SUPRA

Quando juiz consulta expert por telefone

No atual contexto, ser pragmático e deferente também passa por buscar caminhos institucionais

Fux reeleição Câmara
Foto: Carlos Moura/SCO/STF

Numa série de três artigos de opinião publicados nos jornais de grande circulação do país, o futuro presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux, fez algumas recomendações para os juízes em tempos de pandemia da Covid-19 (aqui, aqui e aqui). A receita de Fux pode ser resumida no seguinte binômio: pragmatismo e deferência epistêmica. Os juízes devem abandonar uma postura dogmática e técnica e aplicar (ou não) o direito de acordo com as consequências de suas decisões. Porém, para que possam calcular as consequências de forma apropriada, é preciso tenham a humildade de deferir aos conhecimentos dos experts.

Como alertou Fernando Leal, a equação de Fux é complexa e imbricada. A consideração das consequências de uma decisão judicial não eliminará encruzilhadas valorativas, como o ministro parece supor; e o apelo aos experts pode ocorrer em cenários de incerteza ou divergência científicas. Pode ser que os juízes tenham de lidar com casos que desafiem os conhecimentos dos próprios experts que os deveriam auxiliar. Ao contrário do cientista, cuja investigação leva o tempo que for preciso, o juiz não pode postergar indefinidamente a resolução de um conflito. O direito pode pedir mais do que a ciência é capaz de oferecer.

Será que Fux está ciente dos desafios e das responsabilidades que resultam de suas recomendações? Em um dos artigos publicados, ao falar de sua experiência profissional, o ministro confessou: “Eu mesmo, na minha cadeira no Supremo Tribunal Federal, faço do meu telefone e de ofícios de prazos exíguos (24 ou 48 horas) instrumento [sic] para complementar conhecimento de outras ciências para as quais não fui preparado profissionalmente antes de decidir.”

A confissão de Fux é preocupante. Será que, para conceder uma medida cautelar, diante do perigo da demora, o ministro telefona para um expert de plantão? Quem seria esse expert de confiança do ministro? Será que o expert para quem o ministro telefona quando precisa possui algum interesse conflitante? Será que ele possui as certificações necessárias (mas não suficientes) – como títulos e credenciais, publicações, experiência profissional etc.?

Será que a conclusão do expert consultado é consistente com o que outros experts da área afirmam? O expert realizou ou se baseou em pesquisas que adotam teorias e métodos confiáveis? Será que o ministro confia em um só cientista para resolver as suas dúvidas epistêmicas; ou sua agenda telefônica possui contatos de experts para variados assuntos?

Inclusive, quando o ministro escreve que “coronavírus não é habeas corpus”, sugerindo uma postura de maior contenção judicial em face da disseminação do novo coronavírus na população carcerária do país, ele pode passar a impressão de que seu expert de confiança não tenha considerado estudos científicos sérios que apontam para o sentido contrário.

Em artigo recente publicado no The New England Journal of Medicine, médicos especialistas em políticas públicas na área da saúde sustentam justamente a necessidade de ampliação de medidas para reduzir a população carcerária. As consequências de uma decisão contrária à concessão de habeas corpus para presos que se inserem nas categorias previstas na Recomendação do Conselho Nacional de Justiça devem ser encaradas de maneira global. A disseminação do vírus entre os encarcerados implicará a transferência dos ônus do sistema prisional para o sistema público de saúde, afetando toda a comunidade.

A consulta informal a um especialista pode ser vista como um desvio pouco justificável diante dos mecanismos institucionais de superação de déficits epistêmicos que o direito brasileiro coloca à disposição de um ministro do Supremo. Um ministro pode requisitar informações adicionais a entidades científicas, designar perito ou comissão de peritos, convocar audiência pública ou ainda solicitar a ajuda de amicus curiae. Tudo isso está previsto em leis específicas (9.868/99 e 9.882/99) que regulamentam os processos julgados no Supremo e também no Regimento Interno do tribunal.

A ideia de que um juiz possa consultar um expert por telefone, sem nenhum tipo de controle epistêmico ou respeito à garantia do devido processo legal, é uma postura que contraria o próprio ideal de deferência epistêmica racional e responsável que Fux recomenda aos juízes.

Compreendido literalmente, Fux confessou adotar uma prática que não só é epistemologicamente problemática, mas heterodoxa em relação à sua performance judicial. Até então, o ministro vinha se despontando como um entusiasta dos mecanismos institucionais de consulta aos experts nos tribunais do país. Foi ele, por exemplo, quem mais convocou audiência pública no Supremo nos últimos 13 anos desde a implementação do instituto na prática do tribunal.

Além disso, mais recentemente, o ministro inaugurou uma promissora metodologia de trabalho para estimular o diálogo entre os experts durante as audiências. Até o presente momento, as audiências públicas no Supremo têm sido um palco para monólogos de experts. Salvo poucas exceções, não se vê qualquer discussão crítica ou exercício do contraditório. Contudo, em seus dois últimos despachos convocatórios – referentes às audiências públicas sobre responsabilidade civil dos provedores de internet e juiz de garantias, ambas temporariamente suspensas em razão da Covid-19 –, Fux alterou as regras do jogo. Desde então, afirma-se que um dos propósitos das audiências públicas é propiciar “que essas informações [técnico-científicas] sejam exaustivamente debatidas, testadas e questionadas pelos atores participantes”.

É possível que a confissão de Fux seja uma figura de linguagem. Talvez “faço do meu telefone um instrumento para complementar conhecimento” seja uma espécie de elipse; e o ministro na verdade quis dizer: “telefono para o meu assessor e peço a ele para redigir um despacho onde designo perito para que emita parecer sobre a questão, na forma do artigo 9º, §1º da Lei 9.868/99”.

Se for esse o caso – e esperamos que seja assim –, melhor seria se o ministro não se servisse de uma imagem que enfraquece os contínuos avanços buscados para que o Supremo estabeleça um diálogo responsável com a ciência. No atual contexto, ser pragmático e deferente também passa por buscar caminhos institucionais, e não informais, para enfrentar os desafios epistêmicos que aproximam direito e ciência.