Ana Pompeu

A disputa entre agronegócio e defensores de comunidades indígenas se acirrou recentemente por meio de troca de petições ao Supremo Tribunal Federal (STF). Na última segunda-feira (30/3), as comunidades apresentaram uma petição em conjunto em que pedem a suspensão dos efeitos do parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) que passou a adotar o entendimento firmado no julgamento do caso Raposa Serra do Sol para todos os processos de posse de terras indígenas. 
Na sequência, Defensoria Pública da União (DPU) endossou o pedido e, na última quinta-feira (2/4), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) se manifestou contrariamente de forma incisiva e bastante crítica às outras partes do processo. O ministro Luiz Edson Fachin, relator do processo em que se dá a discussão, pediu, por fim, informações à União e à Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre o tema.  
<a href="https://conteudo.jota.info/jota-pro-crise?utm_source=info&amp;utm_medium=jota%20info&amp;utm_campaign=pro%20crise%20info"><img class="aligncenter wp-image-239686 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/03/whatsapp-image-2020-03-30-at-19-29-03.jpeg" alt="" width="400" height="400" /></a>
O caso é analisado no <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5109720" target="_blank" rel="noopener noreferrer">RE 1017365</a>, cuja repercussão geral foi reconhecida em fevereiro de 2019. O processo trata da definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena com base nas regras estabelecidas no artigo 231 da Constituição Federal. 
O pedido de tutela de urgência foi apresentado pela Comunidade Indígena Xokleng da Terra Indígena Ibirama Laklaño. O objetivo é que o STF determine que a Funai deixe de rever processos administrativos de demarcação de terras indígenas com base no parecer da AGU até que o <a href="http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=5109720&amp;numeroProcesso=1017365&amp;classeProcesso=RE&amp;numeroTema=1031" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Tema 1031</a> da repercussão geral seja julgado. 
O RE foi apresentado pela Funai contra acórdão do Tribunal Regional Federal (TRF-4) que confirmou sentença de primeira instância pela procedência de ação de reintegração de posse ajuizada pela Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente (Fatma). 
A hipótese refere-se a uma área declarada, administrativamente, como de ocupação tradicional dos índios Xokleng, localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás, em Santa Catarina.
A Funai afirma que o caso trata de direito imprescritível da comunidade indígena, cujas terras são inalienáveis e indisponíveis. Ressalta não ser cabível a compreensão de que os direitos indígenas ao usufruto das terras, “ou quaisquer outros que a Constituição lhes confira, decorram da demarcação administrativa da área, pois os títulos de domínio referentes às terras de ocupação dos índios são inoponíveis a eles”.
<h3>Revisão das demarcações</h3>
No final de março, as entidades se reuniram na petição a Fachin questionando o ato da AGU que vincula toda a administração pública federal, direta e indireta, ao que teria decidido o Supremo. O argumento que move a petição é que os parâmetros firmados para a Raposa Serra do Sol não podem ser usados de forma abstrata para toda situação de demarcação. O parecer da AGU é de 2017, mas teve a vigência restaurada em dezembro de 2019 — depois de passar por questionamentos internos, por parte da Procuradoria Federal Especializada, ligada à AGU.
Desde então, as comunidades afirmam que Funai e União têm promovido "indiscriminada revisão de processos administrativos de demarcação". Ao menos 17 processos foram devolvidos pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública à Funai para revisão e adequação ao parecer e são referentes a terras em diferentes estados, como Amazonas, Pará, Paraná, Maranhão, São Paulo, Bahia, Mato Grosso. Outros têm também retroagido de fase.
Além da preocupação apresentada da revisão baseada no parecer de forma inadequada, segundo apontam, há o risco de aumento de violência no campo contra indígenas em razão da expectativa de anulação de processos. 
"Ainda, é muito claro que são retirados dois trechos do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, para serem institucionalizados, os quais são extremamente prejudiciais aos indígenas e, a maior parte do julgado, que é favorável aos povos originários, foi ignorada", defendem. As entidades apontam que o parecer estipula a vedação à ampliação de terras indígenas já demarcadas, o que não estaria na ementa do julgamento.
O próprio reconhecimento de repercussão geral mostraria o ponto apresentado, segundo elas, já que falta a "definição de uma tese sobre o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas tradicionais indígenas". Além disso, o parecer não teria amparo na Constituição, por não haver na legislação qualquer das condicionantes que estabeleçam que os direitos originários dos índios à demarcação de suas terras deva obedecer o marco temporal de ocupação. 
"Ao vincular toda a Administração Pública Federal ao cumprimento do que ficou decidido no acórdão da Pet. nº 3.388, o Poder Executivo alterou os parâmetros para a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, que segundo o artigo 231, § 1º, da Constituição Federal são os seguintes: i) as por eles habitadas em caráter permanente; ii) as utilizadas para suas atividades produtivas; iii) as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e; iv) as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições", argumentam.
