Thomaz Pereira

Diego Werneck Arguelhes

No julgamento sobre a possibilidade de reeleição dos presidentes Câmara dos Deputados e do Senado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Constituição de fato diz aquilo que ela diz – e que o que ela diz deve ser obedecido.  Ou seja, que se, segundo o art. 57, § 4º, é “vedada  a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”, então a recondução é vedada mesmo. Se o Congresso Nacional considera essa regra ruim, deve alterá-la emendando a Constituição.
São conclusões singelas. Mas cinco ministros do Supremo discordaram e o tribunal ficou a um voto de dizer que a Constituição não diz aquilo que ela diz – ou, o que talvez seja pior, que ela até veda a recondução, mas que essa vedação não precisa ser obedecida.
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É raro que o Supremo se divida assim. Segundo pesquisa de Fabiana Luci de Oliveira, entre 1988 e 2014, decisões por apenas um voto de diferença ocorreram em apenas em 1,47% dos julgamentos de ADIs.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Como é possível então que esse caso tenha sido “difícil”?
O voto do relator, ministro Gilmar Mendes, é ilustrativo. Revela problemas mais gerais na relação do Supremo com a Constituição.
O relator procura fazer desaparecer um dispositivo constitucional, tirando das mangas do colete uma permissão onde antes havia uma proibição.
Como muitos truques de mágica, começa-se distraindo a atenção do público, para que olhe para outro lado e não veja o que ocorre na sua frente. No voto de 63 páginas, o art. 57, § 4º da Constituição é mencionado pela primeira vez na página 17; seu teor só é apresentado na página 23.
Para que ninguém foque no que a Constituição diz, discute-se aquilo que ela não diz. Parte considerável do voto é dedicada a explicar que a proibição de recondução dos presidentes da Câmara e do Senado não é “um desdobramento necessário do princípio republicano”, nem “envolve princípio fundamental do Estado brasileiro”.
Para o primeiro ponto, Mendes lista alguns poucos países escolhidos sem critério aparente, exceto talvez pelo que os une: todos permitem a reeleição. Para o segundo, explica que a jurisprudência do Supremo não exige que os estados federais reproduzam necessariamente essa mesma vedação em suas constituições estaduais.
Não há nada de errado nessas duas afirmações. São verdadeiras, até triviais. Mas é assim que se constrói um tipo de sofisma: as premissas são verdadeiras, mas a conclusão que se pretende extrair delas no caso é falsa.
De fato, a vedação à reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado não é “um desdobramento necessário do princípio republicano”.  Também é verdade que não se trata de “princípio fundamental do Estado brasileiro” que exija sua reprodução pelos estados federais. Da soma dessas duas afirmações, porém, não se segue que essa regra constitucional originária da Constituição, elaborada pelos próprios legisladores, não mereça ser respeitada. Mendes deu razões para permitir a eventual emenda da regra pelo Congresso – não para o próprio Supremo fingir que a regra desapareceu do texto.
Esse é um truque argumentativo comum no Supremo, já utilizado inclusive por ministros que, dessa vez, não embarcaram na estratégia. Uma pessoa pode fazer afirmações verdadeiras como parte de um argumento e, ainda assim, o argumento pode estar errado.
Há muitas regras na Constituição que não são desdobramentos necessários de princípios estruturais da ordem constitucional, nem são de reprodução obrigatória pelos Estados. Mas por que isso nos autorizaria a ignorá-las?
No início dos anos 90, o Supremo foi instado a dizer que, como os números máximos e mínimos de representantes dos estados da Câmara dos Deputados produzia desigualdade entre os eleitores, a regra do constituinte originário deveria ser ignorada, em respeito ao princípio da igualdade. O tribunal se recusou.
<blockquote class="jota-article__eye">Segundo o relator, ministro Moreira Alves, o tribunal deve atuar como guardião da Constituição que os constituintes criaram, e não fiscal do que os constituintes deveriam ou não ter incluído no texto. O raciocínio se aplica aqui também.</blockquote>
