Thomaz Pereira

Ao <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/nunes-marques-derruba-decisao-do-tse-que-cassou-bolsonarista-por-divulgar-fake-news-02062022">suspender</a>, solitariamente, a <a href="https://www.jota.info/eleicoes/tse-cassa-mandato-de-deputado-que-divulgou-fake-news-contra-as-urnas-28102021">cassação pelo TSE do mandato do deputado estadual Fernando Francischini por propagar notícias falsas contra o sistema eleitoral</a>, o ministro Kassio Nunes Marques foi lembrado dos limites da recorrente imagem do Supremo como “onze ilhas”. Ainda que ilhados uns dos outros nas decisões monocráticas, seus integrantes ainda formam um arquipélago.
A reação colegiada foi rápida. Uma <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/04/carmen-lucia-pede-sessao-do-plenario-virtual-para-stf-analisar-suspensao-da-cassacao-de-deputado.ghtml">solicitação da ministra Cármen Lúcia, atendida prontamente pelo ministro Luiz Fux, de pautar imediatamente no plenário virtual para julgamento acelerado o mandado de segurança impetrado contra a decisão</a>. Agora, Marques se vê confrontado com um fato por vezes ignorado por aqueles que observam o tribunal e seus frequentes arroubos individuais de fora – e talvez pelo próprio Marques, antes se tornar ministro. Uma maioria de ministros pode se unir para limitar abusos de poderes individuais uns dos outros. É um movimento custoso, e é raro que, no cálculo final de suas outras prioridades, os ministros se sintam suficientemente provocados para fazer isso – mas não só é possível, como acontece.
A forma pela qual a ministra Cármen Lúcia propõe o controle colegiado nesse caso – um mandado de segurança contra decisão do relator de um processo no Supremo – significaria certamente a abertura de uma via procedimental de controle de decisões de ministros do Supremo que, até o momento, o tribunal não parecia disposto a aceitar. Por que então os ministros se movimentariam nesse sentido neste caso?
Para entender isso é fundamental compreender que a decisão específica de Marques foi excepcional não por ser um uso de poder individual em um tema controverso e de alta magnitude política. Nisso, ela talvez não seja tão diferente de muitas outras. Ao suspender a decisão colegiada do TSE por meio de uma decisão individual Marques fez algo que está normalmente dentro de seus poderes formais e que diversos ministros também já fizeram, seja em relação a outros tribunais superiores, seja em relação ao próprio TSE. Ocorre que a decisão suspendida não é uma decisão qualquer, de uma outra instituição qualquer, em um contexto qualquer. É uma afronta absolutamente excepcional ao TSE e, indiretamente, ao próprio Supremo.
A cassação de Francischini, deputado estadual do Paraná, tem impacto muito maior do que a política local. O que motivou a cassação foram suas <a href="https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2021/Outubro/plenario-cassa-deputado-francischini-por-propagar-desinformacao-contra-o-sistema-eletronico-de-votacao">declarações afirmando que urnas eleitorais teria sido fraudadas e que ele teria tido acesso a provas documentais das alegadas fraudes.</a> Ao cassar o seu mandato por essas declarações, o TSE enquadrou a internet e as redes sociais no conceito de meios de comunicação social, anulando os votos do candidato e impedindo que esse comportamento individual beneficiasse o seu partido político ou coligação. Em um contexto em que o Supremo, o TSE e o sistema eleitoral têm sido alvos de seguidos ataques, esse não era um caso comum. Trata-se de um claro precedente marcando tal comportamento como inaceitável. Sinalizando que quem espalhar desinformação para atacar o próprio processo eleitoral será severamente punido.
Mais ainda, trata-se de sinalização feita com a participação de três ministros do Supremo que compõem o TSE, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes (respectivamente, o presidente anterior, o presidente atual e o futuro presidente do TSE). Todos profundamente envolvidos com a defesa do sistema eleitoral brasileiro e com a repressão de milícias virtuais e à divulgação de notícias falsas – e, por isso mesmo, constantemente atacados por esses mesmos grupos e indivíduos.
A gravidade da afronta parece clara. Mas o que dizer do mecanismo específico pelo qual a ministra Cármen Lúcia viabiliza a reação colegiada? Mandado de segurança contra decisão monocrática de ministro não é algo geralmente aceito pelo Supremo, sendo que, em diversas decisões anteriores, o tribunal já rejeitou tal possibilidade.
