Pedro Cantisano

Enquanto o presidente Jair Bolsonaro diz que vai exercer seu direito de não ser vacinado e o Supremo Tribunal Federal (STF) decide pela obrigatoriedade da vacina, a Revolta da Vacina de 1904 retorna ao imaginário popular. Na época, o Supremo reagiu com cautela, pressionado pelas ruas, de um lado; e pela ciência, de outro.
Em 1904, o presidente Rodrigues Alves estava determinado a reformar o Rio de Janeiro. Indicou Pereira Passos e Oswaldo Cruz para modernizar e sanear a capital. Entre as centenas de desapropriações ordenadas por Passos, Cruz investiu na erradicação de doenças como a febre amarela e a varíola.
<div id="sdr-inbound-pro-poder-stf-stj-empresas-5fdfd59734051017cef9" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-pro-poder-stf-stj-empresas-5fdfd59734051017cef9', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
Contra a febre amarela, adotou o método militar usado pelos Estados Unidos em Cuba e no Panamá. Agentes sanitários invadiam casas para realizar expurgos com enxofre que matavam os mosquitos transmissores. Para combater a varíola, escolheu a vacina, que já vinha sendo aplicada em menor escala no Rio desde a década de 1810. Os expurgos se intensificaram em julho de 1904 e a lei de vacinação obrigatória seria aprovada em 31 de outubro.
<blockquote class="jota-article__eye">Os sanitaristas se apresentavam como representantes de uma ciência “despolitizada”. Mas a história mostra que, no início do século 20, isso era uma utopia elitista.</blockquote>
A população não tinha acesso a informações sobre a vacina e havia demonstrado ceticismo em relação ao método desde o século 19. A violência dos expurgos criava ainda mais insatisfação nas ruas.
Aproveitando o momento, um grupo de civis e militares golpistas usou a imprensa e atos públicos para instigar revolta e desestabilizar a capital. Entre as palavras de ordem, estavam a “liberdade individual” e a “inviolabilidade de domicílio”. A lei de 31 de outubro e a circulação de um suposto decreto regulamentador que indicava inúmeras restrições a direitos para quem não tomasse a vacina deram início aos confrontos. Quando o povo tomou as ruas, os golpistas marcharam para tentar derrubar o presidente.
No dia 11 de novembro, em meio a pedradas e tiros, o advogado Deodato dos Santos pediu à Justiça federal um habeas corpus preventivo para si e para sua família contra a vacina. Deodato argumentou que a vacinação obrigatória violava sua integridade física e seus direitos à liberdade e segurança individuais. Articulando um discurso obscurantista que era comum na virada do século, Deodato escreveu que “ninguém conhece os meios de agir da vacina” – “uma prática empírica, sem base científica.”
Para o juiz federal, a decisão nesse caso era fácil: o pedido era inoportuno porque não havia regulamento para a vacinação obrigatória, apesar dos boatos.
Para conter a revolta, Rodrigues Alves mobilizou tropas. Centenas de pessoas foram presas e desterradas para o Acre. Algumas estavam envolvidas na tentativa de golpe; outras foram vítimas de um plano higienista para limpar a capital de indesejados, como desempregados, sem-teto e agitadores políticos. A vacinação obrigatória foi revogada. O caso da vacina contra a varíola não chegou ao Supremo.
Porém, os expurgos domiciliares do combate à febre amarela aumentaram. Sob a sombra da revolta, em janeiro de 1905, o Supremo foi chamado a decidir sobre a constitucionalidade do método.
O caso Manuel Fortunato, hoje, é conhecido porque sobreviveu na doutrina jurídica e na memória institucional do Supremo. A decisão, no entanto, foi muito mais modesta do que sua notoriedade sugere.
Fortunato queria um habeas corpus preventivo para evitar o expurgo de sua residência. Seu advogado, Pedro Tavares Jr., publicou seus argumentos nos jornais e alertou os ministros que uma nova “revolução” poderia vir das ruas.
No entanto, o Supremo da Primeira República sofria com a instabilidade política e os governos autoritários. Talvez deliberadamente, para evitar confronto com o Executivo, os ministros só decidiram o caso depois que um exército de agentes sanitários e policiais já havia realizado o expurgo na casa de Fortunato. A decisão não impediu o dano individual, mas foi fiel ao texto constitucional. A Constituição de 1891 determinava que exceções à inviolabilidade de domicílio deveriam ser criadas por lei. Como os expurgos tinham por base jurídica um decreto presidencial, o Supremo os julgou inconstitucionais.
Nos meses seguintes, a decisão do Supremo continuou sem efeitos práticos. No dia-a-dia da capital, quando alguém pedia habeas corpus preventivo contra expurgo, juízes federais ou negavam o pedido ou protelavam o caso até que o expurgo fosse realizado. Ninguém queria ser culpado por uma nova epidemia de febre amarela. Por uma “epidemia constitucional”, como sugeriu o jornal O Paiz.
Em 1907, o governo declarou a erradicação da febre amarela na capital. Em 1908, a varíola matou o dobro de pessoas do que havia matado em 1904.
A história da Revolta da Vacina é de insatisfação popular com métodos violentos adotados por cientistas “despolitizados”. A ciência e as ruas entraram em conflito. Hoje, com a aceitação da vacina consolidada (apesar dos retrocessos), precisamos de um movimento que una os dois lados contra o obscurantismo do século 21. A decisão do Supremo que sancionou a obrigatoriedade da vacina é apenas o começo da luta por uma política nacional de vacinação efetiva.
<hr />
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
<hr />

50575364278_d78cdddce6_o

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

A cautela do STF em 1904: pressionado pelas ruas, de um lado; e pela ciência, de outro

O Supremo e a pandemia: o que a Revolta da Vacina diz sobre direito e vacinação

A cautela do STF em 1904: pressionado pelas ruas, de um lado; e pela ciência, de outro