Guilherme Pimenta

Os quatro conselheiros indicados pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) em agosto de 2019 deixaram o órgão antitruste mais imprevisível, alterando a dinâmica interna de julgamentos e posicionamentos jurisprudenciais de décadas da autarquia.
Passado mais de um ano da chegada de Lenisa Rodrigues Prado, Luiz Hoffmann, Sérgio Ravagnani e Luis Braido ao Tribunal da autarquia, a avaliação de membros do órgão, servidores, advogados militantes no conselho e diretores jurídicos de empresas ouvidos pelo JOTA é no sentido de que o Cade passou a ser um órgão mais conflituoso, com possível prejuízo para a segurança jurídica e com disputas internas mais evidentes - o que antes não era tão visível.
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O Cade é uma autarquia vinculada ao Ministério da Justiça responsável por analisar infrações contra a ordem econômica, como cartéis e condutas unilaterais, além de ser responsável por dar o aval ou rejeitar grandes fusões e aquisições, tanto nacionais como internacionais. O Tribunal do órgão conta com sete julgadores (o presidente e seis conselheiros).
As indicações do Palácio do Planalto em 2019 <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/concorrencia/outsiders-nomes-de-bolsonaro-para-o-cade-surpreendem-mercado-23082019" target="_blank" rel="noopener noreferrer">chamaram a atenção na ocasião porque, dos quatro indicados, três conselheiros eram oriundos da área tributária</a> - Hoffmann, Lenisa e Ravagnani - e nenhum deles tinha atuação prévia com Defesa da Concorrência. Braido, por sua vez, foi o único economista indicado.
Sucessivos pedidos de vista, avocações ao Tribunal de processos já finalizados no âmbito da Superintendência-Geral do órgão e votos no sentido de mudar posições consolidadas têm causado preocupação em quem acompanha de perto o tribunal.
No fim de setembro, por exemplo, o Cade voltou a julgar mais um processo sobre a disputa bilionária na qual se discute a cobrança da THC2, tarifa cobrada no setor portuário, alvo de disputas intermináveis no Cade e no Poder Judiciário.
Desde então, o julgamento já foi pautado para três sessões, mas ainda não foi concluído, já que houve três pedidos de vista: Lenisa Prado, Luis Braido e Sérgio Ravagnani.
Além dos sucessivos pedidos de vista, o tema envolvendo a cobrança da tarifa portuária também tem revelado animosidades entre os conselheiros. Na sessão da última quarta-feira (9/12), a conselheira Lenisa Prado pediu vistas de dois processos sobre o assunto - todos os demais conselheiros anteciparam seu voto, isolando-a.
Tem sido relatado, nos bastidores, que essa animosidade é devido ao fato de alguns dos novos membros estarem alterando a dinâmica de processos internos, muitas vezes não avisando as partes ou os demais conselheiros sobre tendências de votos em atos de concentração ou até mesmo na avocação de processos.
Por outro lado, também é dito que o incômodo com essas mudanças se dá pela ala mais conservadora do Cade, que não quer ter entendimentos consolidados alterados por conselheiros com uma outra visão do direito antitruste.
Em uma das principais mudanças recentes, o Cade aprovou, pela primeira vez na sua história, uma condenação com base na chamada "vantagem auferida", temor de advogados e empresas.
Com a vantagem auferida, em suma, o Cade realiza cálculos sobre o quanto empresas ganharam ao participarem de um cartel. Com base neste parâmetro, uma multa é aplicada.
Tradicionalmente, no entanto, o Cade vinha afastando esse modelo, com a maioria do Tribunal alegando que seria impossível calcular a vantagem auferida em casos de cartel. Assim, calculava-se a multa com base em percentuais de faturamento da empresa cartelista.
Um voto-condutor da conselheira Paula Azevedo mudou o entendimento consolidado. Na última sessão do ano, o órgão aprovou por maioria sua proposta de aplicar uma alíquota base de 20% em um cartel no qual não foi possível obter dados sobre os faturamentos das empresas.
Com a vantagem auferida, é comum que as multas aplicadas a empresas e pessoas físicas sejam maiores, o que preocupa advogados. De outro lado, defensores da tese destacam que ela é positiva para aumentar o enforcement da autoridade antitruste, alegando que, pelo método tradicional, as multas aplicadas seriam defasadas, não capazes de inibir condutas anticompetitivas.
Todo este cenário tem levado o Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), que reúne advogados especialistas em defesa da concorrência, a agendar reuniões com alguns conselheiros para demonstrar preocupação com uma possível insegurança jurídica devido aos posicionamentos da nova composição.
<h3>Imprevisibilidade</h3>
Um caso citado por membros do órgão e advogados como paradigmático para o novo momento no Cade foi o julgamento do ato de concentração sobre a aquisição da Siderúrgica Latino Americana (Silat) pela Gerdau Aços Longos, que ocorreu no dia 23 de setembro.