Foi assim em <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340267483&amp;ext=.pdf">recurso em mandado de segurança de 2019</a>, em que se afirma que “a jurisprudência deste tribunal é invariável ao afirmar o descabimento de mandado de segurança contra atos provenientes de seus órgãos colegiados ou mesmo de seus membros, individualmente, no exercício da prestação jurisdicional, porquanto impugnáveis somente pelos recursos próprios ou pela via da ação rescisória, como consectário do sistema processual”, em decisão de que participaram os ministros Toffoli, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Lewandowski, Cármen Lúcia, Fux, Rosa Weber, Barroso, Fachin e Alexandre de Moraes, vencido solitariamente o ministro Marco Aurélio. Foi assim também em diversas outras decisões no mesmo sentido tomadas em <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=187557577&amp;ext=.pdf">2013</a>, <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=257972916&amp;ext=.pdf">2014</a>, <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=309248396&amp;ext=.pdf">2016</a> e <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339879227&amp;ext=.pdf">2019</a>.
Mas nessa própria jurisprudência em que normalmente se recusa tal possibilidade de controle há também a chave para se entender em que medida ela poderia ser excepcionalmente admitida. Assim, conforme <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5677287">ementa de acórdão de junho de 2020</a>, de relatoria do ministro Edson Fachin: “a jurisprudência desta Suprema Corte é uníssona no sentido de afirmar incabível mandado de segurança contra ato judicial por ela própria emanado, inclusive aqueles proferidos por seus Ministros, salvo nas hipóteses de teratologia, ilegalidade ou abuso flagrante”.
É nesse contexto que se insere a solicitação de pauta urgente da ministra Cármen Lúcia, a qual só faz sentido caso ela própria concorde com o pedido e talvez acredite ser capaz de convencer uma maioria dos demais ministros desse posicionamento. Caso contrário, bastaria aplicar o entendimento “normal” estabelecido nesses precedentes reiterados do tribunal. <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/mendonca-pede-vista-de-acao-contra-liminar-de-marques-que-beneficiou-bolsonarista-07062022">O que foi confirmado pelo seu voto posteriormente apresentado no Plenário Virtual</a>, em que afirma expressamente que “toda regra comporta exceção” – no que foi acompanhada pelos ministros Fachin e Moraes, antes do julgamento ser suspenso por <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/mendonca-pede-vista-de-acao-contra-liminar-de-marques-que-beneficiou-bolsonarista-07062022">um pedido de vista de André Mendonça</a>. Resta, no entanto, a seguinte dúvida: devemos compreender o voto de Cármen Lúcia e daqueles que a acompanhariam como uma sinalização de que a decisão de Nunes Marques foi teratológica, ilegal ou flagrantemente abusiva?
Para entender esses movimentos, é fundamental entender o contexto em que eles ocorrem. Consideremos o precedente de 2020, em que o Supremo afirmou – vencido, novamente, apenas o ministro Marco Aurélio, que não está mais no tribunal – que não caberia um mandado de segurança como esse, salvo em tais hipóteses excepcionais. No caso, tratava-se questionamento da decisão do ministro Dias Toffoli, então presidente do Supremo, que determinou a instauração do “inquérito das Fake News”, designando como relator o ministro Alexandre de Moraes. E aqui reside uma diferença fundamental entre aquele mandado de segurança e o que agora se analisa: apesar de formalmente similares, em seu sentido concreto este caso anterior tem o significado oposto da atual decisão de Marques. Em uma, temos o Supremo se unindo em defesa contra a proliferação de notícias falsas e ataques contra si mesmo e as demais instituições democráticas. Na outra, temos um ministro individualmente atuando contra uma importante medida tomada pelo TSE (incluindo três outros ministros do Supremo) em defesa do processo eleitoral.
De tal forma, o mandado de segurança contra a decisão de Nunes Marques se parece mais com outros casos recentes em que um ministro do Supremo teve suas decisões individuais imediatamente suspensas por outros ministros. Marco Aurélio, ministro aposentado do Supremo, esteve diversas vezes na mesma posição de Nunes Marques em casos recentes. Em 2016, quando Marco Aurélio determinou individualmente o impedimento do senador Renan Calheiros continuar da presidência do Senado depois de ter uma denúncia aceita contra si, a então presidente, ministra Cármen Lúcia, imediatamente pautou o processo em que se dava essa discussão para que o colegiado derrubasse tal decisão. Em 2018, Toffoli suspendeu liminar de Marco Aurélio que afirmava, contrariamente ao posicionamento do Supremo naquele momento, a inconstitucionalidade da prisão imediata após condenação em segunda instância e determinava a soltura de todos os presos nessa situação. Em 2020, Fux acatou pedido de suspensão contra decisão de Marco Aurélio que havia determinado a soltura de André do Rap por excesso de prazo da prisão preventiva, em uma decisão que muito se assemelha com a que agora se propõe, uma vez que ali se admitia excepcionalmente, em vista da gravidade da decisão atacada, com o referendo de outros oito ministros do tribunal, a admissibilidade de um instituto normalmente não cabível.