Comunidades indígenas e defensores afirmam ainda que o parecer da AGU criou um "atalho para burlar o complexo procedimento para a edição de emendas constitucionais e alterar, na calada da noite, anos de construção histórica e de conquista de direitos dos índios, minorias étnicas brasileiras que, com o <a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/parecer-gmf-05.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Parecer n.º 01/2017/GAB/CGU/AGU</a>, enfrentam uma verdadeira suspensão da ordem constitucional e assistem à paralisação de demarcações que, sem qualquer comprovação plausível ou estudo técnico, se sustentam na suposta ausência de presença física dos índios em 5 de outubro de 1988 em suas terras".
Elas apontam, também, que, quando a ação for julgada e uma tese for fixada, uma judicialização de processos que tiveram seguimento tendo por base o parecer poderá se dar. Isso porque  a tese fixada pelo plenário da Corte poderá definir critérios diferentes daqueles estipulados pela AGU. Assim, situações divergentes estarão postas, o que poderá gerar pedidos de readequação e, portanto, seria contraproducente não suspender os efeitos do ato agora.
<h3>CNA</h3>
Ainda na quinta-feira (2/4), a CNA levou ao relator petição em que reforça entendimento pela manutenção do parecer e, portanto, da jurisprudência da Corte para a demarcação de terras indígenas. 
"Qualquer movimentação do tribunal no sentido de desestabilizar uma decisão paradigmática já adotada e consolidada seria um desalento institucional incomensurável à imagem do STF e um ato deliberado de desserviço à autoridade de sua própria jurisprudência", apontou a entidade. 
De forma contundente, a entidade diz: "é fácil perceber que se o STF se prestar a aceitar esse tipo insolente de execução de estratégia política em seus processos, sua própria autoridade constitucional estará fragilizada, uma vez que submetida aos caprichos e desrespeitos de um grupo, agindo em conjunto para ludibriar, embaraçar e coagir seus membros", se referindo aos defensores das comunidades indígenas. 
Para a CNA, ainda, uma decisão em outro sentido representaria "certo e imediato aumento considerável de conflitos no campo, em ameaça evidente à integridade física de agricultores e indígenas". Além disso, aponta que não há qualquer mudança na questão, seja normativa, seja constitucional, seja econômica, seja social. 
"De fato, todo o processo com essa temática se transforma no STF em verdadeira plataforma política para se repisar todos os antigos argumentos já analisados e decididos e levantar novamente narrativas inverídicas", diz a CNA. 
A entidade afirma que as demarcações de terras indígenas não são encaradas como conflitos fundiários delicados nos quais se levantam bandeiras jurídicas legítimas, mas, sim, "como verdadeiras batalhas transcendentais entre o bem e o mal". E, por isso, isso provocaria prejuízos à paz no campo.
<h3>Indígenas vs Agronegócio</h3>
O RE 1.017.365 se tornou mais um processo identificado como campo de batalha entre defensores de comunidades indígenas e do agronegócio. Em menos de um ano, o caso recebeu várias petições que solicitaram o ingresso na condição de amicus curiae ou litisconsórcio. Foram ao menos 18, dentre elas, o Conselho Indigenista Missionários (CIMI), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Rede Sustentabilidade, o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Instituto Socioambiental (ISA), o Indigenistas Associados (INA), a Comunidade Indígena Xukuru do Ororubá. 
A CNA critica, na petição, inclusive os pedidos de ingresso no feito, os pedidos pela convocação de uma audiência pública e classifica como "uma ação política coordenada de entulhamento dos autos", por meio de petições repetitivas e que não acrescentam nada de novo, a não ser tentar rever a jurisprudência, numa tentativa de "vitória no grito". 
"Há uma lamentável tentativa de deformação na percepção do problema jurídico, já que todas essas entidades – subscritas em sua grande maioria pelos mesmos patronos – se apresentam como 'defensoras dos direitos humanos'. Há uma tentativa evidente de apropriação do termo, como se a defesa apresentada pelos produtores rurais e as preocupações trazidas pelo outro lado não estivessem firmemente ancoradas em direitos fundamentais, inclusive na defesa daqueles que são sumariamente expulsos de suas terras produtivas."
<h3>Histórico</h3>
Em 2009, o STF reconheceu a área de Raposa Serra do Sol, em Roraima, como reserva indígena, determinou a saída dos fazendeiros da região e estabeleceu uma série de condicionantes. Foram quatro sessões dedicadas ao julgamento. No acórdão proferido na PET 3.388, fixou as “salvaguardas institucionais às terras indígenas”, as quais constituem normas decorrentes da interpretação da Constituição e, portanto, segundo a AGU, devem ser seguidas em todos os processos de demarcação de terras indígenas.
A jurisprudência do STF se ancora em três pontos principais, segundo defende a CNA: a definição de terra indígena depende da verificação da ocupação de povos indígenas na data de promulgação da Constituição, isto é, em 5 de outubro de 1988; esse critério de viabilidade da demarcação somente pode ser afastado se demonstrado efetivo conflito possessório que, mesmo iniciado no passado, ainda persista até o marco demarcatório temporal atual, conflito que se materializa por circunstâncias de fato ou, pelo menos, por uma controvérsia possessória judicializada; o regime constitucional dos índios envolve 19 regras normativas, definidas pelo Tribunal no julgamento da PET 3.388, as “salvaguardas institucionais”.

desd (14)

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JOTA

Fachin é o relator de caso que trata da validade de parecer da AGU que vincula a administração

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