Eneida Desiree Salgado

A democracia brasileira está por um fio. Nosso regime político nunca foi lá muito estável, é verdade, mas ultimamente o cenário tem piorado bastante. Depois de anos de cassação de mandatos pela Justiça Eleitoral (às vezes com base apenas em prova testemunhal) e de um recente festival de mandados de prisão preventiva sem fundamento legal, chegou-se ao ponto de destituição da Presidenta eleita democraticamente sem crime de responsabilidade, sem devido processo, sem base constitucional. A Constituição tornou-se irrelevante e o Estado de Direito vem sendo desmontado diariamente, sem muito alarde, com certo apoio dos meios de comunicação e até um quê de simpatia de parcela da classe de juristas. O Estado Social e as promessas de igualdade e de dignidade estão sendo atacados de maneira direta, por meio de uma proposta de emenda à Constituição que acaba com os investimentos sociais e, potencialmente, com a saúde e a educação, mas deixa incólumes os que lucram com a ciranda financeira, em uma inversão de valores constitucionais e uma traição à escolha popular nas eleições de 2014.
A demonização da política chega a tal extremo que há proposta para acabar com a prerrogativa de função, para todas as autoridades. A ideia é que em face de um processo penal por crime comum, qualquer juiz de direito possa processar e condenar um agente político. Inclusive o chefe do Poder Executivo (apesar de permanecer a exigência de autorização da Câmara de Deputados). Inexplicável essa aposta no Poder Judiciário como protagonista em um Estado que se afirma democrático, ainda mais em momentos em que a histeria justicialista veste toga e vira capa de revista. A PEC 10/2013 é um grave sintoma da baixa racionalidade das discussões políticas e jurídicas e não passa por qualquer exame de história. Mas ninguém parece se preocupar muito com isso.
No campo eleitoral os sinais se avolumam. Para evidenciar o espaço da mulher na política (já anunciado pelo discurso misógino e machista que acompanhou a destituição inconstitucional da Presidenta), foi aprovada em comissão especial na Câmara de Deputados a proposta de emenda que assegura um percentual mínimo de vagas a cada gênero. A PEC 134/2015 (que iniciou como PEC 98/2015 no Senado) é um acinte teórico, político e jurídico. Reserva vagas nas eleições proporcionais no montante de 10% na primeira legislatura, 12% na segunda e 16% na terceira. Isso, uma ação afirmativa crescente; e que parte de um percentual menor do que o existente na atualidade. Ou seja, tudo o que uma política pública de discriminação positiva não deve ser. Trata-se, na verdade, de uma migalha. Um aceno para que o movimento de luta pela emancipação da mulher – que não deveria fazer sentido em pleno século XXI, mas que precisa fazer frente à cotidiana violência contra a mulher – saiba até onde o establishment está disposto a ceder: nada, ou quase nada.
A elite política também está cansada de pluralismo. Decidiu-se que não se deve mais ter tanto partido político. Encontrou-se um culpado pela crise institucional e não é o desrespeito pela Constituição e pelas instituições – o responsável é o multipartidarismo. Considera-se que é insustentável para uma democracia estável a existência de mais de três dezenas de partidos políticos e quase isso com representação na Câmara. Chegou a hora de ressuscitar a cláusula de barreira, declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em outros tempos, antes da invenção da perda de mandato por infidelidade partidária (que trouxe como efeito colateral a multiplicação dos partidos políticos). Ela diminui a competição eleitoral, restringe o espaço das minorias, ofende o pluralismo político (fundamento do Estado brasileiro); mas deve promover a governabilidade, um supravalor para os juristas políticos de plantão. A PEC 36/2016, na toada do desmanche do constitucionalismo emancipador, estabelece um piso de votos válidos para que os partidos políticos possam ter funcionamento parlamentar: menos de 2% dos votos válidos apurados, com pelo menos 2% em pelo menos 14 unidades federativas (metade, portanto) logo de cara, depois sobe para 3% do total de votos válidos. Dizem que cláusula de desempenho existe em vários países, mas não dizem que é característica dos Estados federais a existência de partidos locais e que é por isso que nacionalmente as federações apresentam poucos partidos. Não é o caso brasileiro, que desde 1945 exige que os partidos sejam nacionais. Assim, pensando bem, não são tantos os partidos.
A PEC quer cortar o acesso ao fundo partidário e ao direito de antena para os partidos com poucos votos. Quem não tiver o desempenho previsto, não pode fazer propaganda partidária e não terá recursos públicos para seus gastos ordinários e para as campanhas eleitorais. Como não se sabe como será daqui pra frente o financiamento da política, a única possibilidade previsível de uma nova força política é um partido de fidalgos, que possam pagar com seus próprios recursos as despesas partidárias e eleitorais e conseguir visibilidade por seu próprio capital social. Isso não significa, no entanto, que as dotações orçamentárias do fundo partidário serão reduzidas: o montante será o mesmo, porém dividido entre menos agremiações – mais dinheiro para quem já tem mais espaço. As minorias políticas não terão lugar na arena política e nas instituições, em uma grande perda para uma ideia de democracia deliberativa. Menos vozes, menos pluralidade de ideias, mais reforço para quem está mandando no país desde a independência: uma democracia menos democrática. E, sem constrangimento, afastando qualquer intenção de garantir democracia no funcionamento interno dos partidos: se lhes garante autonomia para definir regras sobre escolha e formação de órgãos definitivos e provisórios.
Se a ameaça é clara à democracia, a PEC não deixa por menos o constitucionalismo. A proposta tira expressamente dos partidos sem o desempenho mínimo a possibilidade de provocar o controle abstrato de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, restringindo o modelo instituído em 1988. O papel do controle de constitucionalidade na defesa dos direitos das minorias contra as decisões das maiorias eventuais fica francamente diminuído e as forças políticas minoritárias, como entre 1965 e 1988, ficarão na dependência do juízo de conveniência do Procurador-Geral da República (quem não conhece a história do decreto de censura prévia e a reclamação do MDB?). Enfraquecem-se os direitos de oposição, a possibilidade de institucionalização da divergência, os canais de alternância política. Uma PEC francamente inconstitucional, que não passa sequer nos testes do controle judicial fraco de constitucionalidade. Mas quem irá se levantar contra ela? 
Não há, em tempos de pós-verdade, quem consiga argumentar com fatos ou princípios constitucionais. Só nos resta, em pleno Estado laico, rezar pela sã consciência dos representantes políticos. Oremos.

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JOTA

Só nos resta, em pleno Estado laico, rezar pela sã consciência dos representantes políticos


Entre tantas PECs, a PEC dos partidos e o fim do pluralismo

Só nos resta, em pleno Estado laico, rezar pela sã consciência dos representantes políticos