(Aqui, uma peculiar ironia: caso decida admitir esse mandado de segurança, o Supremo estaria se alinhando em alguma medida ao posicionamento vencido do próprio Marco Aurélio, o qual reiteradamente <a href="https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15340267483&amp;ext=.pdf">admitia</a> o cabimento de mandado de segurança contra decisões do Supremo e de seus ministros.)
Mas não seria essa a primeira vez que o próprio Nunes Marques se encontra em posição semelhante no curto período em que se encontra no tribunal. Foi assim, por exemplo, quando determinou unilateralmente, <a href="https://www.jota.info/stf/supra/a-liberacao-de-cultos-por-nunes-marques-uma-das-piores-decisoes-da-historia-do-stf-05042021">em uma das piores decisões da história do Supremo</a>, a liberação de cultos na Páscoa durante a pandemia. Dada na véspera das festividades, a decisão produziria seus efeitos antes de poder ser controlada pelo colegiado. Mesmo assim, houve rápida resposta do plenário. Marques viu ali o Supremo se unir para imediatamente pautar o julgamento de ações sobre esse tema, rejeitando o seu entendimento e sinalizando de maneira clara e enfática o equívoco dessa decisão, que, além de tudo, afrontava simbolicamente o posicionamento reiterado do tribunal no combate a pandemia. É possível que agora Marques se encontre novamente na mesma situação.
<a href="https://novosestudos.com.br/wp-content/uploads/2018/04/02_arguelhes_dossie_110_p12a33_baixa_vale.pdf">É verdade que ministros do Supremo podem tomar individualmente decisões que produzam efeitos gravíssimos</a>, e às vezes fatos consumados, antes mesmo que o tribunal tenha oportunidade de as controlar. Mas também é verdade que, quando suficientemente motivado, o tribunal pode ser capaz de se mobilizar para colegiadamente sinalizar seu repúdio do comportamento individual e derrubar sua decisão, mesmo se valendo de brechas procedimentais e medidas que normalmente não seriam admitidas. As motivações para essa união momentânea podem ser muitas, dos impactos do caso à afronta que a decisão significa ao próprio Supremo, e o cálculo varia de ministro para ministro. Mas não seria a primeira vez que ministros do Supremo sinalizariam que tempos excepcionais requerem medidas excepcionais de controle de arroubos individualistas. Tudo depende sobretudo da liderança de um ministro relator (como é o caso de Cármen Lúcia) e a anuência de seu presidente (como é o caso de Fux).
Em uma contrarreação, a decisão de Nunes Marques de pautar sua liminar imediatamente na turma, no mesmo dia em que se daria o julgamento do mandado de segurança contra ele no Plenário Virtual já é, em um certo sentido, uma consequência concreta da movimentação de Cármen Lúcia e Fux. <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/mendonca-pede-vista-de-acao-contra-liminar-de-marques-que-beneficiou-bolsonarista-07062022">O pedido de vista de André Mendonça</a>, suspendendo o julgamento e impedindo que ele se encerre nas vinte e quatro horas previstas, se soma a essa estratégia e beneficia Marques ao criar a possibilidade de que o mandado de segurança perca seu objeto antes de ser decidido, em uma movimentação individual que não é incomum no Supremo. Mas pautar imediatamente o mandado de segurança e sinalizar a possibilidade de derrubar a decisão de Marques por essa forma pode já ter produzido o resultado que Cármen Lúcia pretendia: garantir que essa liminar fosse imediatamente submetida a um órgão colegiado do tribunal.
Ser capaz de fazer isso sem ter que se valer de um uso inovador do mandado de segurança contra decisão de um ministro do Supremo pode, inclusive, ser uma solução mais confortável para todos os envolvidos. Mas aconteça o que acontecer, a possibilidade do uso dessa ameaça não será esquecida pelos demais membros do tribunal e, com ou sem um resultado final, estamos diante de um exemplo importante de como pautar ou não pautar um processo pode gerar efeitos concretos que por vezes passam despercebidos quando focamos apenas em acórdãos, votos e decisões.
Nunes Marques provavelmente verá seu entendimento ser superado, seja na turma, seja no plenário, seja na sua reafirmação em outros casos concretos no TSE. Crescentemente isolado, ele tem se colocado como vencido em casos em que o Supremo se une. Em um tribunal famoso por suas disputas internas, e que tem se unido pela gravidade da pandemia e em defesa contra os atuais ataques ao processo democrático e às instituições, isso não é pouco. Mais ainda: em um tribunal habituado a conviver com decisões individuais de alta magnitude, e que raramente despertam esse tipo de reação colegiada, talvez haja aqui uma característica distinta da decisão de Marques: ela não é apenas errada no mérito ou grave nas consequências, mas também uma espécie de afronta ao TSE e ao próprio Supremo.

nunes marques pede vista

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JOTA

Cabe mandado de segurança contra decisão de ministro do Supremo?

Nunes Marques testa os limites da ministrocracia

Cabe mandado de segurança contra decisão de ministro do Supremo?