Celso Grisi

Diana Rodrigues Prado de Castro

Niandra Soares

Quando da compilação do atual Sistema Tributário Nacional na Constituição Federal de 1988, aparentemente todos os principais e mais relevantes fatos econômicos que expressavam riqueza foram indicados como fato gerador de algum tributo. Assim, nos artigos 153 a 156, o constituinte originário previu os impostos que poderiam ser instituídos e sua respectiva competência, ou seja, por quem poderiam ser exigidos.
Quase trinta anos após a promulgação da Constituição, um novo cenário se apresenta com o desenvolvimento significativo da economia digital, em que novos fatos econômicos – inimagináveis ou de pouca relevância econômica anteriormente – passam a expressar significativa riqueza. Este é o caso, por exemplo, das operações realizadas através da internet, como as aquisições de software por download e streaming, que passaram a ser objeto de tributação pelos Estados.
Neste contexto, o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) editou, em 29/12/2015, o Convênio ICMS 181/2015, autorizando algumas unidades federadas – dentre elas o Estado de São Paulo – a conceder redução de base de cálculo nas operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por meio da transferência eletrônica de dados, ou seja, por download ou streaming.
O Estado de São Paulo, ao regulamentar este convênio através do Decreto Estadual 61.791/2016, estabeleceu não só a redução de base de cálculo já autorizada, bem como postergou a exigência do ICMS sobre softwares e demais programas eletrônicos através de download ou streaming, até que seja definido o local de ocorrência do respectivo fato gerador [1].
Analisaremos, assim, as particularidades da tributação das operações envolvendo softwares e a possibilidade de cobrança do ICMS.
Nos termos da Lei 9.609/1998 [2] (Lei do Software), o programa de computador é definido como “a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados conjunto de instruções codificadas contidos em suporte físico para mídia que possibilitam seu funcionamento ou utilização em equipamentos digitais para fins determinados”. Esta mesma lei expressamente dispõe, em seu artigo 9º, que o uso do programa de computador deverá ser objeto de contrato de licença [3].
O software vem sendo qualificado pela jurisprudência brasileira [4] em dois tipos, de acordo com a sua padronização: (i) “software de prateleira” ou standard, que são os softwares padronizados destinados a usuários indeterminados e (ii) “softwares sob encomenda”, estes desenvolvidos de acordo com as especificações técnicas de cada usuário, sofrendo assim variável grau de customização. Independente desta classificação, por ser em essência um direito autoral [5], o software é um bem incorpóreo, intangível, podendo ou não “materializar-se” através de um suporte físico.
De acordo com as definições acima, o Supremo Tribunal Federal [6] – ao analisar operações com softwares comercializados através de suporte físico – adotou o entendimento de que os softwares standard seriam caracterizados como mercadorias, e assim sujeitos ao ICMS, enquanto os softwares sob encomenda sofreriam a incidência do ISS. Neste mesmo sentido é o entendimento tanto do Superior Tribunal de Justiça quanto da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB)[7].
Especificamente quanto às operações através de download ou streaming, há a disponibilização de uma licença para uso do programa de computador, via de regra temporária e intransferível. É possível, ainda, a alienação do direito de sua exploração econômica, em que a propriedade permanece inalterada, havendo somente a cessão de uma licença para comercialização do programa.
Em ambas as situações não há, a princípio, transferência de propriedade entre o autor do direito autoral e o usuário do programa de computador, havendo essencialmente a disponibilização do uso ou dos direitos econômicos.
Quanto à possibilidade de tributação de tais operações pelo ICMS, deve-se analisar, primeiramente, a essência do negócio jurídico praticado, e não o modo de comercialização (se físico ou virtual).
Nos termos do artigo 155, inciso II, da Constituição e o artigo 2º da Lei Complementar 87/1996, o ICMS incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior. Isto significa que, para fins de tributação pelo ICMS, os conceitos de “operação”, “circulação” e “mercadorias” estão profundamente interligados e se completam, de modo que, na ausência de qualquer um dos três elementos, não há que se falar, sequer em tese, em incidência do imposto.
Mercadoria é via de regra definida como bem móvel corpóreo sujeito à mercancia, ou seja, sujeito à comercialização. Este conceito foi defendido pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário 176.626/SP e acompanhado pelo mesmo tribunal no julgamento do Recurso Extraordinário 199.464/SP. Neste ponto, o ilmo. Ministro Sepúlveda Pertence arguiu [8]: “Estou, de logo, em que o conceito de mercadoria efetivamente não inclui os bens incorpóreos, como os direito em geral: mercadoria é bem corpóreo objeto de atos de comércio ou destinado a sê-lo.”
Contudo, este conceito vem sendo interpretado extensivamente pelo Supremo Tribunal Federal, que, no julgamento em sede cautelar da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.945/MT, ao enfrentar a possibilidade de tributação do ICMS na comercialização de softwares, ainda que realizados por download, entendeu que o conceito de mercadoria, em um cenário de economia digital, não mais se restringe apenas a bens corpóreos, de modo que possam existir em nosso ordenamento jurídico mercadorias virtuais sujeitas ao alcance do ICMS.
Até o presente momento, não houve decisão sobre o mérito da ADI, havendo apenas decisão acerca do pedido de liminar negando a suspensão dos efeitos da legislação estadual impugnada, o que já expressa um posicionamento inicialmente desfavorável ao contribuinte sobre a matéria nesta nova composição do STF.
Ultrapassado o conceito de mercadoria, é importante esclarecer que o ICMS não é um imposto que incide sobre a mercadoria propriamente dita, e sim se perfaz na operação jurídica que acarrete a circulação de mercadoria. Deve esta ser entendida não somente como deslocamento das mercadorias (movimentação física), e sim como sua efetiva circulação jurídica – resultando, portanto, na sua transmissão de titularidade, ou seja, na transferência dos poderes de disponibilidade da mercadoria de uma para outra pessoa [9].
Feitas estas considerações, é nossa opinião que, como direitos autorais, os programas de computador não são, em geral, objeto de transferência de titularidade, sendo possível tão somente o licenciamento ou cessão de seu uso temporário (na maioria das vezes).
Desta forma, a cessão de direitos de uso temporário de software, ainda que este seja enquadrado como “software de prateleira”, não deveria sofrer a incidência do ICMS. Assim, ainda que se admita a transferência de propriedade do software, quer nos parecer que estar-se-ia transferindo a propriedade de um direito autoral, e não de uma “mercadoria” – conforme os contornos do seu conceito constitucional tantas vezes definidos pelo STF.

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JOTA

Como direitos autorais, os programas de computador não são, em geral, objeto de transferência de titularidade

O ICMS na disponibilização de software no Estado de São Paulo

Como direitos autorais, os programas de computador não são, em geral, objeto de transferência de titularidade