Dimitri Dimoulis

Em março de 2022, o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/stf">STF</a>) publicou um livro eletrônico de autoria coletiva de sua secretaria de estudos e pesquisas. O título deixa clara a importância e o ineditismo da iniciativa: “Produção de mulheres em direito constitucional”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
A parte central do estudo, bastante comentada nas redes sociais, consiste na publicação de uma lista de 100 obras que foram escritas por juristas mulheres e se encontram disponíveis nas bibliotecas jurídicas de Brasília. O prefácio da publicação, assinado pelo presidente da Corte, ministro Luiz Fux, não somente recomenda a leitura dessas 100 obras, como também compreende a publicação como ação afirmativa que objetiva enfrentar a invisibilização das mulheres juristas. Escreve Fux: “Esta publicação é uma forma de combater a injustiça desse cenário, fomentar uma alteração cultural no paradigma acadêmico no âmbito constitucional e alertar e corrigir esse viés de gênero” (p. 6).
O estudo não indica os critérios utilizados para escolher as obras indicadas, além do fato de se tratar de “nomes notáveis”. Não seria difícil mostrar que a escolha é metodologicamente frágil. Muitas autoras foram mencionadas com artigos de temática específica, mesmo possuindo obras de grande alcance e significado para o direito constitucional, assim como obras didáticas de grande difusão. Além disso, faltam da lista pesquisadoras de destaque mundial no direito constitucional.
Por outro lado, a lista padece de certa complacência em relação às ministras da Suprema Corte dos EUA, tendo sido incluídas todas as integrantes desse tribunal, incluindo as que não possuem obra teórica. Isso chama particular atenção se pensarmos que não aparecem na lista magistradas de cortes constitucionais de outros países com obra extensa de relevância supranacional. Citemos, como exemplos, Suzanne Baer (Alemanha) Diana Fajardo (Colômbia), Marta Cartabia (Itália).
Formular tais críticas metodológicas e insistir nas ausências não deve, entretanto, ofuscar uma iniciativa de grande relevância, prática e simbólica. Utilizar o prestígio do tribunal para promover a produção acadêmica de mulheres juspublicistas permite não somente chamar a atenção para a admirável produção teórica de colegas mulheres, como também sinaliza a necessidade de intensificar os esforços para alcançar a paridade de gênero em todos os aspectos e em todas as instâncias do mundo jurídico. Devemos aplaudir a iniciativa do STF e esperar mais “listas” com a mesma inspiração e finalidade.
A publicação oferece um ponto de partida para reflexões e ulteriores pesquisas. Lembremos aqui dos resultados de um estudo, rigoroso e metodologicamente sofisticado, sobre as práticas de citação doutrinária no controle abstrato de constitucionalidade no Brasil. Os autores mostram que as citações de juristas mulheres são escandalosamente restritas no Supremo.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> O tribunal segue, nesse aspecto, um padrão de exclusão que está presente na jurisdição constitucional da Iberoamérica,<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> e, muito provavelmente, no direito mundial. Esse triste diagnóstico nos incitou a verificar se as autoras da lista do Supremo foram citadas em decisões do próprio tribunal e qual a frequência de citação.
Para tanto utilizamos a ferramenta “Pesquisa de Jurisprudência”, disponível no site do tribunal. A ferramenta oferece acesso aos dados mais relevantes de cada decisão (“espelho”), mas infelizmente não permite pesquisar a íntegra dos votos emitidos. Se fosse feita a leitura na íntegra de centenas de milhares de decisões do Tribunal, muito provavelmente seriam encontradas mais citações de juristas, revelando-se nosso atual resultado como subinclusivo.
Mesmo assim, a ferramenta de pesquisa de jurisprudência apresenta grande utilidade para o nosso propósito, pois oferece acesso à lista da bibliografia mencionada em cada decisão.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> A ferramenta tem também a vantagem de não se limitar às decisões em sede de controle abstrato de constitucionalidade que costumam ser objeto de pesquisas quantitativas. Oferece acesso a todas as decisões do Tribunal, sendo elas colegiadas ou monocráticas. O único filtro é estabelecido pelo próprio Tribunal que não disponibiliza no site todas as suas decisões. Mesmo assim, podemos supor que foram digitalizadas as decisões que versam sobre temas complexos e controvertidos, isto é, aquelas que fazem necessário o recurso a obras doutrinárias.
