Em 12 de maio, a Câmara dos Deputados realizou alterações substanciais em seu Regimento Interno com a aprovação da Resolução n. 21, de 2021. As mudanças afetam dispositivos que, em sua ampla maioria, possibilitavam a obstrução, processo rotineiramente utilizado pelos partidos de oposição ou outras forças minoritárias no Legislativo como forma de fazer o enfrentamento democrático em contraponto à maioria governista.
Partidos de oposição alegaram afronta ao direito de minoria, por essas alterações promoverem redução significativa de suas capacidades regimentais. A ampla base governista afirmara que as alterações têm como objetivo ampliar a análise de proposições em votação. Segundo essa bancada, a reforma poderá substituir a obstrução, que esses parlamentares enxergam como exagerada, por um debate mais profundo e mais longo do mérito das matérias. A redução dos instrumentos utilizados no chamado “kit obstrução” teria como efeito prático, na verdade, facilitar o avanço de projetos do governo, cuja aprovação toma diversas horas de atividade em Plenário.

O grupo político liderado por Arthur Lira já debatia a redução do poder da oposição desde fevereiro, logo após a sua eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. A concretização se deu em passos rápidos: na terça-feira, dia 11/05, os parlamentares aprovaram, por 336 votos a 135, um requerimento de urgência para apreciar a proposta; e na quarta-feira, dia 12/05, foi aprovado o PRC 84/2019 por 337 votos favoráveis contra 110 contrários e uma abstenção. Como se trata de um assunto interno da Câmara, o projeto não precisa de análise do Senado, tampouco de sanção presidencial. O novo texto regimental passou a valer a partir de 13/05.
A intenção foi alterar o regimento interno com o objetivo de reduzir as formas hoje existentes para atrasar ou até mesmo barrar as votações de projetos. Como será visto neste artigo, tais alterações tiveram o condão de reduzir os espaços de atuação dos partidos de oposição e, de outra monta, não garantirão o aumento da capacidade deliberativa das proposições. Outras medidas que deveriam ser tomadas para aperfeiçoar o processo legislativo deixaram de ser debatidas e aprovadas nesta ocasião.
Retrocessos ao direito de minoria
Foram diversas as alterações promovidas no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD) com vistas a reduzir a efetividade da obstrução promovida pela Oposição, que podem ser organizadas em: a) extinção ou limitação do uso de requerimentos procedimentais; b) reorganização do funcionamento da sessão; e c) redução de instrumentos que afetam o mérito das proposições.
O chamado “kit obstrução”, jargão para o conjunto de requerimentos que podem ser apresentados durante a apreciação de uma matéria para promover seu retardo e testar a resiliência da base, foi duramente reduzido. A obstrução é utilizada por aqueles que são contrários à proposição e fazem isso para tornar a tramitação mais desgastante e ter poder de barganha. Por isso, diz-se que se trata de um instrumento das minorias.
Das ferramentas do “kit”, três foram completamente extintas: a possibilidade de se (i) debater e (ii) votar as proposições por partes, ou seja, organizada por dispositivos agrupados conforme o tema ou sua correlação lógica, e (iii) a quebra de interstício, que viabilizaria verificações de votação em sequência, antes de transcorrido o intervalo regimental de uma hora. Este último, embora ainda previsto no texto regimental, agora é apenas oral e sem encaminhamento, tendo perdido qualquer função no processo obstrutivo.
Parte da limitação do uso de requerimentos decorre, essencialmente, da normatização no texto regimental de questões de ordem já em prática, como a apresentação de requerimento de retirada de pauta ou de adiamentos da discussão ou de votação (caso todos os pareceres sejam conhecidos e não sejam alterados) na mesma sessão em que houve aprovação da urgência ou em sequência ao encerramento da discussão ou à rejeição de outro requerimento com a mesma função de postergar a votação.
Contudo, uma limitação significativa se configura na restrição do prazo e, de forma ainda mais premente, no número de requerimentos de adiamento de discussão e votação. Antes da reforma, havia a possibilidade de múltiplos pedidos, por períodos diferentes. Agora, apenas um adiamento de cada tipo, discussão ou votação, poderá ser apreciado, e ainda assim caso não seja prejudicado conforme a explanação acima.
A fundamentação dessa decisão seria o contrassenso de se apreciar instrumentos de finalidades opostas um seguido do outro. Todavia, esses requerimentos eram justamente a forma encontrada para fazer frente à celeridade promovida pela aprovação da urgência pela maioria, para dar mais tempo para a sedimentação do debate público.
A reorganização do funcionamento da sessão terá o maior impacto inovativo contra a oposição. As sessões agora terão tempo indeterminado e poderão ser prorrogadas pelo presidente da Câmara sempre que ele julgar necessário.
Anteriormente, cada sessão deliberativa tinha quatro ou cinco horas de duração, prorrogáveis por mais uma. Ao final desse prazo, era preciso abrir uma nova sessão, o que gerava a oportunidade para solicitar a verificação do quórum, e renovava o uso das chamadas comunicações de liderança. A verificação do quórum tinha um efeito forte sobre a capacidade de articulação da base aliada, não raro sendo responsável por derrubar a sessão, oferecendo mais tempo para a oposição chamar atenção da sociedade para o tema.
