Diego Werneck Arguelhes
Professor Associado do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa.
Em março de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que municípios, estados e União têm competência concorrente para adotar medidas restritivas, dentro das respectivas esferas de competência, para proteger a saúde da população de acordo com a realidade local. Desde então, Bolsonaro tentou transformar a derrota judicial em vitória política. Por meios formais e informais, disseminou a falsa leitura da decisão como uma proibição de ação por parte do Executivo federal. Como se, em vez de dizer que estados e municípios também podem adotar essas medidas, dissesse que apenas eles podem fazê-lo.
Em manifestações de Bolsonaro e do alto escalão do governo, afirmou-se que o Supremo teria na verdade proibido o governo de adotar medidas restritivas. Essa versão não merece o nome de narrativa. Ela é apenas falsa, como o Supremo já registrou em nota oficial. Mas, afinal, como o governo teria enfrentado a pandemia sem essa decisão do tribunal?
Essa questão já apareceu na CPI da Pandemia, no Senado. Mas uma resposta surgiu no Supremo, em recente ação que Bolsonaro escolheu assinar com o Advogado-Geral da União, André Mendonça. No raciocínio que usam para atacar três decretos estaduais, aparece uma confissão pouco surpreendente: Bolsonaro teria feito basicamente as mesmas coisas que já fez.
Entre as medidas estaduais contestadas, estão a suspensão ou limitação do funcionamento de estabelecimentos comerciais, restrições à circulação de pessoas em determinados horários e a proibição de aglomerações. Para atacar os decretos, Bolsonaro e Mendonça questionam a própria ideia de que faz sentido separar atividades econômicas em essenciais e não-essenciais, afirmando que “para quem dela extrai o seu sustento diário, qualquer atividade será absolutamente essencial”. Mais ainda, afirmam que a lei da Covid-19 só autorizaria as medidas de “isolamento, quarentena e restrição de trânsito interestadual e intermunicipal” – sendo que, argumentam, isolamento e a quarentena seriam admissíveis apenas para “pessoas certas e determinadas, quais sejam, aquelas contaminadas ou suspeitas de contaminação”.
Querem convencer o Supremo de que “não há respaldo legal para esse tipo de restrição, uma vez que a Lei nº 13.979/2020 não habilita a edição de medidas de cunho genérico e indiscriminado.” Entre as medidas “genéricas e indiscriminadas”, a peça inclui quaisquer restrições a atividades comerciais.
Para além dos outros argumentos que apresentam contra medidas restritivas específicas, como “toque de recolher”, há uma clara tese geral: mesmo com a leitura dada pelo STF quanto ao aspecto federativo, a Lei da Covid não dá base legal para nenhuma autoridade executiva adotar medidas restritivas como fechamento ou restrição de comércio, aglomeração e locomoção. Pode limitar transportes e entrada no país, e isolar pessoas contaminadas ou suspeitas de contaminação – e só.
A petição é uma confissão assinada de livre e espontânea vontade pelo presidente Bolsonaro.
O Executivo federal sempre afirmou que a decisão do STF teria “atrapalhado” sua atuação na pandemia. Mas a ação de Mendonça e Bolsonaro só confirma que isso é falso.
Deixa claro o que o governo teria feito sem as alegadas “mãos atadas” pelo STF: não teria adotado nenhuma medida restritiva de comércio e locomoção, apenas de transporte, e isolamento e quarentena para casos suspeitos ou confirmados de contaminação. Não poderia ter feito nada disso, porque acreditam que a legislação existente não permite
Mais ainda, a ação mostra que, no fundo, o governo não queria ter adotado medidas restritivas de comércio e aglomerações. Afinal, a legislação existente poderia ter sido alterada a qualquer tempo pelo Executivo, por medida provisória. A lei da Covid foi de fato alterada por medidas provisórias diversas vezes. Se Bolsonaro considerasse importante ampliar a base legal para outras medidas restritivas, poderia ter feito isso. Se um presidente tão cioso do poder de sua canetada nada fez sobre um tema, mesmo podendo agir unilateralmente, é forte sinal de que não se importa.
A CPI tem estado às voltas com depoentes que mentem e contradizem o que bradavam no passado. Para piorar, os senadores parecem ter (erroneamente) entendido os habeas corpus de Eduardo Pazuello e Mayra Pinheiro como se protegessem o direito de mentir, e não o de ficar em silêncio. Em meio a mentiras e contradições, é bem-vindo um documento oficial em que o governo revela o que não teria feito, em 2020, caso pudesse enfrentar a Covid apenas nos seus termos. Para poupar o tempo de todos, Bolsonaro e Mendonça deveriam ter protocolado logo uma cópia de sua ação-confissão junto ao Senado. Ali deixam claro que, para Bolsonaro, o problema na pandemia não foi o que os outros o impediram de fazer - mas sim o que ele não queria fazer, e não queria que ninguém mais fizesse.