Pesquisamos por obras das autoras que são incluídas na bibliografia dos “100 trabalhos”, tendo estabelecido uma lista que obedeceu a dois critérios.
Primeiro, nos limitamos a juristas brasileiras, não incluindo na nossa lista as autoras estrangeiras e as (poucas) pesquisadoras nacionais que não pesquisam temas jurídicos. Fizemos isso porque esses dois grupos têm objetivamente poucas chances de oferecer subsídios doutrinários. Sua inclusão aumentaria, sem justificativa plausível, a porcentagem de autoras não citadas pelo Supremo.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Segundo, afastamos da lista as integrantes do próprio tribunal, pois as constantes menções de seus nomes e posições doutrinarias se impõe em razão de sua posição institucional, e não decorre da opção de um julgador de invocar obra doutrinária pelo seu interesse intrínseco.<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>
Formou-se assim uma lista com 87 nomes de pesquisadoras e docentes de disciplinas jurídicas, cuja produção científica foi recomendada pelo próprio tribunal como “notável”.<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> Nossa pesquisa constatou que apenas 37 juristas encontraram menção em decisões do tribunal.<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Mais da metade das acadêmicas que perfazem a lista permaneceram sem menção em decisões do tribunal.
Igualmente interessante é a significativa diferença no volume de citações. Figura na primeira posição da lista a saudosa professora Ada Pellegrini Grinover com nada menos que 1.834 referências. As citações da professora Ada Pellegrini impressionam não somente em razão da grande distância que, como veremos, a separa das demais juristas. Fizemos também um “teste” com nomes de conhecidos juspublicistas e só encontramos dois com maior volume de citações: Pontes de Miranda e o antigo integrante do tribunal Aliomar Baleeiro.
Encontram-se a seguir nessa lista quantitativa as professoras Teresa Arruda Alvim (166), Anna Cândida Ferraz (154), Flávia Piovesan (87), Fernanda Dias Menezes de Almeida (67), Ana Paula de Barcellos (66) e Regina Nery Ferrari (62).
Seguem, em ordem de quantidade de citações, as professoras Misabel Derzi (38), Damares Medina (31), Maria Berenice Dias (23), Claudia Lima Marques (23), Aline Osorio (18), Maria Celina Bodin (18), Heloisa Estellita (17), Maria Teresa Sadek (15), Debora Diniz (13), Andréa Magalhães (12), Patrícia Campos Mello (12), Maria Paula Dallari (9), Helena Refosco (7), Nina Ranieri (6), Juliana Cesario (4), Beatriz Horbach (4), Soraya Lunardi (3), Vanice Valle (3), Margarida Camargo (2), Ana Frazão (2), Luciana Yeung (2). A lista das 36 juristas encerra-se com citações únicas das professoras Raquel Alves, Ana Elisa Bechara, Heloisa Câmara, Vera Chueri, Gisele Cittadino, Melina Fachin, Katya Kozicki, Nina Pecnak e Christine Peter.
A conclusão mais óbvia é que o tribunal devia multiplicar seus esforços antidiscriminatórios. Após ter publicamente questionado a invisibilização da produção de mulheres juristas e destacado, para a audiência nacional, a importância científica dessa produção, deveria efetivamente usar tais contribuições como elemento orientador de sua prática decisória. Somente nesse caso, o STF deixaria de seguir a triste regra de marginalização das mulheres na justiça constitucional.
Em perspectiva mais teórica, o debate sobre a atuação das mulheres no mundo jurídico possui dois aspectos distintos. O primeiro aspecto é o subjetivo. Refere-se aos obstáculos que são erguidos para as mulheres em uma sociedade de dominação masculina. São obstáculos presentes em todas as etapas e arenas da carreira jurídica. Todos concordam que o gênero que consta do documento de identidade de cada operador/a do direito não deve ser motivo para o tratamento diferenciado de sua obra, atuação e carreira. Mas isso ocorre com escandalosa frequência, cabendo a todos refletir sobre as causas e os processos dessa discriminação injustificada e atuar para a sua eliminação.
O segundo aspecto da inclusão feminina é mais complexo e de cunho objetivo. Diz respeito ao conteúdo das obras produzidas, às suas finalidades, metodologias e posicionamentos. Uma publicação jurídica pode adotar perspectivas feministas ou pelo menos mostrar sensibilidade por problemas de dominação masculina, como também pode seguir o padrão da argumentação tradicional que costuma ser apresentada como “neutra e técnica”. O posicionamento de cada pesquisa não se relaciona causalmente com o sexo biológico de quem assina. Há homens com formação teórica e produção doutrinária feminista, tal como há pesquisadoras que seguem padrões argumentativos idênticos aos que tradicionalmente adota o mainstream autoproclamado “neutro e técnico”.
