Pedro Vicente de Castro

Uma conjectura recorrente de observadores do STF é de que ministros utilizam pedidos de vista para exercer um “poder de agenda” individual, controlando o momento em que a Corte decide. Uma das mais notórias anedotas nesse sentido envolve o pedido de vista de Gilmar Mendes durante o julgamento da constitucionalidade de doações de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais.
Em 2014, quando havia quatro votos a favor da inconstitucionalidade das doações, Mendes pediu vista. Imediatamente na sequência dois ministros pediram para adiantar os votos, ambos se juntando aos quatro a favor da inconstitucionalidade. Esses dois votos adicionais formavam uma maioria de seis, suficiente para decidir o caso.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Enquanto Mendes não devolvesse os autos, porém, o julgamento não poderia ser concluído. Isso só aconteceria mais de um ano depois, em setembro de 2015. Nesse meio tempo, Mendes, cuja trajetória é associada ao PSDB, se opôs publicamente à posição da maioria.
Entre outras manifestações, Mendes argumentou que a proibição das doações de pessoas jurídicas permitiria que o PT ganhasse eleições ininterruptamente “até 2038” usando o dinheiro que, segundo as denúncias da operação “lava-jato”, tinha sido desviado dos cofres públicos, contra os demais partidos, que veriam seus recursos de campanha reduzidos.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Quando pediu vista, é provável que Mendes tivesse antecipado que estaria na minoria. Seja como foi, sua atitude atrasou a decisão em mais de um ano, eliminando qualquer possibilidade de que ela fosse aplicada à acirrada eleição presidencial daquele ano.
Há outras anedotas sugerindo que os ministros utilizam pedidos de vista para exercer um “poder de agenda” individual, mas não há evidências de que isso ocorra de maneira sistemática, de que não seja algo excepcional.
Em um artigo de 2017, Diego Arguelhes e Ivar Hartmann argumentam que os ministros usam pedidos de vista para que determinados casos sejam decididos por uma composição da Corte mais favorável aos seus interesses.
Como evidência disso, eles apontam alguns episódios em que pedidos de vista foram feitos pouco antes de algum ministro se aposentar e devolvidos pouco após um novo ministro tomar posse. Os episódios que eles narram são sugestivos, mas os autores não chegam a mostrar uma associação sistemática entre pedidos de vista e mudanças na composição da Corte.
Na minha própria pesquisa, encontro evidências de que os ministros sistematicamente pedem vista para obstruir a Corte de chegar a uma decisão quando já há um número suficiente de votos para decidir em um sentido ou outro.
Os ministros do STF votam em ordem, de forma que, quando é a vez de algum ministro votar, ele sabe se já há um número suficiente de votos para decidir o caso ou não e, portanto, se seu voto pode afetar o resultado ou não.
<blockquote class="jota-article__eye">Como o caso de Mendes e as doações de pessoas jurídicas sugere, os ministros podem antecipar o resultado antes do julgamento. Mas essa antecipação é incerta e os ministros podem errar na sua previsão.</blockquote>
Quando um número suficiente de votos para decidir o caso já foi proferido, a incerteza é eliminada: o resultado é virtualmente certo. À luz dessa informação, ele pode ajustar seu curso de ação de maneira estratégica. Se ele está contente com o resultado esperado, ele simplesmente acompanha a coalizão vencedora. Caso contrário, ele tem a opção de fazer um pedido de vista e protelar a devolução dos autos o máximo possível.
Dessa forma, ele não conseguirá fazer sua preferência valer em última instância. Mas conseguirá adiar a alteração do status quo. Em alguns casos, como o de Mendes e as doações de pessoas jurídicas, esse adiamento pode ter consequências nada desprezíveis: seu atraso em devolver os autos impediu que a decisão fosse aplicada às eleições de 2014.
Isso sugere um teste da hipótese de que ministros fazem pedidos de vista obstrutivos: se votar quando já há um número suficiente de votos para decidir o caso aumenta a probabilidade de que os ministros façam pedidos de vista excessivamente longos, isso é uma evidência consistente com a hipótese.
Um problema com esse teste é que se o voto de um ministro pode afetar o resultado não é algo aleatório. É influenciado por fatores que também influenciam a probabilidade de ele fazer um longo pedido de vista.
Em casos menos controversos, em que divergências são menos prováveis, coalizões vencedoras se formam mais cedo. Isso torna um número maior de votos irrelevantes para o resultado. Se os seis primeiros ministros votam no mesmo sentido em uma ADI, por exemplo, os votos de todos os demais são irrelevantes para o resultado.
Ao mesmo tempo, casos menos controversos podem ser também menos relevantes, a respeito dos quais os ministros e o público externo não têm preferências intensas. Nesses casos, a pressão dos pares e do público externo para que o ministro devolva um eventual pedido de vista pode ser menor.
Isso gera uma correlação espúria entre irrelevância do voto e pedidos de vista excessivamente longos. Isso é o que em metodologia chama-se de “confundidor” (confounder). A consequência é que a comparação ingênua envolvida no teste acima não permite distinguir se o ministro protelou a devolução dos autores porque seu voto é irrelevante para o resultado ou porque o caso é pouco relevante.
Para lidar com esse problema, uso uma abordagem de inferência causal chamada de “variável instrumental”. Variáveis instrumentais são muito utilizadas na ciência política e na economia, mas ainda pouco em pesquisas sobre o judiciário, ao menos no Brasil. Essa abordagem me permite contornar o problema dos “confudidores”.
No caso, a variável que utilizo como instrumento é a senioridade do relator. Quando o relator é mais sênior que um determinado ministro, isso o faz votar uma posição depois do que ele votaria se o relator fosse menos sênior do que ele.
