Depois de 8 anos

Entenda o julgamento da descriminalização do porte de drogas no STF

Ministros podem retomar nesta quarta (24/5) o julgamento interrompido em 2015 depois de três votos pela descriminalização

porte de drogas STF
Fachada do STF / Crédito: Nelson Jr./SCO/STF

A poucos meses da aposentadoria, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, pautou um dos julgamentos mais aguardados do plenário da corte: a descriminalização do porte de drogas no Brasil a partir de um recurso extraordinário de repercussão geral (RE 635.659). A partir desta quarta-feira (24/5) os ministros podem retomar o julgamento interrompido por um pedido de vista de Teori Zavascki em setembro de 2015. Substituto de Zavascki, morto em janeiro de 2017, Alexandre de Moraes devolveu o pedido de vista ao plenário em novembro de 2018. Desde então, a Corte não avançou na discussão, que teve três votos distintos proferidos em plenário

Relator do processo no STF, o ministro Gilmar Mendes votou contra a criminalização do porte de drogas para uso e não fez diferenciação em relação a nenhum tipo em específico. Na prática, para ele o artigo 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional e, no lugar de responsabilidade de natureza penal, o flagrante de drogas para consumo próprio deve ser punido administrativamente. No entendimento do ministro, a norma “conferiu tratamento distinto aos diferentes graus de envolvimento na cadeia do tráfico (art. 33, §4º), mas não foi objetiva em relação à distinção entre usuário e traficante. “Na maioria dos casos, todos acabam classificados simplesmente como traficantes”, diz Mendes em seu voto.

Então recém-chegado na corte, o ministro Edson Fachin chegou a pedir vista, mas devolveu o processo no mês seguinte, em setembro de 2015. O posicionamento dele abriu uma divergência em relação ao relator: Fachin defendeu a descriminalização do porte apenas da maconha, excluindo a possibilidade de outras drogas. Para o ministro, “se o legislador já editou lei para tipificar como crime o tráfico de drogas, compete ao Poder Legislativo o exercício de suas atribuições, no qual defina, assim, os parâmetros objetivos de natureza e quantidade de droga que devem ser levados em conta para diferenciação, a priori, entre uso e tráfico de drogas”. 

O terceiro a votar foi o ministro Luís Roberto Barroso, que acompanhou Fachin contra a criminalização do porte de maconha para uso próprio e excluiu outras drogas dessa possibilidade. A diferença principal entre os entendimentos dos dois é que Barroso estabeleceu parâmetros: considerou a quantidade de 25 gramas como limite entre quem é usuário e quem é traficante, assim como é aplicado em Portugal. No voto, o ministro afirmou ter cogitado um limite de 40 gramas, mas reduziu a quantidade em busca de consenso na corte. 

Em relação ao cultivo de pequenas quantidades para consumo próprio, o limite proposto é de 6 plantas fêmeas. Para o ministro, “o indivíduo que fuma um cigarro de maconha na sua casa ou em outro ambiente privado não viola direitos de terceiros. Tampouco fere qualquer valor social. Nem mesmo a saúde pública, salvo em um sentido muito vago e remoto. Se este fosse um fundamento para proibição, o consumo de álcool deveria ser banido. E, por boas razões, não se cogita disso. Note-se bem: o Estado tem todo o direito de combater o uso, fazer campanhas contra, educar e advertir a população. Mas punir com o Direito Penal é uma forma de autoritarismo e paternalismo que impede o indivíduo de fazer suas escolhas existenciais. Para poupar a pessoa do risco, o Estado vive a vida dela. Não parece uma boa ideia”. Barroso deu sinais de que essa argumentação poderia valer não só para a maconha, mas na época afirmou ter dúvidas sinceras e profundas sobre uma decisão mais ampla.

O STF caminha para descriminalizar o porte de drogas?

Na avaliação da professora de Direito Constitucional e coordenadora do Núcleo Interamericano de Direitos Humanos (NIDH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Carolina Cyrilo, um cenário mais previsível deve se desenhar a partir do voto de Alexandre de Moraes. Na sabatina do Senado para ocupar o cargo de ministro do STF, em 2017, ele defendeu a necessidade de uma lei objetiva, que diferenciasse melhor o usuário do traficante. 

Para a professora, “o que precisa ser entendido é que se trata de um julgamento penal em repercussão geral, o que significa não incidência criminal. A tendência deve ser melhor vista depois do voto do Alexandre, mas imagino que estabelecerão padrões até que o legislador o faça. Caso contrário, a decisão vai sofrer uma falta de efetividade aplicativa”, afirma. Para a advogada, o ministro Gilmar Mendes tende a conduzir a Corte, mas proferiu um voto demasiadamente técnico para julgadores que entendem que precisam de aceitação popular. Neste sentido, o voto “politicamente aceitável” seria o do ministro Barroso.

De 2015 para cá, outros dois ministros de perfil mais conservador entraram na Corte: Nunes Marques e André Mendonça, ambos indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Em sabatina em 2020 no Senado, Nunes Marques afirmou que “por vezes, o garantista precisa ser ativista. Não é um progressista que está criando políticas públicas, mas também não se limita a declamar o texto frio da norma”. Já Mendonça também em resposta aos senadores, em 2021, disse “ter convicção de que as drogas fazem mal às pessoas e que devem haver políticas públicas para seu combate”. 

O criminalista e coordenador do curso de pós-graduação de Direito Penal do IDP São Paulo, Fernando Castelo Branco, avalia que a tendência natural dos dois novos ministros do STF será um voto contrário à descriminalização do porte de drogas até mesmo pela ligação que eles, historicamente, têm com correntes mais conservadoras. No entanto, na visão do professor, há uma tendência mundial de se ter um olhar para esta questão mais modulado pela saúde pública do que pela segurança pública e por repressão. Para ele, por mais que possa haver divergência, há uma compreensão da maioria da Corte quanto à descriminalização. “O voto do Gilmar Mendes é coerente com essa possibilidade de modernização e atualização. Já o Barroso está dizendo: faz todo sentido, mas vamos devagar. A gente tem de um lado da corte um conservadorismo e uma cautela e do outro uma visão corajosa do ministro Gilmar. Se for apostar, acho que existe uma tendência de uma decisão que contemporize. Não uma decisão extrema”.

O advogado criminalista e professor de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Davi Tangerino, aposta em um pedido de vista de um dos ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, mas pondera que pela regra atual do STF, esse debate não deve mais se arrastar por anos. “Se chegar ao final do julgamento eu entendo que haveria maioria, mas apostaria fortemente em um pedido de vista do Kassio Nunes Marques ou do André Mendonça. A ver se a regra dos 30 dias realmente vai ser implementada. Aparentemente, sim. Pode ter um pedido de vista porque com a base pegaria mal ou, e me parece que esse é o espírito da mudança regimental, os ministros vão parar de pedir essas vistas que terão curto ou baixo impacto porque são só 30 dias que seguram o debate. Superando os pedidos de vista e computados os votos, por uma maioria apertada, acredito que a descriminalização vai passar, sim”, prevê.