Pandemia

STF decidiu contra o governo em 58% das ações relacionadas à Covid-19

STF recebeu 58 ações contra Planalto, mas os temas se repetem: a maioria das ações questiona as MPs 927, 966 e 954

Bolsonaro
O presidente da República Jair Bolsonaro / Crédito: Isac Nóbrega/PR

Medidas provisórias, decretos, falta de divulgação de dados relacionados à Covid-19, omissões e outras ações do presidente Jair Bolsonaro e de seus ministérios relacionadas à pandemia da Covid-19 vêm sendo frequentemente questionadas no Supremo Tribunal Federal (STF) desde março, quando o vírus se alastrou pelo país. De acordo com levantamento feito pelo JOTA, de 23 de março até esta segunda-feira (20/7) foram ajuizadas ao menos 58 ações questionando a constitucionalidade de atos do presidente da República.

Em 34 delas, ou seja, em 58,62% do casos, houve decisão desfavorável ao governo, com suspensões parciais ou integrais de medidas provisórias ou determinações para que o presidente sanasse omissões. Foram 39 ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) e 18 arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs), a maioria ajuizada por partidos políticos. A Rede Sustentabilidade foi a que mais acionou o STF contra ações do Planalto relacionadas à Covid-19, com nove ações. O PDT acionou o STF oito vezes, enquanto o PSOL, sete. Entre entidades de classe, a mais atuante foi a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com quatro ações ajuizadas.

Algumas dessas decisões desfavoráveis foram motivo de atrito entre o STF e o Planalto, o que fez a base bolsonarista acusar o tribunal de interferir nas ações do Executivo no enfrentamento da crise. A mais criticada e citada — de maneira infundada — pelo governo como motivo para falta de atuação em determinadas áreas foi a decisão que reconheceu a competência de municípios e estados para tomarem medidas contra a Covid-19.

A primeira ação envolvendo a Covid-19 no STF questionou a Medida Provisória 926/2020. Em 24 de março, o ministro Marco Aurélio acolheu parcialmente pedido do PDT para explicitar que a MP, que transfere para os órgãos reguladores (Anvisa, ANAC e ANTAq) o poder de restrição da locomoção em todo o território nacional, não afasta a competência de estados e municípios para tomar medidas para conter a pandemia do coronavírus. Em 15 de abril, o plenário referendou a liminar por unanimidade.

Mas a verdade é que, apesar do grande número de ações, os questionamentos se repetem. Só a Medida Provisória 927/2020, por exemplo, foi alvo de dez ações. A MP trouxe mudanças nas regras trabalhistas, como a possibilidade de antecipação de feriados, e a suspensão do recolhimento do FGTS por alguns meses.

Nessas ADIs, que foram julgadas conjuntamente, o plenário do STF decidiu, em abril, conceder liminar parcial para suspender dois dispositivos. O primeiro deles previa que a Covid-19 não poderia ser considerada doença ocupacional, e o outro limitava a atuação de auditores fiscais do trabalho durante a pandemia.

Já a MP 966/2020, que isentou de responsabilização agentes públicos por erros que viessem a cometer ao lidar com a crise sanitária e econômica em decorrência da pandemia de Covid-19, foi questionada por sete ações. As ADIs foram julgadas em conjunto em 21 de maio, ocasião na qual o plenário definiu que “erro grosseiro” de agentes públicos, passível de responsabilização como consta no texto da MP, é não observar critérios científicos e de organizações reconhecidas nacional e internacionalmente, especialmente a Organização Mundial de Saúde (OMS).

Outra Medida Provisória bastante questionada foi a MP 954/2020, que determinou que as empresas telefônicas deveriam compartilhar seus dados com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para fins de pesquisa durante a pandemia. Foram cinco ações contra esta medida. Em 7 de maio, o plenário suspendeu a MP na íntegra, determinando que as empresas de telefonia, fixa e móvel, não deveriam mais enviar dados pessoais dos clientes ao IBGE. Os ministros entenderam que a MP não fornece mecanismo técnico ou administrativo para proteger os dados pessoais de acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida. Logo, a medida não é proporcional nem razoável.

Outra derrota do governo se deu na suspensão de dispositivos da MP 928/2020, que restringiam as respostas às requisições feitas com base na Lei de Acesso à Informação. No dia 26 de março, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu o trecho da MP que tratava do assunto. Em 30 de abril, a decisão foi confirmada pelo plenário do STF.

Vitória do governo

Por outro lado, o governo obteve vitória nas ações que questionavam a MP 936/2020, relacionada a questões trabalhistas. Nesta MP, o ponto mais questionado foi a possibilidade de reduzir jornada e salário, bem como suspender temporariamente contratos de trabalho, por meio de acordos individuais, sem a necessidade da participação de sindicatos. Foram quatro ações movidas contra esta MP. Inicialmente, em uma destas ações, o ministro Ricardo Lewandowski havia deferido liminar para determinar que os acordos fossem comunicados aos sindicatos, que deveriam validar ou não as reduções ou suspensões. Mas dias depois o governo saiu vitorioso, já que o plenário do STF, por maioria, revogou a liminar e manteve a MP na íntegra.