A figura 1 ilustra isso com uma composição real do STF. Nessa composição, quando o relator é o Marco Aurélio, o segundo ministro mais sênior, todos os demais ministros exceto o decano e o presidente votam uma posição depois daquela em que votariam se o relator fosse o Edson Fachin, o ministro mais júnior.
Figura 1: Ordem de votação sob as relatorias de Edson Fachin e Marco Aurélio
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Essa mudança de posição na ordem de votação, por sua vez, aumenta a probabilidade de que o voto de um ministro seja irrelevante para o resultado. A figura 2 mostra isso.
O voto de um ministro que é o sexto a votar quando o relator é menos sênior do que ele tem uma probabilidade de cerca de 6% de ser irrelevante. Já quando o relator é mais sênior do que ele, esse ministro é o sétimo a votar e a probabilidade de que seu voto seja irrelevante sobe para cerca de 27%.
Figura 2: Irrelevância do voto conforme senioridade do relator
<img class="aligncenter wp-image-294961 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/02/imagem2.png" alt="" width="1772" height="1181" />
Ao mesmo tempo, a atribuição do relator é aleatória. Isso significa que se o relator de um caso é mais ou menos sênior do que um ministro determinado também é algo aleatório. Sendo aleatória, a senioridade do relator não é correlacionada com a relevância do caso, o “confundidor” que comprometia o teste ingênuo descrito acima. Por consequência, a irrelevância do voto causada pela senioridade do relator também não é correlacionada com a relevância do caso.
O uso da senioridade do relator como instrumento permite que a análise se concentre nessa parte da variação da variável “irrelevância do voto”, gerando uma estimativa não-enviesada do seu efeito sobre a probabilidade de que o ministro faça um pedido de vista excessivamente longo. A figura 3 ilustra isso. A análise se concentra na cadeia causal iniciada pela senioridade do relator, em setas pretas. A relevância do caso não é parte dessa cadeia e, portanto, não afeta a análise.
Figura 3: Relação entre senioridade do relator, relevância do voto e longos pedidos de vista
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O resultado dessa análise é revelador. Votar quando já há um número suficiente de votos para decidir aumenta significativamente a probabilidade de que ministro faça um pedido de vista excessivamente longo.
Considero diferentes definições de “pedidos de vista excessivamente longos”: aqueles que duraram mais do que a mediana da duração de todos os pedidos de vista e aqueles que estão acima do terceiro quartil da distribuição da duração dos pedidos. A figura 4 mostra essa distribuição, destacando a mediana e o terceiro quartil.
Figura 4: Distribuição da duração dos pedidos de vista
<img class="aligncenter wp-image-294963 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/02/imagem4.png" alt="" width="1772" height="1181" />
Outras definições que considero utilizam os mesmos cortes, mas levando em conta os pedidos de vista feitos por cada ministro e não todos indiscriminadamente. As diferentes definições não alteram substantivamente o resultado.
A estimativa mais conservadora é de que a irrelevância do voto quadruplica a probabilidade de que um ministro faça um pedido de vista excessivamente longo. Quando seu voto é relevante, a probabilidade de que um ministro faça um pedido de vista desse tipo é de pouco menos que 1%. Já quando seu voto é irrelevante, essa probabilidade aumenta para quase 4%. Um aumento de cerca de 300%.
Uma explicação alternativa possível é de que eles usam o tempo para elaborar votos excepcionalmente bem fundamentados, na expectativa de convencer algum dos ministros que já se pronunciou a alterar seu voto.
Formalmente, a alteração de voto é possível. Mas não é algo comum, ao menos em casos salientes. Nesses casos, como é bem sabido, os ministros costumam trazer para a sessão longos votos escritos previamente e minuciosamente argumentados.
Por essa razão, entre outras, observadores da Corte consideram que eles não costumam estar abertos à persuasão. Essa indisposição é certamente maior quando já se pronunciaram em um sentido ou outro e teriam de voltar atrás e admitir que estavam equivocados.
Por outro lado, retificações de voto acontecem. É possível que um ministro derrotado faça um pedido de vista na expectativa de que um voto bem fundamentado convença algum dos ministros que já se pronunciou a alterar seu voto. Nesse afã, é possível que ele ultrapasse o prazo legal de duração do pedido. Mas que leve mais de um ano? Ou mais de três?
É pouco plausível que essas durações excessivamente longas contribuam para que o ministro aprimore significativamente a fundamentação do seu voto. Obstrução é uma motivação mais convincente.
Muito embora seja impossível sabermos com certeza quais as intenções de um ministro ao fazer um pedido de vista que dura anos, meus resultados sugerem que os ministros usam esse instrumento para obstruir a Corte de chegar a uma decisão de maneira célere quando o resultado esperado lhes desagrada.
Observadores do STF vêm apontando há algum tempo que pedidos de vista permitem que os ministros controlem individualmente a agenda do tribunal. As evidências de que eles efetivamente utilizam essa prerrogativa com esse objetivo raramente vão além de anedotas, ainda que muito sugestivas, como a de Mendes e as doações de pessoas jurídicas.
Os resultados da minha pesquisa indicam que há evidências de que os ministros usam seus poderes individuais de maneira sistemática para perseguir suas preferências em oposição à dos demais ministros. Longe de um fenômeno marginal ou excepcional, é um dado que não pode ser negligenciado quando se avalia o funcionamento da Corte.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Disponível em: &lt;<a href="http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/09/para-gilmar-mendes-pt-tinha-plano-perfeito-para-se-eternizar-no-poder.html">http://g1.globo.com/politica/noticia/2015/09/para-gilmar-mendes-pt-tinha-plano-perfeito-para-se-eternizar-no-poder.html</a>&gt;.

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Ministros do STF usam pedidos de vista para obstruir decisões da Corte?

Novas evidências sugerem que sim