ou não.
A lista de critérios foi construída a partir da experiência internacional e da própria jurisprudência do Cade, que já condenou empresas por sham litigation em diferentes setores da economia. Na avaliação da Superintendência Geral do Cade, deve-se considerar:
“(i) a plausibilidade do direito invocado; (ii) a veracidade das informações; e (iii) a adequação e razoabilidade dos meios utilizados e a probabilidade de sucesso da postulação, ou seja, se a medida adotada pela parte representada teria por objetivo, por si, causar constrangimento/prejuízo aos negócios do concorrente, e não um provimento favorável.”
A racional econômica do IABr foi avaliada com base em atas de reuniões internas e nos argumentos apresentados à Justiça, além dos documentos apresentados pelo instituto em resposta aos questionamentos do Cade.
“As atas do IABr indicam que havia, no âmbito do IABr, um movimento para buscar barrar importações”, diz a Superintendência Geral.
Ou seja, os documentos comprovariam que o argumento do instituto usado na Justiça, de preocupação com a conformidade técnica, escondia na verdade uma estratégia de defesa comercial, uma vez que eram tratados por um grupo voltado para essa questão no IABr e não por um grupo técnico, por exemplo. Além disso, a preocupação técnica do instituto se limitaria exclusivamente aos vergalhões importados, deixando de fora os produtos nacionais.
“O que foi mostrado de forma clara - e isso não foi refutado pela defesa do IABr - foi que existia um interesse do IABr de combater a importação de vergalhões de aço, o que atribui motivo e racionalidade para a prática anticompetitiva do IABr”, diz a nota técnica.  “É inegável a atuação do IABr no sentido de tentar, por diversos mecanismos, montar uma estratégia de defesa comercial dos produtos siderúrgicos nacionais.”
Mais de 50 ações judiciais
A investigação foi iniciada em abril de 2011 a partir de representação da Associação Brasileira das Empresas Importadoras de Fabricantes de Aço (“Abrifa”). As cargas, em sua maioria importadas da Turquia, permaneceram nos portos aguardando perícia judicial, após a concessão de liminares, prejudicando os competidores não instalados no Brasil.
Desde 2011, o número de ações judiciais empreendidas pelo IABr cresceu de 35 para 53 - a mais recente ajuizada em 2014.
Em extensa e pormenorizada análise de cada processo movido pelo IABr, a SG identificou padrões de comportamento com o único objetivo de retardar a entrada de produtos importados no país, com recursos protocolados contra jurisprudência pacífica de tribunais, uso de informações falsas para amparar suas demandas, ações extintas pela falta de legitimidade do instituto para promovê-las, laudos de perícia considerados suspeitos - e descartados - por magistrados, argumentos contraditórios, entre outros.
“O IABr realizou verdadeira prática de forum shopping, escolhendo o juízo que mais lhe convinha para ajuizar ações com o mesmo objeto e com pedido praticamente idêntico,”, aponta a Superintendência Geral. “É sintomático que o IABr nada tenha dito a respeito desta ação em toda a sua defesa. De fato, não há como negar sua evidente má-fé, neste caso.”
Falta de lealdade processual
O argumento principal do IABr à Justiça era a desconformidade dos vergalhões importados com as normas técnicas nacionais. Os lotes vindos do exterior não teriam sido totalmente avaliados pelo Inmetro, apenas “meras amostras” dos carregamentos passariam pela checagem, por isso era preciso realizar perícia em todos os vergalhões para impedir riscos ao consumidor.
De acordo com a Superintendência Geral, porém, “é possível constar que as ações ajuizadas não apresentavam qualquer indício de irregularidade dos vergalhões importados”.
“Ao ocultar a total extensão dos fatos que davam suporte à sua tese, o IABr deixou de agir com lealdade processual e levou juízes a erro, apresentando a conotação de que todos os produtos importados teriam apresentado não conformidade”, aponta a SG. “Mais ainda, quando o IABr oculta que uma perícia não encontrou vícios na maior parte dos lotes inspecionados, falta de forma frontal com seu dever de dizer a verdade.”
Além de prejudicar o mercado de construção civil e os consumidores, o IABr também teria violado o artigo 17 Código de Processo Civil (Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade).
A apresentação de informações falsas ao Poder Judiciário pode configurar a conduta de fraud litigation, passível de punição quando associada a um propósito anticoncorrencial”, avalia a SG. “Os fatos investigados neste caso dão conta de que tal conduta aparentemente ocorreu de forma reiterada e contundente.”
Agente não reconhecido pelo Inmetro
Com o objetivo de convencer juízes a conceder as decisões liminares, o IABr apresentava-se como uma espécie de fiscal do mercado, autorizado e endossado pelo Inmetro. Como neste trecho de ação movida pelo instituto e reproduzido pela Superintendência Geral na Nota Técnica:
