Thais Lima

No Supremo Tribunal Federal, o Recurso Extraordinário 855.810/RJ, da relatoria do ministro Dias Toffoli, aguarda há mais de um ano o pedido das partes, no caso Ministério Público e Defensoria Pública do Rio de Janeiro, bem como das defensorias públicas que peticionaram seu ingresso como amici curiae<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, para que seja incluída, no Plenário Virtual, a análise da repercussão geral do tema: admissibilidade do habeas corpus coletivo no ordenamento jurídico brasileiro.
Já no Superior Tribunal de Justiça tramita o habeas corpus coletivo n° 360.693, da Relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior. Em decisão monocrática, o ministro reconheceu a importância da questão de mérito que cuida da tormentosa situação da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, mas não conheceu do habeas corpus sob o fundamento de que a jurisprudência da Corte é firme no entendimento de não ser cabível sua impetração com roupagem coletiva. O problema é que esse não é um entendimento uniforme do STJ.
A Segunda Turma do STJ não apenas conheceu de um HC coletivo<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> como concedeu a ordem requerida. A impetrante, Defensoria Pública de São Paulo, havia se insurgido contra a ordem do Juízo da Infância e Juventude local que determinou o recolhimento de crianças e adolescentes (“toque de recolher”) após as 23 horas ou em locais específicos.
A divergência entre as Turmas revela que a questão merece ser enfrentada pela Corte Especial do Tribunal e, atualmente, há duas impetrações de caráter coletivo que podem subsidiar esse debate entre os ministros do STJ.
O primeiro deles é o HC n° 360.693/RJ, acima citado, da Defensoria do Rio de Janeiro, impetrado contra ato do Tribunal local que, em síntese, condiciona a análise dos pedidos de benefícios dos presos à prévia digitalização do processo físico, procedimento que não raro demora meses para ser concluído.
O outro caso é o HC n° 359.374/SP, da Defensoria Pública de São Paulo, destinado a impedir a continuidade da prática, recorrente na cidade de Santo André, de manter adolescentes apreendidos por ato infracional em delegacias de Polícia por prazo superior ao autorizado no Estatuto da Criança e do Adolescente<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. O pedido foi indeferido liminarmente pelo ministro relator Reynaldo Soares da Fonseca, sob o mesmo fundamento de que não é admissível o habeas corpus coletivo. A DPSP interpôs agravo regimental e aguarda a decisão a ser dada pela Quinta Turma.
Contudo, não é apenas a divergência entre as Turmas que justificaria um enfrentamento do tema pelo STJ.
Numa sociedade de massa, os métodos tradicionais de solução de controvérsias, que preveem o ajuizamento de tantas ações quantas forem as pretensões, podem não atender de forma satisfatória a proteção dos direitos em jogo e ainda promover um assoberbamento do Poder Judiciário com milhares de demandas que poderiam ser reunidas em apenas uma.
Essa realidade há muito tempo já foi reconhecida e solucionada na seara cível por meio de instrumentos de tutela coletiva, tais como a ação civil pública, a ação popular e o mandado de segurança coletivo.
Portanto, não há mais justificativas para que não se admita a tutela coletiva do status libertatis. A violação ao direito de liberdade não é diferente daquela que afeta, por exemplo, o direito de informação nas relações de consumo, pois pode atingir múltiplos sujeitos a partir de um ato danoso comum. Assim, a tutela efetiva da liberdade por vezes somente será alcançada através de instrumentos processuais de demanda coletiva, como o habeas corpus coletivo.
Recentemente, o Pleno do STF reconheceu que o tráfico privilegiado não é crime hediondo<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. Contudo, o Juízo da Vara de Execução Penal do Rio de Janeiro continua a aplicar as frações diferenciadas em razão da hediondez para condenados por tal crime, sob o fundamento de que a decisão da Corte Suprema, dada em sede habeas corpus, não possui efeito vinculante (Decisão proferida pela Juíza Larissa Maria Nunes Barros Franklin Duarte nos autos de execução criminal n° 0068444-24.2016.8.19.0001: “Não obstante o HC mencionado pela Defesa do apenado nas sequências 41.1 e 42.2, este, por ora, não possui efeito vinculante. Portanto, entende este Juízo que o crime de tráfico de drogas, ainda que ‘privilegiado’, é equiparado a hediondo por força do inciso XLIII do art. 5° da CF e do artigo 2° da Lei n. 8072/90, devendo, portanto, a progressão de regime prisional e o livramento condicional obedecerem aos lapsos temporais contidos nas Leis n. 8072/90 e n. 11.343/06. Isto porque, não é possível dissociar a natureza do §4° do caput, sendo certo que a aplicação de causa de diminuição não altera a natureza do delito”).
Isso tem a potencialidade de gerar, pela concepção tradicional, milhares de impetrações de habeas corpus individuais quando o direito poderia ser protegido de forma mais eficaz através da impetração coletiva a beneficiar todos os presos na mesma situação.
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1"></a>Não faz uma semana que foi noticiada a massiva violação de direitos humanos dos adolescentes internados por ato infracional no Rio de Janeiro<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. As instituições que os abrigam estão todas superlotadas e a Defensoria Pública tem pedido, por meio de demandas individuais, a aplicação do artigo 49 da Lei n° 12.594/2012 (SINASE), que prevê o direito de o adolescente internado “ser incluído em programa de meio aberto quando inexistir vaga para o cumprimento de medida de privação da liberdade, exceto nos casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa”.
