Coronavírus

Fux e Fux: os dois Brasis de um juiz

As contradições do ministro do Supremo ao falar sobre o comportamento dos magistrados em tempo de pandemia

Luiz Fux
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Considere dois artigos de opinião, escritos por uma mesma pessoa – o ministro do Supremo Luiz Fux – e publicados no mesmo dia em dois dos maiores jornais do país. Leia os dois lado a lado.

No primeiro, Fux discute como juízes devem se comportar diante de recente resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com recomendações para enfrentamento da pandemia do coronavírus no sistema carcerário brasileiro. Entre essas diretrizes, o CNJ orienta os juízes a reavaliarem prisões provisórias em curso, dentro de certos critérios e prioridades envolvendo grupos de risco e graus de exposição dos(as) detentos(as), e a só determinarem novas prisões preventivas em casos de “máxima excepcionalidade”. Também há critérios para que juízes promovam a passagem de regime fechado para os regimes aberto e semiaberto.

A resolução do CNJ, portanto, procura adequar a aplicação estrita do processo e da execução penais aos tempos excepcionais de uma pandemia.

A recomendação principal de Fux é que os juízes a quem a Resolução se dirige não a interpretem como uma ordem geral para liberação de presos – “em suma: coronavírus não é habeas corpus”. Mas, para além de observar que a resolução do CNJ não muda a legislação vigente, Fux pede que cada juiz tenha uma “percepção consequencialista” – que, em cada caso concreto, pese de um lado as preocupações “humanitárias” da resolução do CNJ com as consequências de sua decisão para a segurança pública e a percepção social de “impunidade seletiva”.

No segundo texto, o escopo é mais amplo. Fux discute como juízes devem se comportar, na aplicação da lei, diante da expansão da Covid-19 na população, com resultados ainda desconhecidos. Buscando lições em épocas anteriores ao constitucionalismo e à própria ideia de estado de direito moderno, observa que “[a]s regras jurídicas não são autossuficientes nesse momento de crise sem precedentes”. Na aplicação de regras de competência do pacto federativo brasileiro, por exemplo, isso significa escolher a interpretação que mais proteja a “saúde pública”.

Aqui, a recomendação geral de é que os juízes, em tempos de pandemia, sejam “responsivos ao povo” e mensurem “as consequências das suas decisões”. Conclui dizendo que “diante da necessidade, deve cessar a letra fria da lei”.

Agora, vamos às congruências. Em ambos os textos, Fux recomenda o “consequencialismo” como postura judicial adequada ao momento atual. Mas com resultados muito diferentes. Para falar do cenário geral (o contexto da pandemia), aproveitando o feriado cristão, Fux invoca Santo Agostinho para defender mais sensibilidade judicial diante das regras. Não é hora, ele diz, de “dura lex, sed lex”.

No caso específico (a situação dos presos), o “consequencialismo” deve produzir resultado diferente: mais contenção judicial. Considerem as preocupações “humanitárias” do CNJ, diria Fux, mas lembrem-se de que a lei não mudou, e pensem nos efeitos sociais da libertação de presos.

Embora haja tensão, não há contradição lógica, em termos de raciocínio jurídico, na mensagem de cada texto aos juízes brasileiros. No fundo, o que Fux está dizendo é: o juiz escolhe as consequências que achar melhores, quando, como e no assunto que lhe aprouver.

Em um caso, Fux considera que o desvio da “letra fria da lei” pode provocar consequências majoritariamente negativas. No outro, em contraste, não há mais lugar para “dura lex, sed lex”.

Decisões “consequencialistas” no sentido do ministro Fux serão, sempre, decisões que o direito vigente terá pouca capacidade de explicar, muito menos prever. Mas, se esse “consequencialismo” nos diz muito pouco sobre a decisão, em cada caso, ele ainda sim pode nos revelar algo sobre quem a está tomando.

A aplicação dessa licença para listar e dar peso a quaisquer “consequências”, na prática, significa que o juiz escolherá o que considera prioridade. Os resultados dessa postura, ainda que inconsistentes, podem revelar muito sobre as prioridades, valores e compromissos de quem a adota.

Na aplicação desse “consequencialismo”, o futuro presidente do Supremo parece enxergar mundos diferentes. Quase como se houvesse dois Brasis para um só juiz Fux, cada um recomendando análises e conclusões fundamentalmente distintas. No Brasil da liberdade, o juiz deve ser mais sensível na aplicação da lei, contra os rigores da pandemia, tendo em mente o valor da “saúde pública”. No Brasil do sistema prisional, o juiz deve ser rigoroso diante da orientações do CNJ contra os mesmos rigores, da mesma pandemia. Na visão de Fux, as recomendações do CNJ são simples sugestões, movidas por “fatores humanitários”, mas sem conexão direta com uma política mais ampla de proteção à saúde pública.