Vera Karam de Chueiri

Miguel Gualano de Godoy

A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp) ajuizou perante o STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 881 em face do <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm">artigo 319 do Código Penal</a>, que prevê o crime de prevaricação: retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
A Conamp pediu a não recepção parcial pela Constituição da referida norma penal para afastar do seu campo de incidência a atuação dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário no que tange à sua autonomia funcional na tarefa de interpretar e aplicar o direito.
A ADPF foi proposta pela Conamp, porém, para benefício de ambas as corporações (Ministério Público e Poder Judiciário), com fundamento na independência funcional de seus membros e na proteção (ou blindagem?) das razões que estes oferecem ao interpretar e aplicar o direito.
O que, no entanto, se demanda é que possam os membros de tais corporações interpretar e aplicar o direito como bem desejarem, sem o ônus argumentativo que as democracias constitucionais requerem. Ônus esse que, a um só tempo, justifica a autoridade pública com boas razões e oferece respostas aos casos que lhes são dados opinar e decidir.
Membros do Ministério Público e da magistratura devem atuar para aumentar a legitimidade democrática por meio da interpretação e aplicação do direito, e não o contrário. Ou seja, oferecer boas razões por meio das suas argumentações é o mínimo que se espera, é a premissa do agir destes agentes públicos no exercício das suas funções.
Nas democracias constitucionais, demandas corporativas são comuns e corriqueiras e podem ser pautadas por motivos diversos e fundamentadas com base em princípios, em políticas ou em nenhum destes.
No primeiro caso (motivação por princípios), grupos corporativos reivindicam o cumprimento de determinados direitos. No segundo caso (motivação por políticas), a maximização de determinados benefícios ou vantagens por motivos estratégicos ou outros. E no último caso (motivação independentemente de princípios ou políticas), desejam apenas a criação, manutenção ou ampliação de privilégios, em geral antirrepublicanos, não igualitários, muitas vezes resquícios das corporações em tempos não democráticos e precariamente constitucionais.
Daí o fato inusitado de que, em plena vigência do arranjo constitucional democrático de 1988, membros do Ministério Público e da magistratura, agentes públicos que são, demandem, corporativamente, que suas manifestações, no exercício de suas funções constitucionais, estejam protegidas de qualquer tipo de crivo ou controle. Inusitado, sim, pois, a premissa é que tais agentes devem atuar para garantir e aumentar a legitimidade do sistema de justiça, e não para criar imunidades penais colocando-se acima (ou a despeito) da lei.
No entanto, o ministro Dias Toffoli acatou o pedido da Conamp na ADPF 881 e concedeu medida cautelar monocrática, ad referendum do plenário do STF, para suspender a eficácia do artigo 319 do Código Penal para membros do Ministério Público e do Poder Judiciário que, no exercício de suas funções, interpretem o direito, à sua própria maneira, em discordância com seus pares de corporação ou atores sociais e políticos.
A decisão, tal como a inicial da ADPF 881, se fundamenta na independência dos membros do Ministério Público, do Judiciário e na impossibilidade de que suas interpretações e argumentos sejam criminalizados. Ou seja, a decisão busca evitar perseguições contra os membros das respectivas corporações ao impedir que lhes seja atribuído o “crime de hermenêutica” com a imputação do crime de prevaricação.
A decisão, todavia, parece errar na forma e no conteúdo.
Na forma porque, a despeito da Lei da ADPF prever a possibilidade de cautelar monocrática, não parece haver nenhuma extrema urgência ou perigo de lesão grave que a lei exige. Ainda, os argumentos apresentados na decisão são todos abstratos e, assim, não justificam a exigência legal de extrema urgência ou perigo grave.
No conteúdo porque parte de premissas verdadeiras (com as quais todos nós concordamos) para chegar a conclusões falsas. Vale dizer, membros do Ministério Público e juízes são independentes e devem ter garantias para o exercício de suas funções, porém, nenhuma atuação de membros do Ministério Público e juízes, no exercício de suas funções, pode configurar crime de prevaricação. Oras, atuações no exercício lícito e regular, bem fundamentadas, jamais podem incidir no crime de prevaricação.
A decisão apenas diz o óbvio e deixa de enfrentar o principal elemento exigido para que se configure o crime de prevaricação: o especial fim de agir do agente público. Vale dizer, qualquer agente público pode cometer o crime de prevaricação, inclusive membros do Ministério Público e do Judiciário, se, a despeito de atuarem no exercício de suas funções, retardarem ou deixarem de praticar atos que deveriam realizar. Esse retardo ou falta de atuação exige o especial fim de atuação indevida (retardada ou não realizada) para satisfação pessoal.
Ou seja, a decisão do ministro Toffoli busca garantir a independência funcional de membros do Ministério Público e do Judiciário, reconhecendo sua independência funcional, a importância de se protegê-la, mas cria uma imunidade penal ao afastar a possibilidade de responsabilização de membros do Ministério Público e juízes que atuem com especial fim de agir para retardar ou deixar de praticar atos que deveriam realizar. Neste sentido, parte de premissas verdadeiras, mas chega à falsa conclusão de que então membros do Ministério Público e juízes jamais poderiam cometer crime no exercício de suas funções.
Não se cogita que as atuações dos membros do Ministério Público e juízes, no exercício regular de suas funções, configurem crime, ainda que representem entendimentos minoritários, divergentes, ou errados mesmos. Tais decisões são passíveis de correções via recursos, e não via sanção penal. Todavia, não é disso que trata a decisão do ministro Toffoli. Ela impede que membros do Ministério Público e juízes mal intencionados, com especial finalidade de prevaricar, sejam responsabilizados por esse crime. A decisão do ministro Toffoli não protege os membros do Ministério Público e do Judiciário da imputação do suposto “crime de hermenêutica”, os protege do crime prevaricação mesmo.
Ainda que haja um propósito na ADPF 881, na medida em que corporações são movidas por interesses próprios e específicos de seus corpos, nada mais ilegítimo do que opor tais interesses à função pública de julgar e opinar com vistas a blindar suas ações e omissões, decorrentes das interpretações que fazem do direito, de maneira a protegê-las, no matter what. Para nossa incompreensão, mais inusitada do que a referida demanda corporativa feita pela Conamp é a decisão cautelar dada pelo ministro Toffoli.
Esperamos que o plenário do STF possa corrigir esses erros e reafirmar a exigência e o compromisso de membros do Ministério Público e do Judiciário com uma atuação ciosa, rigorosa, sempre independente, mas também sempre responsiva, e jamais com imunidades penais extraordinárias criadas por decisão judicial.

justiça judiciário

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JOTA

A decisão do ministro Toffoli na ADPF 881 em xeque

Crime de hermenêutica ou blindagem a juízes e promotores?

Decisão de Toffoli na ADPF 881 não protege os membros do MP e do Judiciário suposto crime de hermenêutica, mas do crime prevaricação mesmo