Empilhando-se nos votos afirmações tão verdadeiras quanto irrelevantes para a conclusão a que se pretende chegar é possível às vezes enganar os incautos, os distraídos e aqueles que desejam ser enganados.
Problema semelhante ocorre com a insistência, no voto de Mendes e dos ministros que o acompanham, em afirmar a importância de “a autonomia organizacional do Poder Legislativo”. Ninguém duvida da sua importância ou proteção pelo texto constitucional. Mas isso não significa que essa autonomia permita aos legisladores desobedecer a uma regra constitucional expressa. Se é verdade que essa autonomia existe, ela é estabelecida pela Constituição e, portanto, nos limites da Constituição – a qual, inclusive, foi escrita e pode ser emendada pelos legisladores.
Mais uma vez, o argumento de Mendes serve apenas para dizer que, se quisessem, deputados e senadores poderiam alterar o texto constitucional nesse ponto. Algo que, no Brasil, ocorre em média cerca de três vezes ao ano (em 2020 foram três, em 2019 foram seis emendas). Mas emendar a Constituição exige votos de três quintos dos membros da Câmara e do Senado, e não de seis ministros do Supremo. Compreender isso é respeitar a autonomia do Legislativo dentro da Constituição, e não por cima dela.
A minoria vencida, porém, quer dizer que é desnecessário fazer qualquer emenda. Para isso, a técnica de se utilizar argumentos verdadeiros que levam a conclusões falsas é utilizada mais uma vez. De tal forma, quando ao público finalmente é permitido olhar para o texto da Constituição, há uma nova prestidigitação.
No caso: é verdade que o texto é objeto da interpretação e que norma é o resultado dessa interpretação; ninguém duvida que “não existe norma jurídica senão norma jurídica interpretada”. É verdade também que interpretação constitucional exige “interpretar uma disposição com base em outras” para “construir uma norma compatível com todas”. Mas, no caso concreto, não há qualquer suposta técnica hermenêutica capaz de transformar a proibição expressa em simples permissão. Qualquer teoria da interpretação constitucional deve reconhecer casos em que um dispositivo constitucional determinará, de fato, exatamente aquilo que seu texto afirma.
Se isso não for verdade nesse caso, em qual caso seria?
<blockquote class="jota-article__eye">Os ministros vencidos pretendiam convencer o público de que desconsiderar o texto constitucional é sinal de sofisticação hermenêutica, prática autorizada a iniciados em saberes jurídicos arcanos.</blockquote>
Mas, como observou a ministra Rosa Weber, não há hermenêutica capaz de justificar “exegeses capciosas que estiquem o sentido semântico das palavras até que expressem qualquer coisa, e a Constituição já mais nada signifique”.
No Brasil de hoje, não há mais necessária sofisticação teórica do que compreender que obedecer a Constituição significa respeitar aquilo que ela determina - <a href="http://dfj.emnuvens.com.br/dfj/article/view/622" target="_blank" rel="noopener noreferrer">e não aquilo que ela não diz, mas gostaríamos muito que dissesse.</a>
Em seu inequívoco voto, a ministra Rosa Weber observa que “a deslealdade ao texto constitucional caracteriza preocupante ofensa ao pacto da sociedade brasileira em torno do propósito de conferir força ativa aos compromissos assumidos no plano constitucional”, e que o Supremo “não pode legitimar comportamentos transgressores da própria integridade do ordenamento constitucional”.
Essas, sim, são premissas necessárias e suficientes para se decidir esse caso – um problema juridicamente simples, em que a única dificuldade está em resistir à tentação de se colocar acima da Constituição.
** Este é o primeiro de uma série de três textos sobre o julgamento da ADI 6.524, decidida no plenário virtual do STF entre 04 e 12 de dezembro de 2020
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O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Fabiana Luci de Oliveira, Quando a corte de divide: coalizões majoritárias mínimas no Supremo Tribunal Federal, Rev. Direito &amp; Praxis, 2017.

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JOTA

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