Liberdade de expressão

STF julga responsabilização de jornal por imputação de ato ilícito em entrevista

Para Marco Aurélio, jornal não excede ‘direito-dever’ de informar ao publicar entrevista. Alexandre de Moraes pediu vista

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Está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que debate os limites da atuação jornalística. Os ministros terão de decidir se um veículo de imprensa pode ser responsabilizado pela publicação de uma entrevista em que a pessoa ouvida imputa o cometimento de atos ilícitos a terceiro.

O relator do caso, ministro Marco Aurélio, votou de forma favorável ao jornal enquanto o ministro Luiz Edson Fachin divergiu, entendendo ser necessário o espaço o outro lado mesmo em entrevista. O caso estava sendo apreciado na sessão do plenário virtual que se encerraria na sexta-feira (5/6), mas o ministro Alexandre de Moraes pediu vista nesta quarta-feira (3/6).

O relator propôs a seguinte tese: “Empresa jornalística não responde civilmente quando, sem emitir opinião, veicule entrevista na qual atribuído, pelo entrevistado, ato ilícito a determinada pessoa”. O RE 1075412, interposto pelo Diário de Pernambuco S.A., teve repercussão geral reconhecida em maio de 2018. 

Na instância de origem, o ex-deputado federal Ricardo Zarattini Filho (PT-SP) ajuizou uma ação contra o Diário de Pernambuco pedindo uma indenização por danos morais causados por uma entrevista no formato de perguntas e respostas com o ex-parlamentar alinhado ao regime de exceção Wanderkolk Wanderley. Na entrevista, publicada em 1993, o ex-parlamentar acusou Zarattini de participar da explosão de uma bomba no Aeroporto de Guararapes, no Recife, em 1966.

Mais tarde, ficou comprovado que ele não teve qualquer envolvimento no atentado que matou duas e feriu outras 14 pessoas. Zarattini foi considerado inocente pela Comissão Estadual da Verdade, em 2013. O alvo da ação era o então candidato e depois presidente, marechal Costa e Silva. Ele ajuizou duas ações: uma contra o entrevistado, outra contra o jornal. Venceu a primeira, sem longa disputa. E a segunda aguarda o julgamento dos ministros do STF. Zarattini morreu em outubro de 2017, aos 82 anos. 

A primeira instância havia condenado o jornal a indenizar Zarattini. A decisão foi reformada pelo Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco (TJPE). Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou procedente o pedido de indenização, em decisão apertada. A tese vencedora citou o direito ao esquecimento e aplicou jurisprudência no sentido de que a imprensa é corresponsável por tudo que publica. A 3ª Turma do STJ, em outubro de 2016, condenou o jornal a pagar indenização de R$ 50 mil ao ex-preso político. O colegiado entendeu que a Lei de Anistia de 1979, que beneficiou Zarattini, deu-lhe o direito ao esquecimento de seu passado como militante de oposição à ditadura militar.

O relator do caso no STF, no entanto, deu peso ao direito fundamental à liberdade de expressão, cujo escopo inclui, dentre outros, direito de discurso, de opinião, de imprensa, à informação e à proibição da censura. “A liberdade de expressão estabelece ambiente no qual, sem censura ou medo, várias opiniões e ideologias podem ser manifestadas e contrapostas, caracterizando processo de formação do pensamento da comunidade política”, disse o ministro.

Marco Aurélio enfatiza que o sistema constitucional brasileiro não agasalha o abuso da liberdade de expressão, mas que não foi isto que ocorreu no caso concreto. “O jornal não emitiu opinião a influenciar leitores.” Segundo o ministro, ainda que tenha sido inadequado o que foi dito na entrevista, responsabilizar a imprensa não é a forma ideal de combater o abuso. Leia a íntegra do voto

“Diferentemente de outros meios para veiculação de opiniões, a entrevista não foi transmitida ao leitor independentemente da vontade, descabendo compará-la, por exemplo, a um carro de som a jorrar ideias que todos são obrigados a ouvir. Há ampla liberdade do público tanto na escolha do material a ser lido como na tomada de posição ao término da leitura. Nessa óptica, o jornal impresso é democrático por excelência, tendo em vista depender da vontade de desembolsar quantidade monetária para obtê-lo.”

