Soraya Gasparetto Lunardi

Dimitri Dimoulis

Em 2019, primeiro ano do governo de Jair Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi constantemente demandado por partidos da oposição parlamentar para se pronunciar sobre a constitucionalidade de normas federais. Isso tornou o Tribunal importante arena de discussão para questões jurídico-políticas, colocando-o como personagem central nas páginas dos jornais. Mas qual foi a resposta? O conteúdo das decisões justificaria o protagonismo midiático?
Analisamos todas as ações diretas de inconstitucionalidade apresentadas em 2019 por partidos da oposição, questionando normas federais. Verificamos o andamento dessas ações até 01/03/2021. Sabendo que a primeira ação dessa categoria foi protocolada no início de janeiro e a última no início de dezembro de 2019, o Supremo teve de 15 a 26 meses para responder. Tempo mais que suficiente – se não para decidir todas as ações, considerando as outras competências e processos no Tribunal, certamente para decidir boa parte delas.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Dada a relevância política das questões, podemos considerar que, se o Tribunal nada substancial disse a respeito, é porque optou por não questionar atos de autoridades federais. Isso vale em particular quando objeto da impugnação é Medida Provisória destinada a vigorar alguns meses, gerando efeitos imediatos e, muitas vezes, irreversíveis ou quando são questionadas leis e Emendas Constitucionais de grande relevância e o Tribunal não se pronuncia sobre questionamentos oriundos de partidos políticos com significativa representatividade.
Em 2019, foram apresentadas 18 ADPF e 26 ADIN assinadas por partidos políticos da oposição para questionar atos federais, um total de 44 ações.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A Rede ingressou com 16, o PDT com 11, PSB com 8, o PT com 6. Foi menor o número de ações protocoladas pelo PCdoB (3), PV (2), Solidariedade (2), PSOL (1) e PPS/Cidadania (1). Em 3 casos houve impetração conjunta de mais de um partido.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Foram impugnados 25 atos normativos do Executivo: 10 medidas provisórias (mais de 20% das 47 medidas provisórias editadas em 2019); 13 decretos presidenciais; 2 atos normativos de Ministérios e atos administrativos de relevância política.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Houve sete questionamentos de decisões do Judiciário. Entre eles, o pedido de trancamento da ação penal contra Glenn Greenwald, jornalista que revelou o escândalo “Vaza Jato”, e o questionamento da execução da pena de prisão antes do trânsito em julgado, questão de interesse do ex-Presidente Lula e de muitos outros políticos condenados.
No que diz respeito aos atos do Legislativo, foram impugnadas apenas uma resolução do Congresso Nacional e a Emenda Constitucional 103 (reforma da Previdência). A falta de impugnação deve-se muito provavelmente ao fato de que não houve, em 12 meses, tempo hábil para a aprovação pelo Congresso de leis que expressem o projeto político do governo Bolsonaro. Levando também em consideração a ausência de clara maioria parlamentar a favor do presidente, as Medidas Provisórias foram veículo privilegiado do projeto governamental e justamente elas constituíram, como dissemos, alvo central dos questionamentos no Supremo.
Dessa forma, os partidos da oposição utilizaram as ações de controle de constitucionalidade como segunda arena de discussões e de resistência política para impugnar principalmente atos do Executivo (quase 75% das impugnações aqui estudadas).
Essas 44 ações tiveram o seguinte resultado processual até 01/03/2021:
- 12 ações não foram conhecidas: 8 foram extintas por perda de objeto (revogação do ato ou caducidade da medida provisória) e 4 por outra razão processual (falta de subsidiariedade na ADPF, impugnação de ato que não pode ser objeto de controle abstrato).
- 2 foram indeferidas no mérito.
- Em 11 casos foi deferida a cautelar, total ou parcialmente, aguardando-se decisão de mérito.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
- 20 ações ainda aguardam julgamento.
Casos de não conhecimento
O elevado número de processos que não foram conhecidos deve-se basicamente à demora do Tribunal. Em 8 dos 12 casos, o Tribunal não se pronunciou sobre a demanda. Em 7 desses processos, objeto da contestação era Medida Provisória, cuja caducidade é previsível, optando o STF por silenciar até que seja noticiada a perda de objeto.
Casos que aguardam julgamento
<blockquote class="jota-article__eye">O fato de que 20 processos não tiveram nem mesmo decisão cautelar confirma a opção pela inércia que favorece o status quo legislativo – e o governo, dependendo da origem da norma contestada.</blockquote>
Se inserirmos no cálculo as 3 ações de inconstitucionalidade por omissão que foram interpostas por partidos políticos em 2019 e ainda aguardam julgamento,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> há silêncio do Supremo em 23 dos 47 casos de questionamento da produção normativa federal. O Tribunal não fez nada em metade desses processos, que têm particular relevância em razão da natureza federal dos atos e da força política do impetrante.
Mas o silêncio nem sempre equivale à convalidação, pois deixa em aberto a possibilidade de declaração tardia de inconstitucionalidade. Cria uma espécie de “trunfo” que pode ser acionado em momento politicamente oportuno, algo que o Supremo já fez no passado.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Ausência de decisão definitiva de mérito
