Responsabilidade objetiva

Possibilidade de classificar Covid-19 como doença ocupacional preocupa empresas

Decisão do STF afastou trecho de MP 927 que definia que casos da infecção não seriam considerados ocupacionais

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Sessão plenária do STF realizada por videoconferência. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF
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O impacto da pandemia do coronavírus nas relações de trabalho pode se dar, também, em relação a eventuais pedidos de indenização após o adoecimento de trabalhadores e a responsabilização de empresas pelo contágio durante o trabalho. Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a eficácia de um dispositivo que impedia que a Covid-19 fosse considerada doença ocupacional. Se, por um lado, tem quem entenda que a decisão protege trabalhadores, por outro, há quem se preocupe com uma sobrecarga de responsabilidade sobre as empresas.

Por maioria, o Supremo entendeu, no dia 29 de abril, que é possível caracterizar a Covid-19 como doença profissional. Além disso, ficou definido que os auditores fiscais do trabalho devem ter mantidas as funções sancionatórias mesmo durante a pandemia. Desta forma, por sete votos a três, a Corte afastou a eficácia dos artigos 29 e 31 da Medida Provisória 927/2020.

A medida provisória, editada em 22 de março pelo presidente Jair Bolsonaro, prevê a flexibilização de regras trabalhistas durante a pandemia da covid-19, como a antecipação de férias e feriados e maior prazo para compensação de banco de horas. O plenário julgou os pedidos de liminar em sete ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) que questionavam a MP de Bolsonaro.

Definida como doença ocupacional, o trabalhador acometido passa a ter assegurado o auxílio doença acidentário, beneficiando-se do recebimento do valor do benefício, do recolhimento do FGTS e da estabilidade provisória no emprego após a alta médica e retorno ao posto de trabalho. Além disso, é possível uma eventual indenização em caso de morte ou dano permanente.

Repercussões para as empresas

Sócio do Bichara Advogados, Jorge Gonzaga Matsumoto entende que, com a decisão, caberá ao empregado apresentar prova de que foi contaminado no ambiente de trabalho. Um dos problemas, para ele, é o home office, já que a empresa não tem ingerência nas casas dos empregados.

“A empresa não consegue se precaver de que o empregado está tomando todas as medidas recomendadas. Como o empresário é responsável se ele sequer sabe se o funcionário está saindo de casa ou não? Como a empresa pode ser responsável por uma doença sendo que ela não tem autorização para entrar no lar do empregado? Não temos um lockdown, ela não sabe onde a pessoa está. Por isso, a MP dizia que [a companhia] não era responsável, o que caiu por terra”, diz.

Matsumoto aponta para uma “insegurança jurídica enorme” para as empresas após a decisão do STF. Isso porque, segundo ele, impõe-se agora à empresa ser a última responsável pela patologia. “Novamente, é o Estado querendo um parceiro para custear essa contingência que é a covid-19. Impõe a responsabilidade ao mesmo tempo que não aponta as alternativas que ela tem pra se desvencilhar dessa responsabilidade”.

Da mesma forma entende Raissa Bressanim Tokunaga, coordenadora de Direito do Trabalho do Insper e sócia do Riva Bressanim Advogados. Ela explica que já havia um debate e uma preocupação sobre a possibilidade de a Covid-19 ser caracterizada como doença do trabalho. Para ela, o Supremo quis proteger os trabalhadores, especialmente os da linha de frente, como médicos e enfermeiros. Mas estes, ainda de acordo com ela, já estavam protegidos, porque são os que conseguem provar o nexo de modo mais claro.

“Voltou mais um problema para a empresa. Esse artigo dava um amparo para a empresa de que as pessoas que estavam trabalhando para ela em home office não seriam consideradas nos termos de doença de trabalho. Eu posso ir e vir, posso ficar doente em qualquer lugar. Agora, se a pessoa fica doente e está em home office, e se alguém tiver de pagar a conta é a empresa“, diz.

O maior prejuízo decorre, para Raissa Bressanim, da estabilidade por no mínimo 12 meses a que o trabalhador tem direito nesses casos. Algumas convenções coletivas estendem mais o prazo, que é contado a partir da alta do trabalhador. “Podemos ter uma leva de trabalhadores estáveis por um ano em um cenário em que não sabemos como estarão os negócios em seis meses. A empresa vai ter de carregar essa conta.”

A procuradora regional do Ministério Público do Trabalho Ileana Neiva Mousinho, vice-coordenadora nacional da Conap (Coordenadoria Nacional de Combate às Irregularidades Trabalhistas na Administração Pública) e coordenadora da Codemat (Coordenadoria Nacional de Defesa do Meio Ambiente de Trabalho) no Rio Grande do Norte, afirma que, na prática, já havia previsão, na Lei 8.213/91, de que as doenças endêmicas não constituíam doença de natureza ocupacional, salvo se houver nexo causal.