O relator apontou que “o jornalista não deve criar nem deturpar; deve atuar com fidelidade absoluta aos fatos conhecidos, acreditando serem eles verdadeiros” e, além disso, ‘tratando-se de mera reprodução de entrevista, não significa que os leitores acreditarão na veracidade do conteúdo ou estarão de acordo com este”. Acrescentou, também, que a acusação de crime não foi o objeto principal da entrevista nem figurou no título.

Marco Aurélio ressaltou ainda o risco de censura de pleitos do tipo. De acordo com ele, em um RE com repercussão geral reconhecida não se deve conceber censura prévia. O que se deve fazer é a responsabilização de algum desvio, o que, para ele, não ocorre ao se publicar uma entrevista.

“Avocar o Judiciário papel de censor, condenando nessas condições, enseja precedente perigoso. Já se disse e se repete – e é bom que se ouça – que, sem liberdade de imprensa, sem veículos de comunicação livres, não se tem democracia, porque esse direito-dever de informar permite à sociedade acompanhar a vida nacional.”

Divergência

O caso não trata, para o ministro Luiz Edson Fachin, de pedido de censura prévia, mas da responsabilização posterior pelo que foi publicado. Ao abrir a divergência, ele cita tantos os dispositivos da Constituição Federal quanto os de tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário que dispõem sobre os contornos da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa em concorrência com outros princípios que se aplicam ao caso, o da dignidade humana e do direito à privacidade e à honra.

“A liberdade de imprensa goza de um regime de prevalência, sendo exigidas condições excepcionais para seu afastamento quando em conflito com outros princípios constitucionais. Para além da configuração de culpa ou dolo do agente, é necessário também que as circunstâncias fáticas indiquem uma incomum necessidade de salvaguarda dos direitos da personalidade”, disse o ministro, acrescentando entender ser o caso.

De acordo com Fachin, o acórdão atacado apontou que o Diário de Pernambuco não fez as ressalvas devidas quanto à honra de Zarattini. “Para além de não ter sido oportunizado a este a apresentação de sua versão dos fatos, a entrevista publicada não examinou o potencial lesivo da informação divulgada, nem tampouco empregou os mecanismos razoáveis de aferição da veracidade das informações. Não restou sequer provado nos autos que o entrevistado, responsável pelas alegações que atribuíam ao recorrido a prática de fato típico, houvera promovido, de fato, tal imputação”, ressaltou. Leia a íntegra do voto.

O advogado João Carlos Velloso representa o Diário de Pernambuco no caso. Ele aponta para o risco de efeito deletério sobre a liberdade de expressão e liberdade de imprensa caso a tese do ministro relator não saia vencedora. “A responsabilização solidária da imprensa pela publicação de entrevista, quando não há qualquer emissão de opinião por parte do entrevistador, se traduz em grave ameaça à liberdade de imprensa assegurada pela Constituição”, disse.

A possibilidade de punição civil ao órgão de imprensa funcionaria, para ele, como um efeito inibidor da atividade. “É que, em se tratando de entrevistas, a imprensa possui função de mero intermediário: limita-se a publicizar a opinião do entrevistado, na medida em que, como regra, o jornalista entrevistador não emite a sua opinião sobre o assunto tratado.”

O advogado Rafael Carneiro representa a família de Zarattini no processo. Ele defende que, no caso concreto, a responsabilidade do veículo está verificada porque na época da entrevista o próprio regime militar já havia arquivado a investigação contra o militante. “Sou um grande defensor da liberdade de imprensa, mas essa situação não pode ser colocada na vala comum. É preciso ter um mínimo de ponderação quando se trata de acusação de crime e sem provar inclusive que foi o entrevistado que disse isso”, disse.

O jornal não anexou aos autos gravação ou prova de que Wanderley fizera a acusação. O anticomunista negou, em juízo, ter dado aquelas declarações. Carneiro lembra o voto do ministro Sanseverino, no STJ, para quem fatos da ditadura, como este, devem ser tratados com ponderação pela imprensa. O ministro comparou, inclusive, com a televisão: na imprensa escrita é possível fazer checagem, diferente da TV em entrevista ao vivo.

Por isso, o advogado afirma que, ainda que o STF siga a orientação do ministro relator, o caso concreto mereceria tratamento diferenciado, já que a tese seria, para ele, inaplicável. “Em todo esse contexto de arquivamento pelo regime, reconhecido de autoria por um terceiro, após anos, se retoma um assunto com essa acusação grave sem um mínimo de diligência e sequer sem comprovar que fez essa acusação”, pontuou.