Leandro Mitidieri Figueiredo

Está marcada para 9/11/2017 a retomada do julgamento da ADI 3.239, ajuizada pelo DEM contra o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
Em 18 de abril de 2012, o ministro Cezar Peluso votou pela inconstitucionalidade do Decreto 4.887, que, segundo ele, somente poderia regulamentar uma lei, jamais um dispositivo constitucional. Viu inconstitucionalidade também na desapropriação nele prevista, em razão da vedação de desapropriação de terras públicas. Ainda, consignou no seu voto que a concretização do artigo 68 do ADCT é complexa, que a primeira titulação só teria ocorrido sete anos depois da promulgação da Constituição e que, nos últimos anos, a situação não teria melhorado, com só 192 comunidades contando com título de propriedade, 6% do total estimado. É curioso que esse quadro de mora do Estado brasileiro tenha servido para fundamentar o julgamento da procedência da ADI, e não o contrário.
Em 25 de março de 2015, a ministra Rosa Weber abriu a divergência e votou pela improcedência da ação, entendendo constitucional o decreto presidencial. Votou no sentido de que o art. 68 do ADCT - que reconhece aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando, devendo o Estado emitir os títulos - é autoaplicável, não necessitando de lei que o regulamente. O decreto teria apenas trazido as regras administrativas para dar efetividade a direito que já estava assegurado no momento da promulgação da Constituição de 1988. Já quanto ao critério da autoatribuição para caracterizar os remanescentes das comunidades dos quilombos, a ministra lembrou que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, já internalizada no ordenamento jurídico brasileiro, dispõe que nenhum Estado tem o direito de negar a identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal.
Como se não bastasse a norma que veicula o direito fundamental do art. 68 do ADCT ser, com efeito, autoaplicável, há sim um ato normativo primário entre a Constituição e o Decreto 4.887, que é a mencionada Convenção 169, valendo registrar que o próprio STF entendeu que tratados dessa natureza, de direitos humanos, têm status “supralegal” (RE 466343).
Já quanto à autoatribuição, o instituto virou atualmente o alvo das implicâncias. Como se vê na questão das cotas para negros nas universidades, vencida a batalha e admitida a ação afirmativa, não só no Brasil (STF, ADPF 186, 26/04/2012) como nos EUA, com a conclusão do julgamento na Suprema Corte de lá (Fisher v. University of Texas at Austin et al., 23/06/2017), os críticos passaram a focar nos casos de autoatribuições que causaram espécie. Ora, na linha do voto da ministra Rosa Weber, a autoatribuição não é absoluta, assim como nenhum outro direito no Estado Democrático de Direito. O ministro Barroso, relator da ADC 41, admitiu a verificação por meio de autodeclaração presencial, exigência de fotos e entrevistas por comissões, posterior à autodeclaração. As universidades já estão encontrando soluções para coibir as situações anômalas, o que também sempre foi possível no processo administrativo de regularização de terras quilombolas, sendo que muitas das críticas advêm de quem não presencia o sucesso do sistema de cotas nas universidades, nem atuou de perto em um processo de regularização quilombola. Enfim, se, segundo alguns, a autoatribuição é o pior dos critérios, ainda não inventaram um melhor.
Mas a questão que volta à apreciação do STF é de fato complexa. É que, apesar da força normativa preconizada por Hesse, não há dúvida quanto ao acerto da visão lassalista de que a Constituição é o resultado dos fatores reais de poder da sociedade. Esses fatores reais de poder sobressaem em um julgamento envolvendo um verdadeiro tabu da sociedade brasileira: a propriedade de terras por negros. Com o fim do tráfico de escravos, a Lei de Terras de 1850 inviabilizou a propriedade de terras por negros, com o objetivo declarado de reter nas terras os libertos, impedindo sua dispersão pelo território nacional e seu acesso à pequena propriedade. É essa resistência institucional e da sociedade brasileira a questão de fundo que foi levada ao STF pela ADI.
Nesse momento sombrio, em que estão na moda ataques a direitos humanos, vale uma reflexão para além da questão do direito fundamental dos quilombolas e do racismo institucional. Teria sentido remover índios e quilombolas para as periferias das grandes cidades, destinando todas as suas terras à agricultura extensiva? O Brasil adotou durante séculos o modelo de monocultura da casa grande e senzala, identificado por Gilberto Freyre. Celso Furtado, por sua vez, observou a combinação de baixa produtividade das terras e mão de obra explorada. Mesmo sendo uma potência agrícola, a concentração de terras no país vem aumentando e a produtividade continua baixa.
Ao invés de buscarmos o modelo de produtividade da Holanda - segunda maior exportadora de alimentos do mundo, com área menor do que a do estado do Espírito Santo -, vamos transformar as terras tradicionais em mais plantações improdutivas de soja? Note-se que, mais do que soja e petróleo, no futuro próximo o bem mais valioso será a água, cuja sustentabilidade é um dos maiores atributos de unidades de conservação e terras de populações tradicionais (áreas protegidas, nos termos do Decreto 5.758/2006). Para uma economia que clama por inovação e complexidade, não seria mais alvissareiro e estratégico investir no potencial ainda nem estimado das áreas protegidas, em termos de biodiversidade, patrimônio genético e conhecimento tradicional associado, nos termos do que já começara a ser regulamentado pela Lei 13.123/2015?
Uma coisa é certa: com o Decreto 4.887/2003, pouco se avançou. Mas, sem o decreto, volta-se à estaca zero, emplacando-se mais um retrocesso social nesses tempos sombrios atuais, marcados pela paralização total da regularização quilombola.

Peluso

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JOTA

"Com o Decreto 4.887/2003, pouco se avançou. Mas, sem o decreto, volta-se à estaca zero" 

Casa Grande da Soja versus Quilombos no STF

"Com o Decreto 4.887/2003, pouco se avançou. Mas, sem o decreto, volta-se à estaca zero"