“A Recorrente é tida como referência junto ao INMETRO no que tange à fiscalização do mercado de aço, participando ativamente, inclusive, do Programa de Acompanhamento de Mercado por Agente Externo, criado pelo INMETRO em razão da necessidade de se intensificar a verificação e fiscalização de conformidade dos produtos junto ao mercador (sic) consumidor.”
O Inmetro, porém, refutou tal classificação.
“O IABr nunca foi reconhecido pelo Inmetro como um agente externo”, disse o instituto ao Cade. “Mais uma vez: o IABr nunca se enquadrou nos requisitos do Programa de Verificação da Conformidade por Agente Externo, limitando-se a trazer denúncias pontuais, feitas de forma não sistematizada, ainda que sempre tenhamos que dar tratamento às mesmas.”
A conduta empreendida pelo IABr, ao se apresentar como um tipo de agente do Inmetro sem deter tal classificação, serviu para “dissimular” seu objetivo de barrar concorrentes internacionais, quando, na verdade, “suas reais intenções nas ações ajuizadas”, de acordo com a Superintendência do Cade, “pouco tinham a ver com zelar pela qualidade e segurança.”
“É bastante claro que o IABr apresentou informação falsa ao Poder Judiciário, qualificando-se como o que não é para atribuir a si próprio um véu de entidade de interesse público, de modo a indicar uma suposta imparcialidade em suas condutas e conferir legitimidade às suas ações”, diz a nota técnica da SG.
Argumentos de defesa ilegítimos
A Superintendência Geral do Cade faz duras críticas à postura e argumentos apresentados pela defesa do Instituto Aço Brasil durante a instrução processual. Em dado momento, reitera que não é possível usar uma doutrina internacional para amparar as ações levadas a cabo no Brasil.
“A defesa do IABr não apresenta sequer um argumento legítimo”, diz a nota da Superintendência Geral. “Cumpre mencionar que os argumentos apresentados pelo IABr são de tal forma levianos e descontextualizados.”
Em diversos trechos da nota, a SG identifica a tentativa do IABr de justificar suas ações na Justiça ou convencer a autoridade antitruste sem contar toda a história ou “deturpar os fatos”.
“Chega a ser pueril a estratégia adotada pelo IABr em sua defesa, em continuidade à estratégia que empreendia no Poder Judiciário de apresentar meias verdades, omitir informações essenciais por afirmar que não são relevantes, deturpar os fatos e até citar doutrina de forma distorcida, para passar uma impressão que não existe.”
Em outro caso, relacionado a um processo movido no Ceará contra uma carga que não chegou a ser importada, o IABr prestou informações “equivocadas” à SG, segundo a Nota Técnica.
O Instituto Aço Brasil afirmou ao Cade que a “mercadoria não foi encontrada” e que o processo foi extinto sem resolução de mérito por “falta de interesse de agir”.
“Cumpre afirmar que o IABr apresenta uma postura clara que conota seu propósito de foi dificultar ou impedir a investigação da SG”, aponta a nota.
Em relação a outro processo, os argumentos de defesa do Instituto Aço Brasil são classificados como sem propósito. “A defesa do IABr é improcedente, pois é completamente despropositado falar que a perícia realizada por um perito reconhecido como suspeito – e, portanto, parcial - teria validade.”
O Instituto também buscou convencer a autoridade antitruste brasileira de que haveria “imunidade” para que agentes econômicos usassem a arena política, mesmo para prejudicar concorrentes.
“Convém mencionar, apenas a título de esclarecimento, que a doutrina Noerr Pennington não protege, imuniza ou resguarda agentes que atuam no mercado brasileiro. Tal doutrina pode ser utilizada como exercício de direito comparado, mas não se trata de uma norma legal”, diz a Nota Técnica da Superintendência Geral. “Esse esclarecimento é importante para que, ao contrário do que afirma o IABr, não se pense que existe ‘imunidade antitruste contra a atividade de um agente, no campo da arena política, ainda que com o único propósito de prejudicar o seu concorrente’.”
A SG pede a condenação do IABr por infração à Lei 12.529 - artigo 36, incisos I,II e IV, e § 3º incisos III, IV e VII.
Art. 36.  Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: 
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; 
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; 
IV - exercer de forma abusiva posição dominante. 
§ 3o  As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica: 
III - limitar ou impedir o acesso de novas empresas ao mercado; 
IV - criar dificuldades à constituição, ao funcionamento ou ao desenvolvimento de empresa concorrente ou de fornecedor, adquirente ou financiador de bens ou serviços; 
VII - utilizar meios enganosos para provocar a oscilação de preços de terceiros;

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JOTA

Superintendência do Cade aponta prática de sham litigation pelo Instituto Aço Brasil

Siderúrgicas violaram Lei da Concorrência ao travar importados

Superintendência do Cade aponta prática de sham litigation pelo Instituto Aço Brasil