A União também saiu vitoriosa na ADPF 671, na qual o PSOL pedia que o governo fosse obrigado a requerer leitos de UTI privados para a utilização pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O ministro Ricardo Lewandowski, relator, não acolheu o pedido por entender que já existe previsão legal e constitucional para esse tipo de requisição pontual, quando há necessidade, portanto não há que se falar em um compartilhamento geral.

Já no dia 1 de junho, o ministro Gilmar Mendes negou liminar em uma ADI ajuizada pelo PSB, que contestava dispositivos da MP 946 que autorizam o saque do FGTS a partir de 15 de junho e a limitação a R$ 1.045. O partido argumentou que o reconhecimento formal do estado de calamidade é suficiente para permitir o saque dos valores de forma imediata, além de requerer aumento do limite de saque para até R$ 6.220.

Omissões, transparência de dados e campanha

O Planalto não foi objeto de judicialização durante a pandemia apenas por causa de suas medidas provisórias. No dia 6 de junho, o Ministério da Saúde alterou a forma de divulgação diária dos números de casos confirmados e mortes em decorrência da Covid-19, que até aquele momento eram divulgados até às 19h todos os dias, com a inclusão de novos casos e mortes registrados nas últimas 24 horas e o total acumulado. No dia seguinte, o site do Ministério da Saúde chegou a ficar fora do ar por várias horas.

Rapidamente, a Rede Sustentabilidade, PSOL, PCdoB, PDT e OAB ajuizaram três ações no STF para garantir a transparência dos dados. No dia 8 de junho, o ministro Alexandre de Moraes concedeu liminar para determinar que a divulgação voltasse a ocorrer como antes.

O governo de Bolsonaro também foi alvo de ação no STF após a Secretaria de Comunicação divulgar, no dia 25 de março, uma campanha intitulada “O Brasil Não Pode Parar”, que sugeria o fim do isolamento social e que a população voltasse às atividades plenas. No dia 31 de março, o ministro Luís Roberto Barroso determinou que o governo se abstivesse de divulgar esta ou qualquer outra campanha no mesmo sentido. A decisão foi proferida no âmbito das arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) 668 e 669, ajuizadas pela Rede e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos.

Em outra derrota mais recente para o governo, o ministro Luís Roberto Barroso determinou que a União adote medidas urgentes para conter a contaminação por Covid-19 em comunidades indígenas, em especial as isoladas. O ministro determinou a criação de um comitê de crise com a participação de representantes de entidades indígenas, da área da saúde e do Ministério Público, e que o governo aja para retirar invasores e garimpeiros de terras indígenas. Barroso acolheu pedido da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que alegou que o presidente vem sendo omisso em proteger essas comunidades.

Medidas do Congresso também foram questionadas

As leis aprovadas pelo Congresso Nacional também foram objeto de ações no Supremo, mas em menor número. Um fator relevante para isso é que as medidas mais urgentes podem ser decretadas pelo Executivo por meio de MPs, enquanto no Legislativo, uma lei precisa passar por processos de debates e votação mais demorados. Assim, as medidas do Congresso foram tomadas com menor velocidade e em menor quantidade.

Desde o início da pandemia, foram ajuizadas apenas 11 ações contra medidas do Congresso Nacional relacionadas à pandemia — e, até o momento, nenhuma medida foi revertida pelo STF. A maioria das ações se volta contra a Lei Complementar 173/2020, que transferiu recursos para os estados e municípios para o combate à pandemia. O trecho mais questionado é a proibição de reajuste a funcionários públicos por 18 meses como contrapartida para receber os repasses do governo. Há uma ação ainda contra a PEC do orçamento de guerra, convertida na Emenda Constitucional 106.

Apenas uma das ações contra a LC 173, que questionava a limitação para realização de concursos públicos, teve decisão. O ministro Alexandre de Moraes extinguiu a ADI 6444 sem resolução de mérito, por entender que a Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis (Cobrapol), autora da ação, não tem legitimidade para questionar lei que prevê organização financeira entre os estados.

Assim, não chegou a analisar o mérito da demanda. Nenhuma das outras ações teve apreciação de liminar até o momento. Duas outras ações contra o Congresso pediam a suspensão da contagem do prazo para vigência de medidas provisórias. Uma das ações, a ADPF 661, foi ajuizada pelo PP, enquanto a outra, a ADPF 663, foi ajuizada pelo próprio governo. O pedido da União foi negado tanto monocraticamente, pelo relator Alexandre de Moraes, quanto posteriormente pelo plenário do STF.

Ao fim, nestas duas ações o STF decidiu atender à sugestão do Congresso Nacional para flexibilizar o processo de votação de medidas provisórias, autorizando temporariamente que os pareceres sobre as MPs sejam emitidos por um relator diretamente no plenário do Senado e da Câmara para ser votada, sem antes ter que passar pela Comissão Mista, como manda o artigo 62 da Constituição.