Na ocasião, o Tribunal manteve decisão da Superintendência-Geral da autarquia (SG) pela aprovação da operação sem a imposição de restrições. O processo subiu ao tribunal após um recurso do terceiro interessado.
Apesar de o entendimento da SG não ter sido alterado no mérito, o que chamou a atenção foi o fato de três conselheiros terem votado pela reprovação do caso, o que pegou de surpresa tanto as empresas quanto quem acompanha o órgão.
Este caso teria preocupado o mercado, segundo advogados relataram ao JOTA, tendo em vista o momento de crise econômica e o fato de que algumas fusões relevantes estão previstas para serem julgadas pela autarquia no próximo ano.
As partes envolvidas na negociação também não teriam sido avisadas de que havia risco de a operação ser reprovada pelo Tribunal, o que é praxe em casos complexos, até para dar chance de as empresas envolvidas negociarem remédios (saídas, como venda de ativos, que possam resultar na aprovação da operação).
"Quando trabalhamos em um caso complexo, é natural haver dificuldades. O problema é quando a empresa não é notificada e somos pegos de surpresa", disse um advogado experiente na área.
"Este caso, bem como a forma de condução, gerou temor nas empresas. Agora, casos não necessariamente complexos do ponto de vista antitruste, principalmente com a tendência de aumento de pedidos de avocação, podem ter dificuldade de serem aprovados", relatou outro advogado experiente na área de Direito da Concorrência.
<h3>Avocações</h3>
Outro ponto que tem chamado atenção de advogados e membros do órgão são as avocações - quando um conselheiro solicita que uma operação já aprovada diretamente pela Superintendência-Geral vá para análise do Tribunal.
O JOTA apurou que, na metade do ano, os conselheiros se organizaram entre si e elaboraram internamente uma análise sistemática de atos de concentração encerrados na SG para decidir se é ou não caso de avocar o caso, processo por processo.
Se de um lado os advogados temem e se preocupam com avocações - já que elas atrasam mais o encerramento de processos e deixam clientes aflitos -, uma ala dentro do Cade avalia que deve haver até mais avocações. Esses membros do órgão relataram que, ao contrário do que era feito até a nova composição, deve haver um maior controle de processos que são concluídos na SG.
"Isso não era uma prática antes, mas achamos que é mais benéfico para o Direito da Concorrência, tendo em vista o poder da SG. Apesar das críticas, essas não serão as últimas avocações", alertou um membro do Tribunal.
A líder de pedidos de avocações em 2020 é a conselheira Lenisa Rodrigues Prado. Desde o início do ano, ela sugeriu avocar três atos de concentração - aquisição da Kepler por um fundo de investimentos, joint venture entre a Delta Air Lines e a Latam Airline Group e a fusão entre Fiat Chrysler e Peugeot Citroën. Somente a avocação Delta/Latam foi aprovada pelo plenário.
Além de Lenisa, os conselheiros Luis Braido e Luiz Hoffmann propuseram avocar, cada um, um processo em 2020: compra da Bunge pela Seara e compra da Imcopa pela Bunge, respectivamente. As duas foram aprovadas pelo Tribunal.
"Avocações fazem parte do processo e, muitas vezes, são necessárias. O problema é fazer isso da noite para o dia, sem comunicar as partes e os demais membros do órgão", ponderou uma fonte sob a condição de anonimato.
Lenisa Prado, ex-conselheira do Carf, é vista como um nome forte do governo perante ao Cade. Além de sua atuação prévia no órgão recursal tributário, um dos principais fatores que a levaram à cadeira na autarquia, segundo o JOTA apurou, seria a proximidade de sua família tanto com a família do presidente da República quanto com outros parlamentares.
Dada essa relação, ela é apontada por quem acompanha o órgão antitruste como uma das cotadas para assumir a Presidência da autarquia ou a Superintendência-Geral do órgão no meio de 2021, quando o atual presidente, Alexandre Barreto, e o atual superintendente-geral, Alexandre Cordeiro, deixarão os cargos.
<h3>Pedidos de vista</h3>
Para além do processo administrativo sobre THC2, sucessivos pedidos de vista também têm causado incômodo em membros do órgão e advogados. Levantamento do Cade mostra que, desde o início de 2020, houve 24 pedidos de vista, contra 12 de 2019 e 17 de 2018.
Além do número, a proporção é o que mais chama atenção: em 2020, o Cade julgou 78 processos. Ou seja: a cada quase três casos julgados, há pedido de vista em um deles. Em 2019, além de ter havido menos pedidos de vista, o órgão antitruste julgou mais: 97 processos.
Em 2020, quem mais pediu vista foram os conselheiros Lenisa Rodrigues Prado e Sérgio Costa Ravagnani, em sete casos cada um. Eles são seguidos por Luiz Hoffmann, com quatro, Paula Azevedo, com três, e Luis Braido, com dois. Maurício Oscar Bandeira Maia pediu vista de um processo em 2020.