Trata-se, portanto, de violação do mesmo direito de dezenas de adolescentes que poderia ser sanada pelo habeas corpus coletivo.
A coletivização das demandas na seara criminal, além de garantir a efetividade do direito e promover sensível economia processual, pode ser um instrumento para a afirmação de teses pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, pois, se individualizadas, seriam caracterizadas como repetitivas.
Veja-se o exemplo do HC n° 207.720/SP, acima citado, sobre o “toque de recolher” implementado pelo Juízo da Infância e Juventude. O resultado do julgamento no STJ, por ser demanda coletiva, evidentemente produz forte influência, ainda que não vinculante, para as instâncias inferiores.
O HC coletivo é um excelente instrumento para que temas importantes sejam enfrentados pelo STF e STJ, cujas teses devem ser firmadas a partir de discussões que, evidentemente, devem levar em conta o ponto de vista dos atores sociais envolvidos, inclusive mediante participação na demanda como amici curiae. Seria um grande avanço com resultados positivos em vários aspectos.
Espera-se que tanto o STF quanto o STJ saibam aproveitar o campo fértil composto pelas causas acima citadas, ainda em trâmite, para tornar mais efetiva a proteção do direito de liberdade e, ao mesmo tempo, reduzir a grande quantidade de habeas corpus julgados por ambas as Cortes, problema que tem sido objeto de preocupação dos próprios ministros que as integram.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Defensorias Públicas dos Estados do Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, São Paulo, Tocantins e do Distrito Federal.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A trágica situação da Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro é conhecida dos Ministros do STJ. Recentemente foi publicado, no site do Tribunal, voto do Ministro Rogério Schietti no HC 355.785/RJ, no qual destaca-se o seguinte trecho: “Custa a acreditar que o Poder Judiciário de um estado com tamanha tradição e importância tolere que um serviço público fundamental quanto o da execução das sanções criminais chegue a um ponto de ignominiosa atonia e insensibilidade no trato da liberdade humana”. “Aliás”, acrescentou o Ministro, “não têm sido raras as notícias, veiculadas em processos que chegam a esta corte, sobre a situação lamentável da execução penal no estado do Rio de Janeiro” (http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/Not%C3%ADcias/Not%C3%ADcias/Ministro-critica-lentid%C3%A3o-em-exame-de-pedido-de-indulto-no-Rio-de-Janeiro).
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. HABEAS CORPUS. TOQUE DE RECOLHER. SUPERVENIÊNCIA DO JULGAMENTO DO MÉRITO. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 691⁄STF. NORMA DE CARÁTER GENÉRICO E ABSTRATO. ILEGALIDADE. ORDEM CONCEDIDA. 1. Trata-se de Habeas Corpus Coletivo “em favor das crianças e adolescentes domiciliados ou que se encontrem em caráter transitório dentro dos limites da Comarca de Cajuru-SP” contra decisão liminar em idêntico remédio proferida pela Câmara Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2. Narra-se que a Juíza da Vara de Infância e Juventude de Cajuru editou a Portaria 01⁄2011, que criaria um “toque de recolher”, correspondente à determinação de recolhimento, nas ruas, de crianças e adolescentes desacompanhados dos pais ou responsáveis: a) após as 23 horas, b) em locais próximos a prostíbulos e pontos de vendas de drogas e c) na companhia de adultos que estejam consumindo bebidas alcoólicas. A mencionada portaria também determina o recolhimento dos menores que, mesmo acompanhados de seus pais ou responsáveis, sejam flagrados consumindo álcool ou estejam na presença de adultos que estejam usando entorpecentes. (...) 7. A portaria em questão ultrapassou os limites dos poderes normativos previstos no art. 149 do ECA. “Ela contém normas de caráter geral e abstrato, a vigorar por prazo indeterminado, a respeito de condutas a serem observadas por pais, pelos menores, acompanhados ou não, e por terceiros, sob cominação de penalidades nela estabelecidas” (REsp 1046350⁄RJ, Primeira Turma, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 24.9.2009). 8. Habeas Corpus concedido para declarar a ilegalidade da Portaria 01⁄2011 da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Cajuru. (HC 207.720/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2011, DJe 23/02/2012).
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ECA, art. Art. 185. A internação, decretada ou mantida pela autoridade judiciária, não poderá ser cumprida em estabelecimento prisional (...). § 2º Sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos e com instalações apropriadas, não podendo ultrapassar o prazo máximo de cinco dias, sob pena de responsabilidade.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> STF, HC 118.533/MS, Rel. Ministra CÁRMEN LÚCIA, PLENÁRIO, DJe 01.08.2016.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Reportagem no Bom Dia Brasil: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/edicoes/2016/09/16.html#!v/5310307.

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Ministros, precisamos falar sobre Habeas Corpus coletivo

A coluna feita por defensores públicos.