Entre os casos estudados houve 2 decisões definitivas de improcedência, confirmando a constitucionalidade dos atos impugnados. As demais decisões definitivas indeferiram o pedido por razões processuais (falta de legitimação, perda de objeto, inépcia da inicial, ausência de requisitos da ação).
Concessão de cautelares
Repostas precárias sobre o mérito foram dadas em cautelares sem que houvesse, até agora, decisão definitiva (com um caso de posterior extinção do processo por perda de objeto). Do ponto de vista processual, é interessante notar que o Tribunal só se pronuncia sobre pedidos cautelares para deferir a medida; nunca para rejeitá-la. Nas ações de 2019, houve 11 casos de concessão de cautelar. Em 5 entre eles, a decisão dizia respeito às Medidas provisórias 870 e 886 que versam sobre o mesmo tema.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Assim sendo, tivemos 6 atos que foram objeto de suspensão cautelar: suspensão de inquéritos para investigar criminalmente o jornalista Glenn Greenwald (ADPF 601); proibição que o Ministro da Justiça destrua o suporte material de provas do Vaza Jato (ADPF 605); manutenção da Funai na estrutura do Ministério da Justiça (ADIn 6.062); inconstitucionalidade parcial da extinção por decreto de órgãos consultivos criados por lei (ADIn 6.121); inconstitucionalidade da Medida provisória que abolia a obrigação de publicar em jornais atos do Executivo (ADIn 6.229); manutenção de seguros obrigatórios que o governo queria extinguir (ADIn 6.262).
O cenário desenhado por esses dados indica que o Supremo interferiu minimamente em atos normativos editados em 2019 pelo Congresso e o Executivo federal. É digno de nota que nada determinou, até agora, a respeito de duas normas de peculiar relevância: a Medida Provisória 881 (transformada na Lei 13.874), que limita drasticamente o papel regulador do Estado (ADIN 6.156)<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, e a Emenda Constitucional n. 103, que reformou a previdência social, diminuindo a duração e o valor das aposentadorias (ADIN 6.279).
Seria necessário verificar se isso ocorreu também em 2020, ano de intensa produção normativa em razão da pandemia. Um primeiro levantamento nosso, ainda em curso, parece confirmar a inércia, com intervenções pontuais em questões “cotidianas”. Se isso for confirmado, poderemos dizer que, em relação à produção normativa do governo Bolsonaro, o Supremo não realizou relevantes intervenções quando as normas foram questionadas pelos opositores.
Ao menos quando enfocamos o controle abstrato de constitucionalidade, o Supremo parece ter sido um guardião muito complacente. As referências ao ativismo pertencem ao senso comum do debate político, sendo ocasionalmente propagados por integrantes do Tribunal como forma de autopromoção. Mas não necessariamente correspondem ao que o Supremo faz, e ao que efetivamente fez nessas ações em 2019.
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O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ADPF 569, 570, 572, 579, 581, 582, 583, 586, 592, 599, 601, 602, 605, 612, 613, 614, 627, 633. ADIn 6.056, 6.057, 6.058, 6.062, 6.076, 6.101, 6.119, 6.121, 6.128, 6.134, 6.139, 6.140, 6.156, 6.157, 6.172, 6.173, 6.174, 6.175, 6.184, 6.215, 6.229, 6.241, 6.261, 6.262, 6.265, 6.279.
Excluímos ADIn apresentadas por partidos do governo contra leis antigas. Também excluímos impugnações sem relevância política, por exemplo o questionamento de ato do Conselho regional de medicina.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ADPF 569, questionando a participação do Ministério Público em decisões sobre o destino de recursos oriundos de multas e restituições (PT e PDT); ADPF 583, questionando decreto que limitava verbas destinadas a Universidades (PSB, PV, Rede, PCdoB); ADPF 633, questionando a decisão governamental de não apoiar na ONU a condenação do bloqueio conta Cuba (PDT, PCdoB, PSB).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Foi questionada a autorização de transferir o controle da Embraer à Boeing e a decisão do então Ministro da Justiça Sergio Moro de destruir provas relacionadas ao escândalo “Vaza jato”, do qual foi um dos protagonistas.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Exceção é a ADIn 6.229. Foi deferida cautelar no sentido da inconstitucionalidade e, mais tarde, a ação perdeu o objeto. Por isso, foi contada tanto no deferimento de cautelar como no não conhecimento.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ADO 52, 54, 55.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> A importantíssima Lei de improbidade administrativa foi questionada pela ADIn 2.182 em 2000, tendo o Tribunal confirmado sua constitucionalidade apenas em 2010. A Emenda constitucional n. 30 sobre questões financeiras de 2000, questionada pela ADIn 2.362, foi declarada parcialmente inconstitucional por liminar em 2010. Até hoje não há decisão definitiva. Na ADPF 54 (aborto de feto anencéfalo), o relator declarou a inconstitucionalidade da criminalização em 2004. Logo a seguir, a liminar foi suspensa pelo Plenário. Passados oito anos, a decisão definitiva confirmou a liminar monocrática.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> ADIn 6.062, 6172, 6173, 6174, 6175.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> A Lei 13.874 foi posteriormente impugnada pela ADIn 6.528 que também permaneceu sem resposta.

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JOTA

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Inércia e passivismo: o Supremo perante o governo Bolsonaro

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