Quando a conselheira Lenisa pediu vistas de um processo envolvendo a cobrança de THC2, na última quarta-feira, o conselheiro Luis Braido, primeiro a antecipar seu voto, criticou publicamente: "Lamento o pedido de vistas, pois atrasa nossa decisão e enfraquece o colegiado. Peço que o caso volte na primeira oportunidade", declarou no julgamento.
Internamente, há divergências entre os conselheiros sobre o que pode estar levando a um maior número de pedidos de vista nesta composição: o fato de os novos membros não terem conhecimento prévio da matéria antitruste e estarem aprendendo aos poucos, a pandemia do coronavirus ou até mesmo o perfil de cada julgador, pois teriam conselheiros que gostam de ser mais cuidadosos com os casos.
"Quando pedimos vista, é porque queremos estudar o processo, folha por folha, até para dar mais chances e oportunidades de defesas aos representados", declarou a conselheira Lenisa Rodrigues Prado ao JOTA.
Entretanto, há membros do órgão que concordam que, de fato, o alto número pode atrapalhar - e atrasar - a dinâmica do órgão. "Precisamos nos atentar a isso", disse um membro do Tribunal.
Além de Lenisa, o outro líder de pedido de vistas também é um nome forte no Cade. Ravagnani também chegou ao órgão por indicação da Casa Civil. Antes de indicado, ele foi subchefe adjunto de Política Econômica na Subchefia para Assuntos Jurídicos do órgão.
Por isso, ele também é um dos cotados para assumir ou a presidência do Cade ou a Superintendência-Geral da autarquia, no meio de 2020.
Cordeiro, por sua vez, também é visto politicamente como um nome forte para assumir a presidência do Cade no meio de 2021, tendo em vista que, além de ser titular da SG, já foi conselheiro do órgão no passado.
<h3>Mudança de posicionamento</h3>
Um voto recente de Sérgio Ravagnani também foi visto como um exemplo de imprevisibilidade e mudanças no Cade sob a nova composição. Durante o julgamento de um processo administrativo, em 4 de novembro, o conselheiro votou para afastar a punição do Cade a pessoas físicas não administradoras de empresas. Segundo o conselheiro, o Cade não teria competência para tanto.
O caso foi suspenso após um pedido de vista de Luiz Hoffmann. O entendimento foi criticado por membros da Superintendência-Geral e do MPF junto ao Cade, que deve apresentar memoriais aos conselheiros indicando supostos riscos deste possível novo entendimento, principalmente no Judiciário, já que mudaria um posicionamento de décadas do órgão.
"O voto do Sérgio foi importante e levantou uma reflexão. Outras composições não se atentaram a isso, mas a lei, de fato, permite interpretar que o Cade não é competente para punir pessoas físicas não administradoras", ponderou um membro do Cade.
"O voto do conselheiro não faz nenhum sentido e é muito perigoso. A lei não dá margem para outra interpretação senão aquela que permite ao Cade multar pessoas físicas não administradoras de empresas", rebateu outro membro da autarquia.
Quem acompanha o Cade também tem observado alguns embates entre o conselheiro Sérgio Ravagnani e o presidente do Cade, principalmente em questões sobre interpretações do regimento interno do órgão durante a condução das sessões.
Apesar das preocupações de advogados, ex-colegas de Ravagnani no serviço público relatam que os posicionamentos do conselheiro no Cade são reflexos de um julgador cuidadoso, que sempre quer analisar processos com lupa - mesmo que isso resulte em pouco mais de atraso para julgamentos. O conselheiro também é procurador da Fazenda Nacional.
Outro posicionamento recente que chamou atenção e tensão interna foi uma fala da conselheira Lenisa Prado em evento online promovido pelo Ibrac, que sempre convida conselheiros para debater questões antitruste.
Na ocasião, Lenisa Prado fez considerações sobre o programa de leniência do Cade, referência internacional e também para outros órgãos brasileiros. Sua fala foi interpretada por uma ala do órgão antitruste como crítica ao programa, o que levou a conselheira a dar explicações internas.
Lenisa defende, no entanto, que não criticou o programa, mas tão somente sugeriu aprimoramentos. Outra ala de conselheiros ouvidos pelo JOTA afirmaram, por outro lado, que não haveria problemas institucionais em a conselheira tecer críticas ao programa, mesmo que este seja referência internacional.
Já em relação às propostas de mudanças de posicionamento, a conselheira defendeu que mudanças de posições são naturais. "Jurisprudência é um ser vivo. Rupturas são naturais, mas sempre tive a preocupação com a legalidade e constitucionalidade dos processos."
Com a última sessão na quarta-feira (9/12), o Tribunal do Cade volta a se reunir no início de fevereiro de 2021.

Cade

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JOTA

Pedidos de vista, avocações de processos e mudanças em entendimentos consolidados preocupam membros do órgão

Indicados de Bolsonaro deixam Cade mais imprevisível

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