Eliardo França Teles Filho

Uma ideia que tem sido discutida em círculos políticos e jurídicos influentes pretende dar uma solução “democrática” para a crise política que ora afeta o país. Trata-se da convocação antecipada de eleições para a Presidência da República. Os instrumentos para realizá-la seriam a apresentação de uma proposta de emenda à Constituição ou a realização de um plebiscito por meio do qual “o povo” manifestaria seu desejo de escolher de novo os seus representantes. Contudo, a concretização dessa ideia implicaria interromper mandatos eletivos e alterar ou ignorar os dispositivos constitucionais que estabelecem a ordem sucessória em caso de vacância do cargo e o caso em que deverão ser convocadas eleições diretas (art. 79 a 81, da Constituição Federal), o que poderia chegar a violar cláusulas pétreas. Apenas a justificativa de que a medida prestigiaria o princípio da soberania popular, consagrado no parágrafo único do art. 1º, seria capaz de salvá-la da mais completa inconstitucionalidade.
Ora, precisamente, o que pretendemos defender nesta coluna é que o princípio da soberania popular positivado no art. 1º da Constituição não oferece nenhuma saída para a inconstitucionalidade congênita que seria a interrupção dos mandatos em curso e a inobservância da linha sucessória constitucional.
É consenso que a concepção positiva da soberania popular no Brasil foi consagrada pelo parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal.
Aquele texto, inspirado na bela fórmula de Sobral Pinto, que não contém o termo soberania, afirma que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Porém, o texto, por si só, não soluciona o problema de saber ele serve de justificação para a inconstitucionalidade da convocação de novas eleições por emenda à Constituição ou por plebiscito. Para isso, é necessário interrogar-se sobre o alcance do poder a que se refere o texto. De que poder, exatamente, está tratando o art. 1º da Constituição Federal? Trata-se do poder constituinte, isto é, de fazer a própria constituição, e, portanto, revogá-la, ou dos poderes constituídos?
A resposta dessa questão está na palavra “povo”.
A noção de povo não é única. Basta lembrar duas acepções do conceito apontadas por Carl Schmitt: “o povo como potência não formada, não fixada por leis constitucionais” e “o povo como potência formada e organizada pelas leis constitucionais”. Portanto, quando falamos em soberania do povo, podemos nos referir ou ao poder material em estado bruto ou ao exercício de poderes constituídos em nome do povo ou pelo povo. E essa distinção pode ser usada para se interpretar o princípio da soberania popular existente no direito brasileiro.
No Brasil, por sermos uma democracia, o titular do poder constituinte é o povo. É o povo que, acima e antes da Constituição, detém o poder de fixar a sua própria Lei Política. Quando o faz, o faz sem forma prefixada, sem vínculo jurídico algum. Já o povo, na e sob a constituição, exerce o seu poder segundo os limites jurídicos fixados no texto constitucional. É por isso que Carl Schmitt defende que o povo na constituição é, na verdade, um procedimento de eleição ou de votação, e daí decorre que “o povo significa, então, a maioria simples ou qualificada dos eleitores participantes”.
A Constituição de 1988, ao consagrar o princípio da soberania popular, tomou a expressão povo no sentido de “povo na constituição”. Tanto assim, que consignou que o povo, quando exercer o poder, o fará “nos termos desta Constituição”. Trata-se, portanto, da consagração da soberania do povo dentro e sob a constituição, e não acima dela. Dessa forma, descontado o tom de crítica negativa, o sentido da expressão povo a que se refere o texto se assemelha ao “procedimento”, de Carl Schmitt.
Um elemento importante nessa definição é a conformação do “corpo eleitoral”. No direito constitucional francês, por exemplo, o corpo eleitoral é considerado como um órgão do Estado e, portanto, uma forma de exercer um poder constituído. Na Constituição do Brasil, o corpo eleitoral é definido no art. 14, onde também constam os procedimentos por meio dos quais se exerce a soberania popular: o voto, o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Fica claro, portanto, que “o povo” a que se refere o parágrafo único do art. 1º não é essa entidade mística que possui, por direito próprio, o poder de decidir sobre seu próprio destino de forma suprema. Ou, para ficar nos termos da ciência constitucional, o povo do art. 1º da Constituição do Brasil não é o povo como “grupo de seres humanos consciente de si enquanto força política e que, agindo como tal, irrompe na história”. Trata-se do povo como corpo eleitoral.
Essa conclusão mostra que o princípio da soberania popular consagrado no art. 1º da Constituição Federal trata do poder do povo como um poder constituído, e não constituinte. Essa afirmação é perfeitamente cabível se considerarmos que a palavra soberania possui, reconhecidamente, mais de um sentido jurídico-constitucional. Para ficarmos apenas na mais célebre das classificações, a de Carré de Malberg, o termo soberania pode ser usado de três formas. Primeiro, a soberania é um qualificativo que se aplica ao poder do Estado, atribuindo-lhe a ideia de absoluta independência de vínculos jurídicos. No segundo sentido, ela é utilizada para designar os poderes de fato do Estado, como o poder de praticar determinados atos, o poder de julgar, o poder de editar leis, etc. Finalmente, ela se aplica a órgãos, designando aquele que, dentre todos, seria o dominante. Assim, a soberania popular de que trata o art. 1º corresponderia ao poder do Estado, e não ao poder constituinte.
Reforça a afirmação, o fato de a Constituição não ter previsto participação do povo, no sentido de povo na constituição, no processo constituinte derivado. O art. 60 não contempla sequer a possibilidade de iniciativa popular de proposta de emenda à constituição. Seria uma contradição flagrante se o parágrafo único do art. 1º tivesse querido se referir ao povo como poder supraconstitucional sem que o procedimento de alteração da Constituição estabelecesse alguma forma de participação do povo.
Assim, entendemos que o previsto no art. 1º da Constituição não oferece nenhum ponto de apoio supraconstitucional capaz de validar um procedimento que viola frontalmente regras constitucionais expressas, algumas das quais podem ser consideradas cláusulas pétreas. A convocação de novas eleições não poderia, portanto, ser justificada nem pelo consentimento do povo em plebiscito nem por ser uma solução em nome do povo, por meio de proposta de emenda. Qualquer tentativa de utilizar os procedimentos constitucionais para criar uma solução extra-constitucional dependeria do ressurgimento do povo na cena política como força bruta, como detentor do poder constituinte originário, supremo e sem nenhum vínculo jurídico. Em outras palavras: uma ruptura constitucional.

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JOTA

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