“Só que no caso de vírus o nexo causal ocorre com a mera exposição ou contato direito com o agente biológico. Numa pandemia, como o vírus pode estar em toda parte, o nexo causal é de fácil demonstração. No Brasil, como no mundo, existe uma lista de doenças relacionadas ao trabalho. A lista do Ministério da Saúde contém 15 Doenças Infecciosas e parasitárias relacionadas ao trabalho (DIPs), de modo que não é novidade que uma doença causada por vírus seja considerada doença do trabalho”, explica a procuradora do trabalho.

O ônus da prova do nexo causal também é objeto de debate. A procuradora afirma que, quando se trata de meio ambiente de trabalho, o ônus da prova é do empregador, que deve provar que não expôs o empregado. Segundo ela, a previsão consta do artigo 373 do Código de Processo Civil unido ao artigo 818 da CLT.

O advogado Gustavo Ramos, sócio do Mauro Menezes, representou o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) no caso analisado pelo STF, tendo feito a sustentação oral no julgamento. “Ocorre que a MP pretendeu excluir a natureza ocupacional das contaminações por Sars-Cov-2 ocorridas no ambiente de trabalho de modo apriorístico e abstrato, o que é incompatível com o texto constitucional vigente, que assegura aos trabalhadores a redução dos riscos inerentes ao trabalho e o direito à saúde, à vida e ao meio ambiente equilibrado, aí incluído o meio ambiente laboral”, diz.

Ele aponta que, além disso, há forte embasamento jurídico no sentido de que há responsabilidade objetiva do empregador, isto é, independentemente da comprovação de culpa, em caso de adoecimento por covid-19 dos profissionais de saúde  e em outras atividades essenciais, como transportes, inclusive por meio de aplicativos, supermercados e segurança.

“Isso porque o risco da atividade desempenhada por tais trabalhadores é inerente ao fato de ser necessário, em suas funções ordinárias, o trato frequente com pessoas contaminadas com o novo coronavírus, diante do surto de adoecimentos em escala mundial”, ressalta Gustavo Ramos.

O STF decidiu a esse respeito em um outro caso recente, quando reafirmou a responsabilização objetiva dos empregadores nas hipóteses em que as atividades normalmente desempenhadas por eles envolvem riscos especiais aos trabalhadores.

O advogado Leonardo Amarante, especialista em responsabilidade civil, segue a mesma linha de que o STF seguiu jurisprudência firmada anteriormente. “Não havia possibilidade do STF não agir dessa forma. A Corte reafirmou a responsabilidade objetiva das empresas que prestam serviços que envolvam atividades de risco. Nesses casos, é óbvio que são doenças ocupacionais. O que uma lei não pode fazer é afastar, a priori, a possibilidade de uma doença ser ocupacional”, diz.

No caso de pessoas que tiverem de ser afastadas, internadas ou mesmo os casos de óbito, há o direito à indenização. “Isso vai gerar uma discussão muito importante, um passivo muito grande para os empregadores em função da pandemia e vamos ter de ver como o Judiciário vai ser comportar, mas, do aspecto jurídico, é uma questão até simples no meu entendimento”, aponta Amarante.

Mais rigor

Alcança consenso a ideia de que, com a decisão, as empresas adotarão medidas sanitárias mais firmes de combate à disseminação do vírus para evitar a responsabilização. “O efeito mais nocivo do artigo 29 da MP 927 era deixar a empresa em uma posição de não precisar adotar medidas sanitárias mais restritivas, não investir tanto em segurança, pois, afinal, não haveria responsabilização civil, por danos materiais e morais. Por isso a decisão do STF foi tão acertada do ponto de vista jurídico, social e sanitário”, avalia Ileana Neiva Mousinho.

A Lei do SUS (8.808/1990) prevê que os serviços de saúde do trabalhador do SUS, da Vigilância Sanitária e da Vigilância Epidemiológica devem participar na normatização, fiscalização e controle dos serviços de saúde do trabalhador nas instituições e empresas públicas e privadas. Isso significa que as empresas devem comunicar à Vigilância Sanitária os casos de afastamento por suspeita ou confirmação de diagnóstico de covid-19  e se submeter às medidas sanitárias impostas pelos decretos de contenção do coronavírus.

“Importante que a empresa identifique o caso número um de contaminação na empresa, afaste o trabalhador para quarentena e os seus contatos próximos, e notifique imediatamente a Vigilância Sanitária. Não é momento para pensar que a empresa vai ficar com menos empregados, pois se não adota medidas de isolamento do empregado infectado e seus contatos na empresa, o risco que a empresa corre é de haver grande número de casos e haver interdição do estabelecimento todo”, continua a procuradora do MPT.

O total de inquéritos civis instaurados pelo MPT para apurar violações trabalhistas relativas à Covid-19 chegou a 2,4 mil nesta segunda-feira (4/5). O número é quase 147% maior do que o divulgado no levantamento publicado há um mês, em 3 abril, quando havia 972 inquéritos civis abertos. As denúncias também cresceram neste período, e já somam 11.860, enquanto eram 5806 naquela data.