Parte considerável das autoras mencionadas nas decisões do Supremo não possuem afinidade com o jusfeminismo: se suas obras fossem anonimizadas, a mera leitura tornaria impossível deduzir o sexo da autora. Isso é uma constatação que em nada afeta a qualidade técnica das obras escritas por mulheres e a necessidade de utilizá-las contra “costumes” preconceituosos.
Mas quem está preocupado com a introdução de pontos de vista feministas na argumentação jurídica e na prática forense nacional, deve enfrentar um debate mais complexo. Quais são as condições sociais e acadêmicas para desenvolver teorias e práticas jusfeministas? Louvemos a iniciativa do Supremo, celebremos as pensadoras do direito brasileiro e aprofundemos o debate e a crítica.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> STF, Secretaria de Altos Estudos, Pesquisas e Gestão da Informação. Produção de mulheres em direito constitucional: bibliografia, legislação e jurisprudência temática. Brasília: 2022.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> André Ramos Tavares; Renato Gugliano Herani. A contribuição da doutrina na jurisdição constitucional brasileira (apresentação dos dados). In Lucio Pegoraro; Giovanni Figueroa Mejía (orgs.). Profesores y jueces. Influjos de la doctrina en la jurisprudencia constitucional de Iberoamérica. México: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2016, p. 179-220.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. a apresentação dos organizadores, ibidem, p. 43.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Efetivamente essas autoras não foram citadas pelo Supremo com duas exceções: uma citação de Ruth Ginsburg e onze referências a Vicky Jackson, todas citando o mesmo manual, escrito em coautoria com pesquisador homem.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Poderíamos também problematizar a presença na nossa lista de acadêmicas que atuaram como assessoras do Supremo ou tiveram citação de estuda escrito em coautoria com integrantes da Corte. Contudo, o nosso objetivo é refletir de maneira ampla sobre a presença de mulheres na justiça constitucional, sem se preocupar com considerações de imparcialidade da citação.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Em ordem alfabética: ALENCAR, Ildegard; ALMEIDA, Cecilia; ALMEIDA, Eloísa; ALMEIDA, Fernanda; ALVES, Raquel; ALVIM, Teresa; BARBIERI, Catarina; BARBOZA, Estefânia; BARCELLOS, Ana Paula; BASTOS, Ana Carolina; BECHARA, Ana Elisa; BEDÊ, Fayga; BERTÚLIO, Dora; BUCCI, Maria Paula; CABRAL, Trícia; CÂMARA, Heloisa; CAMARGO, Margarida; CASTILHO, Ela; CASTRO, Carolina; CHUEIRI, Vera; CITTADINO, Gisele; CONCEIÇÃO, Isis; CUNHA, Luciana; DERZI, Misabel; DIAS, Maria Berenice; DINIZ, Debora; DODGE, Raquel; DUPRAT, Déborah; ESTELLITA, Heloisa; ESTEVES, Bruna; FACHIN, Melina; FARIA, Adriana; FERNANDES, Tarsila; FERRARI, Paola; FERRARI, Regina; FERRAZ, Anna Candida; FLAUZINA, Ana Luiza; FRAZÃO, Ana; FREITAS, Ana Teresa; GOMES, Juliana; GONÇALVES, Cláudia; GRINOVER, Ada; GUAJAJARA, Maria Judite; GUIMARÃES, Lívia; HORBACH, Beatriz; KOZICKI, Katya; LIRA, Daiane; LOIS, Cecilia; LUNARDI, Soraya; MAGALHÃES, Andréa; MARQUES, Claudia; MEDEIROS, Ana Rafaela; MEDINA, Damares; MELLO, Patrícia; MORAES, Maria Celina; MULHOLLAND, Caitlin; NERIS, Natália; NUSDEO, Ana Maria; OLIVEIRA FILHA, Manuelita; OLIVEIRA, Fabiana; OLSEN, Ana Carolina; OSORIO, Aline; PASQUALOTTO, Victória; PASSAMANI, Brigida; PENCAK, Nina; PEREIRA, Paula; PETER, Christine; PIOVESAN, Flávia; PIRES, Thula; PONTES, Juliana; PRUDENTE, Eunice; RAMOS, Edith; RAMOS, Luciana; RAMPIN, Talita; RANIERI, Nina; REFOSCO, Helena; SADEK, Maria Tereza; SANTOS, Samara; SILVA, Allyne; STANCHI, Malu; STRAPASSON, Kamila; VALLE, Vanice; VAN DER BROOCKE, Bianca; VERBICARO, Loiane; YEUNG, Luciana.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Procuramos encontrar o maior número de referências a cada autora ao pesquisar de três maneiras: nome completo; último sobrenome e primeiro nome; último sobrenome acompanhado da inicial do nome.

STF justiça

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JOTA

Após questionar invisibilização de mulheres juristas, Supremo deveria efetivamente usar tais contribuições

Constitucionalistas mulheres e o STF: muito elogiadas, pouco citadas

Após questionar invisibilização da produção de mulheres juristas, Supremo deveria efetivamente usar tais contribuições