Além da duração total da sessão, foi também fixado em dois oradores o encaminhamento, um contrário e um favorável e em três minutos o tempo de discussão e encaminhamento das matérias, afetando em especial as propostas de emendas à constituição, que na regra anterior era debatida por cinco minutos por cada parlamentar.
A principal redução que afeta a capacidade de influenciar o mérito das proposições é a exigência de quórum de líderes que representem a maioria absoluta (257 deputados) da Casa para apresentação de emendas aglutinativas. Com isso, ficou materialmente inviável à atual oposição, cujos líderes somam uma média de 120 a 130 parlamentares, conseguir fazer uso do instrumento.
Outra mudança na mesma linha é a efetiva extinção dos destaques individuais, que agora exigem a hercúlea tarefa de apoio unânime dos líderes. Até a mudança, os deputados poderiam fazer sugestões individuais de que aspectos do projeto seria votado no detalhe. Na prática, contudo, todos eles eram derrotados em conjunto, na chamada votação em globo, que contribuía para a obstrução gerando duas votações a mais.
Vale ressaltar que destaques e emendas aglutinativas foram originalmente pensados para solucionar impasses políticos. Instrumentos de mérito de fato não devem ser usados para promoção de obstrução, sob risco de contaminar a lei, objeto do debate, com alterações propostas apenas para postergar o embate político.
As limitadas compensações apresentadas
A proposta aprovada ampliou o número de deputados que podem falar em cada discussão, antes da possibilidade do seu encerramento, de quatro ou seis para doze. O aumento é significativo e auxiliará a promover a troca de argumentos de forma mais efetiva. Porém, o tempo total que cada proposição levará em Plenário, devido às mudanças nos encaminhamentos e na redução do número de requerimentos, seguirá sendo reduzido.
Ademais, quando o parecer às emendas de plenário for oferecido, será dado prazo de dez minutos, após a disponibilização do parecer, para se iniciar o processo de votação. Embora seja um avanço em relação à situação anterior, quando não havia previsão alguma, trata-se evidentemente de prazo exíguo para que os parlamentares possam se apropriar, devidamente, das alterações feitas no relatório, bem como promover o saudável debate público sobre o novo texto.
O único avanço real do ponto de vista da minoria é a limitação da suspensão por uma hora das sessões plenárias e das reuniões de comissão. Isso limita a prerrogativa de iniciar os trabalhos legislativos e interrompê-los por duração indeterminada, retomando posteriormente sem renovação de instrumentos de obstrução, como o uso da palavra para comunicação de liderança ou a verificação de quórum no painel eletrônico.
Quais outras mudanças precisavam ser aprovadas?
As mudanças promovidas aumentarão o poder do presidente da Câmara, uma vez que se diminui a chance de não haver deliberação sobre os projetos que ele colocar na pauta de votação. Por essa razão, uma importantíssima alteração que deixou de ser promovida seria o cerceamento do poder quase absoluto da presidência de alterar a pauta quando quiser. Isso provoca imensa insegurança, pois itens podem ser incluídos na pauta sem que seja dado tempo suficiente para a sociedade se preparar para o legítimo debate. As pautas, bem como os relatórios das proposições que nelas figurem, deveriam ter obrigatoriedade de divulgação com, no mínimo, 48 horas de antecedência.
Outra questão importante que ficou de fora das alterações regimentais promovidas foi o aperfeiçoamento da tramitação das questões de ordem. Trata-se de ferramenta importante para o esclarecimento de dúvidas regimentais ou mesmo constitucionais sobre o processo legislativo em andamento. Atualmente, a resposta do Presidente da Casa a essas questões prevalece, pois o instrumento de recurso ao Plenário é mal formulado no Regimento.
Apesar de ser um assunto extremamente técnico e árido, a reforma regimental dos procedimentos de obstrução afeta um tema muito caro a qualquer democracia: o direito de minoria.
Mesmo tendo sido propostas compensações, como a limitação da suspensão da sessão e um prazo, ainda que exíguo, para análise das mudanças no parecer após a discussão, o saldo, diante das limitações e mesmo extinção de instrumentos regimentais até então utilizados pela oposição, será de uma considerável redução da capacidade de protelação dos trabalhos.
O atraso promovido pela obstrução oferece tempo para se formar opinião pública suficiente para pressionar os deputados a desistirem da votação ou mudar de posição. Com a aceleração da tramitação das proposições, dificilmente haverá tempo hábil para comunicar devidamente os objetivos da matéria, levando a opinião pública a se informar da decisão a posteriori, sem haver amadurecimento necessário formado pelo contraditório e aposição de argumentos contrários.
O espaço dos instrumentos de obstrução foi uma conquista ao longo dos anos. A reforma realizada desequilibrou o sistema em favor da maioria ao não compensar com limitações ao poder da Presidência sobre a pauta e as questões de ordem. Com o tempo, mediante embates liderados pela minoria de cada momento, espera-se que sejam produzidas novas interpretações e questões de ordem que recuperarão a capacidade de obstruir.
