A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, que discute a descriminalização do aborto, foi pautada pela ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), para a sessão do plenário virtual que terá início à 0h01 desta sexta-feira (22/9).
A ministra Rosa Weber pautou o caso porque faz questão de votar nele antes de deixar a Corte no dia 2 de outubro, quando completa 75 anos. Para Felipe Recondo, diretor de conteúdo do JOTA, iniciado o julgamento, não há nenhum indicativo de que ele irá terminar em breve. Isto porque algum dos ministros deve destacar o julgamento para que ele seja realizado no plenário físico, avalia Recondo.
Entenda o julgamento do STF que pode descriminalizar o aborto antes da 12ª semana
O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) acionou o STF em março de 2017 para que a Corte se manifestasse sobre a descriminalização do abroto. A agremiação afirma que os artigos 124 e 126 do Código de Processo Penal (CPP), que tratam do crime de aborto, violam direitos fundamentais das mulheres e pede que o STF declare a não recepção parcial dos artigos pela Constituição para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas.
Para o PSOL, a criminalização do aborto fere os seguintes princípios: dignidade da pessoa humana, da cidadania e da promoção do bem de todas as pessoas, sem qualquer forma de discriminação. O partido argumenta que a criminalização do aborto e a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade da pessoa humana e a cidadania das mulheres, pois não lhes reconhece a capacidade ética e política de tomar decisões reprodutivas relevantes para a realização de seu projeto de vida.
Além disso, o partido afirma que a criminalização afeta desproporcionalmente mulheres negras e indígenas, pobres, de baixa escolaridade e que vivem distante de centros urbanos, onde os métodos para a realização de um aborto são mais inseguros do que aqueles utilizados por mulheres com maior acesso à informação e poder econômico, resultando em uma grave afronta ao princípio da não discriminação.
A maioria das manifestações de entidades que pediram para ser amicus curiae no processo são favoráveis à descriminalização do aborto. “Isso aponta para o fato de que há um amplo apoio da sociedade civil, que está atenta aos efeitos da criminalização do aborto na realidade de mulheres, meninas e pessoas que gestam hoje em dia”, afirma Letícia Ueda Vella, advogada do Coletivo Feminista e Sexualidade, que fez um dos pedidos.
Audiências públicas sobre a descriminalização do aborto
Em 3 e 6 de agosto de 2018, foram realizadas audiências públicas sobre a ADPF 442. Nelas, se destacaram três discussões: competência ou não do STF para julgar a descriminalização do aborto, compatibilidade da descriminalização do aborto com o Pacto de San José e a credibilidade dos dados sobre número de abortos no Brasil.
Grupos contrários à descriminalização do aborto sustentaram que a competência para analisar o assunto seria do Poder Legislativo e não do STF. Em 2018, durante as audiências, o senador Magno Malta (PR-ES) disse que o Congresso Nacional “não está omisso” para que a Corte decida sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.
Juliana Cesario Alvim, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e da Central European University, entende que uma das funções mais importantes da Corte é poder proteger os direitos de minorias políticas. “Ela [Corte] serve justamente para impedir que o direito da maioria atropele o direito de uma minoria. E é justamente esse o caso que está colocado. É uma minoria política, um direito fundamental, que envolve o direito à dignidade, à vida, saúde”, afirma.
Alvim também ressalta que Cortes em outros países, como Colômbia e México, se ‘debruçaram’ sobre a questão do aborto. “Para quem diz que o Supremo não tem competência para julgar isso, a minha pergunta seria: então o Supremo tem competência para julgar o quê?”, questiona.
As associações e grupos contrários à descriminalização do aborto também alegaram que a proteção do direito à vida é prevista no artigo 4º do Pacto de San José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário. O artigo prevê que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”.
Lethicia Reis, advogada do coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular, que também requereu ingresso como amicus curiae, explica que a Corte Interamericana de Direitos Humanos já discutiu o assunto em 2012 e entendeu que a perspectiva de defesa da vida desde o momento da concepção se refere principalmente aos direitos da gestante. Reis se baseia na interpretação do Direito de que uma norma genérica é menos vinculativa do que uma norma geral.
“Conforme a interpretação internacional, a interpretação de outros tratados de direitos humanos, dos direitos das mulheres e da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que se entende é que a vida que se pretendia garantir naquele artigo é sobretudo a vida da gestante. Essa generalização de que a vida é observada a partir da concepção não pode ser superior às normas específicas que tratam dos direitos das mulheres, do direito à saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos delas e das outras pessoas que podem abortar”, afirma.
Nas audiências, após a apresentação sobre o número de abortos no Brasil, os dados do Ministério da Saúde foram rechaçados. Algumas entidades contrárias ao aborto afirmaram que o número não estaria correto e representantes de outras associações afirmaram, sem citar a fonte, que metade dos embriões abortados são do gênero feminino e que a descriminalização do aborto mataria mulheres indefesas.
Segunda a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, uma em cada sete mulheres com idade próxima de 40 anos já realizou pelo menos um aborto. A pesquisa também mostra que 43% delas tiveram que ser hospitalizadas para finalizar o aborto.
Para Vella, a pandemia escancarou a estratégia de questionar dados científicos. “É uma tentativa de retirar a credibilidade de dados cientificamente produzidos”, afirma e continua: “A gente pode até tentar, em alguma medida, mudar isso a partir do discurso, mas a realidade de dados de saúde pública é que o aborto é um procedimento comum na vida de mulheres brasileiras”.
O que esperar do voto da ministra Rosa Weber no julgamento
Para Alvim, a expectativa é de que o voto da ministra Rosa Weber seja favorável ao pedido do PSOL, pela inconstitucionalidade da criminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Isso porque, ao analisar casos concretos em relação ao aborto, como no HC 124.306, a ministra Rosa Weber acompanhou o voto do ministro Luís Roberto Barroso para conceder o habeas corpus a profissionais de saúde acusados de participarem de procedimentos de aborto.
No voto, a ministra afirmou que “o espaço da moral privada não pode ser confundido com a esfera da responsabilidade pública, e principalmente com o espaço de atuação do Estado de Direito, na restrição dos direitos individuais da pessoa”.
“Justifica o Estado criminalizar a decisão da mulher por abortamento no primeiro trimestre da gestação? Pode ser negado este direito de escolha da mulher? Existem razões suficientes na ordem constitucional que legitimam esta decisão política majoritária em detrimento de direitos individuais? Quais os princípios constitucionais que estão em colisão?”, questionou a ministra na ocasião.
Para Felipe Recondo, diretor de conteúdo do JOTA, mesmo que o voto da ministra seja apresentado e o julgamento iniciado, a expectativa é de um pedido de destaque. O ministro Luís Roberto Barroso, próximo presidente da Corte, por exemplo, pode querer definir um momento mais oportuno para que o processo volte à pauta.
O julgamento, avalia Recondo, pode ser influenciado pelas discussões sobre o tema na sociedade, já que nem todos os ministros têm voto definido sobre este assunto. “Os debates em torno desse assunto podem ganhar outras feições na sociedade, na opinião pública, na academia, também no Parlamento e no governo. Tudo isso, de alguma forma, pode interferir na opinião dos ministros do STF”, ressalta Recondo.